6 O PRINCÍPIO DA CONFIANÇA LEGÍTIMA, EXPECTATIVAS LEGÍTIMAS, RISCOS NORMAIS E AS MODALIDADES DE PERICULOSIDADE
Dentro daquilo que ficou conhecido como princípio da proteção da confiança legítima, o fornecedor tem o dever de cumprir com as tratativas contratuais e de zelar pela qualidade-segurança e qualidade-adequação dos produtos e serviços postos no mercado de consumo. Isso gera legítimas expectativas nos consumidores.
Como a distribuição de produtos e serviços se dá de uma forma muito mais complexa no mundo globalizado, já não interessará para a lei o animus do empresário/fornecedor, mas sim o resultado ao consumidor. Um exemplo que pode ser mencionado é o e-commerce: imagine-se que o consumidor adquira um produto numa loja virtual; logo em seguida, esse objeto segue para a transportadora para ser enviado; a empresa que fabricou a embalagem do transporte, por sua vez, pode ser outra diferente da transportadora; e assim por diante. São vários os fornecedores que integram a cadeia de consumo. Uma vez gerado um dano ao consumidor em razão desse contrato de consumo, haverá solidariedade estabelecida em lei. Fala-se numa verdadeira desmaterialização da produção ou da distribuição. É a era da terceira revolução industrial.
Quanto aos riscos que podem ser considerados normas e previsíveis, a normalidade do risco é um traço objetivo e a previsibilidade é o elemento subjetivo (BENJAMIN, 2008). Um produto que ofereça riscos anormais e imprevisíveis pode gerar legítimas expectativas? Não, pois tal produto oferece insegurança.
E o que vem a ser a legítima expectativa? Segundo Benjamin (2008), é aquela que, de acordo com o desenvolvimento da tecnologia de um determinado momento histórico e levando em consideração as próprias condições econômicas, mostra-se plausível justificada e real.
Legítima expectativa relaciona-se com normalidade e previsibilidade.
Nesses termos, o produto ou serviço de periculosidade inerente ou latente é aquele que traz uma periculosidade que lhe é própria, uma marca característica da sociedade de risco, traço do progresso tecnológico e científico. Importante destacar que a periculosidade inerente é justamente aquela que é normal – o risco oferecido não é tão gravoso – e previsível – o homem médio consegue identificá-lo perfeitamente –, estando, portanto, dentro das legítimas expectativas do consumidor (BENJAMIN, 2008). De acordo com o REsp 1113804/RS já mencionado, o cigarro é um produto de periculosidade inerente, não se podendo esperar, portanto, que de sua utilização ao longo do tempo vá ocorrer um acidente e consumo.
O produto de periculosidade adquirida é aquele portador de um defeito. A periculosidade é adquirida quando o fornecedor incorre em erro de fabricação, erro de concepção (design ou projeto) ou mesmo em erro de comercialização (BENJAMIN, 2008).
Já na hipótese de periculosidade exagerada, o produto sequer pode ser inserido no mercado de consumo. Benjamin (2008) menciona que tem um potencial danoso tão grande que, mesmo sendo repassadas todas as informações necessárias e sendo respeitado o princípio da transparência, não há como mitigar os riscos. Assim, são, na origem, de periculosidade inerente, mas acabam por serem considerados defeituosos por ficção.
7 RELAÇÃO DE CONSUMO INTERNACIONAL
No que diz respeito à relação de consumo internacional, o CDC menciona que a pessoa jurídica estrangeira pode ser fornecedora.
Porém, perceba-se o seguinte: o art. 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-lei 4657/42 – define que “para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. Porém, no caso do comércio eletrônico em que o consumidor adquire produto de site estrangeiro, aplica-se o art. 9º, §2º: “A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente”.
Diante disso, em regra, o CDC não será aplicável a uma compra virtual realizada em sítio eletrônico de outra nacionalidade (LIMA, 2017).
Mesmo assim, o STJ já decidiu que o produto adquirido no exterior encontra, necessariamente, amparo de assistência em solo nacional em havendo filial da multinacional fabricante, com fundamento na lógica da economia globalizada:
DIREITO DO CONSUMIDOR. FILMADORA ADQUIRIDA NO EXTERIOR. DEFEITO DA MERCADORIA. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA NACIONAL DA MESMA MARCA ("PANASONIC"). ECONOMIA GLOBALIZADA. PROPAGANDA. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR. PECULIARIDADES DA ESPÉCIE. SITUAÇÕES A PONDERAR NOS CASOS CONCRETOS. NULIDADE DO ACÓRDÃO ESTADUAL REJEITADA, PORQUE SUFICIENTEMENTE FUNDAMENTADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO NO MÉRITO, POR MAIORIA.
I - Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País.
II - O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje "bombardeado" diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca.
III - Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as consequências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos.
IV - Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes.
V - Rejeita-se a nulidade arguida quando sem lastro na lei ou nos autos (REsp 63.981/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Rel. p/ Acórdão Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 11/04/2000, DJ 20/11/2000, p. 296).
8 A DEFINIÇÃO DE PRODUTO
Entretenimento eletrônico, fast food e fashion trends... Diversas são as vantagens e comodidades que a sociedade do espetáculo apresenta ao público de consumidores de massa, que encontra nessa realidade a possível satisfação de seus interesses materiais – diz-se “possível” porque, muitas vezes, não será factível que as ilusões consumeristas possam ser atingidas, em função de limitações individuais de natureza econômica e em decorrência de frustrações inerentes à lógica do jogo mercadológico, decorrentes da obsolescência planejada[4].
Como o produto e o serviço são os objetos da relação de consumo, a serem prestados pelo fornecedor, o CDC os define justamente no artigo que trata desta última figura. Assim, nos termos do art. 3º, §1º:
§1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
O produto como bem móvel é qualquer bem da vida que o consumidor possa ter a capacidade de levar consigo. A classificação civilista dos semoventes como bens móveis também pode ser adequada à seara consumerista, pois os contratos de consumo implicam aquisição ou utilização de produto, sendo o consumidor o destinatário fático e econômico. No caso da aquisição de um semovente, a figura contratual cabível tanto pode ser o contrato de compra e venda previsto no Código Civil, a exemplo da aquisição de cabeças de gado, como também o contrato de consumo, a exemplo da aquisição de um animal de estimação no pet shop.
O produto como bem imóvel é ideia aplicável aos contratos imobiliários e àqueles que estejam relacionados com eles, como o contrato de financiamento de um apartamento, por exemplo. As figuras do seguro e do empréstimo também são mencionáveis. Inclusive, o Superior Tribunal de Justiça já editou uma súmula, coibindo a venda casada em sede de contrato imobiliário. Veja-se o teor da Súmula 473 do STJ: “O mutuário do SFH não pode ser compelido a contratar o seguro habitacional obrigatório com a instituição financeira mutuante ou com a seguradora por ela indicada”.
Produto como bem material é aquele que é palpável no plano fático, a exemplo de uma televisão. Já o produto como bem imaterial: não é palpável no plano fático, a exemplo de um software ou mesmo o investimento feito pelo consumidor em renda fixa.
A internet é enxergada como um serviço e não como um produto, mas através dela são feitas operações de comércio eletrônico nas quais os consumidores adquirem ambas as modalidades de objeto da relação de consumo.
Existe, ainda, na doutrina e no próprio CDC uma classificação dos produtos entre duráveis e não duráveis. O prazo decadencial para reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação vai variar, sendo de 30 ou de 90 dias.
O produto não durável guarda afinidade com o conceito de bem consumível, ou seja, sua utilização acarreta a sua destruição. O prazo decadencial para reclamar pelos vícios é de 30 dias, nos termos do art. 26 do CDC. Já o produto durável é aquele que não se extingue após o seu uso regular. O prazo para reclamar pelos vícios é de 90 dias, de acordo com o art. 26 do CDC.
9 O CONCEITO DE SERVIÇO
O CDC assim define o serviço no §2º do art. 3º:
§2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
O requisito da remuneração para que haja uma prestação de serviço deve considerar tanto as remunerações que sejam diretas – prestadas como contraprestação no contrato de consumo – como indiretas.
O fornecedor, nesse último caso, estabelece um sinalagma embutido por meio de uma prestação que se traduz através de benefícios, amostras, brindes – tudo visando ao estímulo do consumo, resultando em vantagens para o fornecedor que são externas ao contrato de consumo vigente.
O parágrafo toca na questão das instituições financeiras, deixando claro que o CDC a elas se aplica. Na ADI 2591, na qual os bancos pretendiam excluir a incidência do Código aos contratos bancários, o STF decidiu pela inconstitucionalidade de tal tese.
De acordo com a Súmula 297 do STJ, o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.
A Súmula 285 do STJ menciona que nos contratos bancários posteriores ao Código de Defesa do Consumidor incide a multