1. INTRODUÇÃO
O presente estudo busca analisar o instituto do incidente de deslocamento de competência, inaugurado pela Emenda 45/2004, o qual consiste na transferência da atribuição da Justiça Estadual em processar e julgar os feitos e inquéritos nos casos de ocorrência de graves violações a direitos humanos, declinando-os para a Justiça Federal.
A respeito do assunto, alguns representantes de determinadas corporações têm questionado a legitimidade da União em analisar tais processos, tendo em vista que a competência jurisdicional da União já está expressamente prevista no art. 109 da Constituição Federal. Consequentemente, foram propostas duas ações diretas de constitucionalidade (ADI) em face do art. 1º da Emenda acima mencionada.
Dentre as indagações formuladas nas ADIs, alega-se desobediência a princípios processuais constitucionalmente previstos, como o do juiz natural e o da a proibição da criação de um tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII e LIII, respectivamente, da Carta Maior), dentre outros, conforme adiante detalhado.
Desta forma, considerando as possíveis controvérsias existentes, a presente pesquisa buscará conceituar o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) e analisar os seus impactos no cenário constitucional brasileiro, além de discutir o interesse da União nos casos de grave violação a direitos humanos. Outrossim, serão apresentadas as hipóteses em que se dá o IDC, e ainda, examinadas a eficácia e a compatibilidade constitucional do IDC com a Constituição Federal de 1988.
Este estudo se fundamenta em pesquisas científicas, doutrinas, em jurisprudências e na legislação vigente, reunindo-se todas as opiniões, a fim de que se possa extrair tanto os conhecimentos basilares do instituto ora estudado. Assim sendo, o serão abordados os fundamentos para a defesa da regularidade do incidente, porém, também examinará os argumentos apresentados pelos que rejeitam essa hipótese à luz das normas constitucionais e da doutrina atual.
Desta forma, será apresentada a seguinte estruturação: além desta introdução, apresenta, na seguinte seção, o referencial teórico e faz uma demonstração sucinta dos principais autores que possuem trabalhos nesta temática. Por fim, nos resultados e discussões, faz-se uma exposição das principais implicações da seara ora estudada.
2. O INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA E OS SEUS IMPACTOS NO CENÁRIO JURÍDICO BRASILEIRO
A competência pode ser definida como uma atribuição dada a um juízo ou tribunal para processar e julgar determinado feito submetido à sua jurisdição. A Constituição Federal, a partir de seu art. 108, enumera as matérias a serem tratadas por cada órgão jurisdicional brasileiro.
O incidente de deslocamento de competência (IDC) indica uma alteração excepcional da alçada, pois consiste numa transferência da atribuição jurisdicional do Poder Judiciário dos Estados-membros para a Justiça Federal, quando, cumulativamente, 1) verificar-se que as autoridades estaduais se mostram insuficientes ou sem interesse na solução do caso, 2) houver grave violação a direitos humanos e 3) risco de responsabilização da União no direito internacional. O referido incidente processual poderá ser suscitado somente pelo Procurador-Geral da República perante o Superior Tribunal de Justiça.[1]
Desde a sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro, pela Emenda Constitucional n. 45/2004, houve apenas cinco pedidos de deslocamento. Destes, quatro foram provocados pelo Procurador-Geral da República e um por pessoa física, sendo o último anulado devido sua ilegitimidade. Dos quatro válidos, dois obtiveram deferimento integral, um parcial e um indeferido.
Todavia, como é cediço em se tratando de assuntos jurídicos, há divergência de opiniões e de posicionamentos doutrinários quanto ao tema em análise, considerando que são apresentados questionamentos até mesmo quanto à sua constitucionalidade, eis que determinados setores apontam eventuais afrontas a princípios constitucionais.
Nos moldes do ordenamento jurídico pátrio, o domínio da regularidade das normas jurídicas é realizado pelo controle de constitucionalidade, que pode ser formal ou material, onde se verifica a harmonia das normas infraconstitucionais com a Constituição Federal, cuja forma de alteração da própria Constituição Federal e das leis descritas no art. 59 da CF/88 deve obedecer ao disposto no art. 60 da CF/88.
À vista das possíveis controvérsias, dentre as medidas disponíveis dentro do controle repressivo, que é o utilizado no controle de regularidade de emendas, órgãos como a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES), Associação Nacional dos Membros do Ministério Público e a Associação Nacional dos Procuradores da República, discordaram da alteração feita no texto constitucional, e propuseram as ações diretas de inconstitucionalidade n. 3486/DF (proposta pela AMB) e n. 3493/DF (proposta pela ANAMAGES), com entrada no Supremo Tribunal Federal, respectivamente, em 05/05/2005 e 11/05/2005. Ambas as ações se encontram em fase de redistribuição e não há decisão quanto ao pedido liminar feito.
A Emenda n. 45/2004, conhecida como Reforma do Judiciário, dentre outras alterações, introduziu no art. 109 da Constituição Federal o inciso V-A e o §5º, instituindo o IDC com o intuito de assegurar o cumprimento de obrigações oriundas de tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. Importa ressaltar que, conforme mencionados nas fundamentações dadas às decisões em que o deslocamento foi suscitado, o Superior Tribunal de Justiça deixou expresso na sua jurisprudência que a medida tem caráter excepcional e que precisa respeitar três requisitos básicos definidos pelo STJ. Além disso, segundo o órgão de cúpula, também devem ser analisados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Um dos maiores impactos que a instauração dessa nova modalidade de deslocamento de competência trouxe, foi, sem dúvida, a controvérsia alegada pelos órgãos contrários à federalização, os quais defendem uma violação a princípios processuais pilares do direito constitucional brasileiro, além da superficialidade em não definir expressões essenciais ao entendimento da sua finalidade e razão de existir, tais como “graves violações a direitos humanos”, o que confere total discricionariedade ao legitimado. Neste caso, um simples atropelamento poderia ser objeto de federalização, por se tratar de delito contra a pessoa, acabando por banalizar e confundir totalmente a competência prevista pela Carta Magna, culminando numa total insegurança jurídica.[2]
É necessário, contudo, admitir-se que, após épocas de lutas, regime ditatorial e de uma lenta e gradual redemocratização, mostra-se urgente a tomada das medidas necessárias à efetividade da proteção aos direitos inerentes ao homem. Um Estado Democrático de Direito que disto se olvida, tem sua forma de Estado e de Governo mitigada e ineficaz, já que “a tarefa fundamental do Estado possuidor destas características é superar as desigualdades, instaurando um regime democrático que realize a justiça social” (SILVA, 2010).
A dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, elencado no art. 1°, III, da Carta Magna, além de possuir dentre seus princípios, o da prevalência dos Direitos Humanos (art. 4°, II) fator que reforça ainda mais a responsabilidade estatal. Pelo contrário, o que se tem são números alarmantes de indicações do Brasil como violador de direitos humanos, o que não deve surpreender, considerando os casos de conduta negativa (omissões das autoridades brasileiras em apurar os crimes) e de conduta positiva (quando os próprios agentes públicos participam de ações criminosas). Diante deste lamentável cenário, há diversas denúncias internacionais contra o Estado Brasileiro perante o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, consoante afirmam André Tavares e Pedro Lenza (2005, p. 78), citado por Rocha (2016).
A finalidade do incidente de deslocamento de competência é zelar pela incolumidade da dignidade humana e reduzir a impunidade, que surgiu devido aos alarmantes dados de graves violações. A Emenda n. 45, denominada “Reforma do Judiciário”, ao inaugurar o incidente em estudo, busca assegurar que as graves violações a direitos humanos sejam efetivamente solucionadas.
Isso não significa, porém, que determinadas violações possuem maior relevância que outras, ou que determinados direitos humanos se sobrepõem em detrimento de outros. Significa, tão somente, que alguns casos urgem por respostas mais rápidas e mais rígidas por suas próprias particularidades.
Como exemplos, tem-se o preceito secundário presente no dispositivo de um tipo penal qualquer (pena cominada), que varia conforme a “importância” que o direito tutelado pela norma possui, eis que o delito cometido contra o patrimônio possui pena de 1 (um) a 4 (quatro) anos, enquanto o delito contra a vida, na forma simples, possui pena de 6 (seis) a 20 (vinte) anos, e assim se comprova essa oscilação de quantidade de pena ao longo de qualquer lei penal incriminadora.
Além disso, é possível citar também que alguns crimes são afiançáveis e outros inafiançáveis, e a classificação de crimes comuns e hediondos, todos conforme o grau de reprovabilidade social que possuem.
2.1 O procedimento do IDC e a sua relação com os princípios constitucionais
Não obstante a inexistência de disposição expressa acerca de quem seja legitimado a requisitar o IDC junto ao Procurador-Geral da República, essa informação não altera o instituto. O Procurador-Geral, chefe do Ministério Público Federal, como único legitimado, suscita o incidente perante o Superior Tribunal de Justiça, responsável pela uniformização da jurisprudência e da interpretação da lei federal, que, deferirá o pedido quando entender preenchidos os requisitos consolidados na jurisprudência da Corte. Isto posto, passa-se à análise da relação do IDC com princípios constitucionais.
2.1.1 Juiz Natural
Os segmentos jurídicos que se portam contra o IDC argumentam que o incidente fere esse princípio por retirar da competência natural do juiz estadual e remeter os autos ao juiz federal. Com base na redação do art. 5º, LIII da CF/88, o princípio do juiz natural assinala que todo processo deverá tramitar apenas perante o juiz designado para o mesmo.
O princípio visa, precipuamente, o resguardo do princípio da imparcialidade do juiz e da impessoalidade, no âmbito do direito administrativo, já que o magistrado também é um agente público. Contudo, devido à necessidade que demandam determinados casos, existem exceções, como o desaforamento, a federalização das investigações e a intervenção nos estados.
Merece destaque, todavia, o fato de que a alteração de competência deve ocorrer quando necessária. A remessa de vários processos a uma Vara nova, em virtude de esta ser especializada em determinada matéria, não viola o princípio do juiz natural, uma vez que, em nome do interesse público, os feitos são desvinculados dos juízos de origem, e não visam qualquer réu específico, inexistindo qualquer ofensa à impessoalidade (NUCCI, 2005, p. 79).
2.1.2 Vedação à criação de tribunal de exceção
Tomando o argumento acima mencionado como justificativa para uma possível afronta à Constituição Federal, deslocar a competência da Justiça Estadual para a Federal é entendido como a criação de um tribunal de exceção. Esse princípio encontra base no art. 5º, XXXVII da CF/88.
Entretanto, não há que se falar em tribunal de exceção, pois, se assim o fosse, todo o processo de instalação do Poder Judiciário seria inválido, uma vez que todas ou quase todas as questões fatídicas antecedem o próprio direito, seja na forma material, seja na processual. Isto importa dizer que primeiro nasce o litígio, e só após, o juízo competente para julgá-lo, já que o direito acompanha os fenômenos sociais, tanto material quanto processualmente.
2.1.3 Pacto Federativo
O pacto federativo encontra previsão nos artigos 34 e 35 da CF, que consiste na não-intervenção na gestão dos entes geopoliticamente considerados menores, isto é, a União com os Estados e os Estados com os Municípios. O fundamento apresentado por quem é contrário ao IDC é de que a União, no âmbito dos três Poderes, já possui sua competência previamente designada pela Constituição Federal.
Contudo, não deve ser entendido tal princípio como absoluto, eis que previstas as exceções legais e verificada nos mesmos dispositivos legais mencionados acima. Ainda, ainda que informal e implicitamente, a ocorrência de situações de excepcionalidade, como no caso da intervenção federal, em que a União controla, administrativamente, um poder estadual de maneira temporária.
Não há que se falar em desrespeito a esse princípio, tendo em vista o fato de que na federalização de feitos não é possível visualizar o controle administrativo ou judicial da União sobre os estados, nem mesmo qualquer forma de hierarquização como vulgarmente se pensa, estando ambas as justiças em situação de paridade.
2.1.4 Devido processo legal
Um dos mais importantes do ordenamento jurídico, pois está intimamente ligado aos outros princípios processuais, especialmente com o do contraditório e ampla defesa. Como o próprio nome sugere, indica que a tramitação processual deve obedecer a um padrão estabelecido, que é justamente a conformidade com a lei e com os outros princípios com os quais está relacionado, como o da publicidade, a vedação de utilização de provas obtidas por meio ilícito, dentre outros. Encontra supedâneo no art. 5º, LIV da CF/88.
O deslocamento de competência em estudo em nada macula este preceito processual, tendo em vista que não altera a essência das regras, mas sugere tão somente uma alteração de atribuição jurisdicional de forma excepcional. Ademais, em nada diferem o processo e o procedimento das Justiças dos estados para os da Justiça Federal, não subsistindo razão a qualquer afirmação que julgue ilegal o IDC, por obedecer à legalidade imposta.
2.1.5 Contraditório e ampla defesa
No caso deste princípio, insculpido no art. 5º, LV da CF/88, a justificativa mostrada pelos setores contrários à federalização consiste na afirmação de que a alteração acarretará um elemento surpresa do curso do processo ou inquérito, já que a alteração da competência se dá de maneira discricionária e independe da vontade das partes.
Ora, ante a publicidade dos atos processuais, não há que se falar em surpresa, eis que o feito permanece inteiramente à disposição das partes para vistas, além de que o fato de ser federalizada a sua tramitação em nada obstará a defesa e os pedidos das partes interessadas, visto que inexiste irregularidade na instituição Justiça Federal, isto é, é um órgão oficial constituído pela República Federativa sem discrepância do trâmite no Poder Judiciário dos estados.
2.1.6 Soberania do Júri
O Júri possui competência para julgar crimes dolosos contra a vida e detém soberania e inviolabilidade, conforme previsão no art. 5º, XXXVII da CF/88. As alegações aqui formuladas residem na ideia de que afronta a competência absoluta e inalterável do júri.
Todavia, necessário esclarecer que, quando há interesse da União em infração criminal a ser julgada pelo Tribunal do Júri, ocorre a substituição somente do juiz competente para conduzir o processo, que, nesse caso, é auxiliar do Conselho de Sentença, incumbido da primeira fase do procedimento (pronúncia, impronúncia, desclassificação ou absolvição sumária, conforme art. 413 do Código de Processo Penal). Conforme a acepção do termo Júri Popular, o julgamento cabe ao Conselho de Sentença, que é formado pelo povo.
Segundo preleciona Vladimir Aras (2005), citado por Castro (2013):
(...) não há um povo estadual e um povo federal. O povo é um só. Nos crimes dolosos contra a vida eventualmente deslocados por meio de IDC, o povo que julgará o fato será o mesmo, o da comarca estadual ou da subseção federal em que se deu o fato, conforme o critério territorial. Enfim, nada se tira do júri (art. 5º, XXXVIII, da CF).
2.2. Ponderações relevantes à temática
Ainda sobre as divergências destacadas, importante mencionar três indagações pertinentes ao IDC, as quais serão explanadas a seguir.
Essas ponderações ainda não possuem uma resposta exata, porém não interferem na razão de existir de IDC, pois se tratam de simples detalhes e de factíveis questões a serem dirimidas pelo STJ.
2.2.1 A discricionariedade do Procurador-Geral e a aparente superficialidade da norma
Um dos pontos alvo de discussão paira acerca da liberdade conferida ao Procurador-Geral em definir quais os casos considerados graves violações, visto que o texto constitucional não elenca um rol taxativo de quais seriam essas graves violações.
Relevante destacar que, além dos motivos aqui explanados, como a urgência de alguns casos requer o deslocamento, presume-se a habilidade do Procurador-Geral em seu conhecimento técnico, experiência jurídica e razoabilidade em requerer o IDC.
2.2.2 Utilização do termo “graves violações”
O questionamento, nesse caso, é se a expressão “graves violações” estaria relacionada somente a crimes. Todavia, pela forma como está previsto, essa expressão abrange qualquer infração, inclusive no âmbito cível, devido a ausência de qualquer termo que remeta o leitor ao sentido de tipos penais.
2.2.3 Requerimento do IDC na Justiça Especial
Neste contexto, a omissão é que chama atenção. Não se encontram teses favoráveis ou de rejeição à possibilidade de admissão do IDC da Justiça Especial (composta pela Justiça Eleitoral, do Trabalho e Militar) para a Justiça Federal. Na decisão emanada no bojo do IDC n. 3/GO, aduz o STJ:
A Emenda Constitucional n. 45/2004 introduziu no ordenamento jurídico a possibilidade de deslocamento da competência originária, em regra da Justiça Estadual, à esfera da Justiça Federal (grifo próprio).[3]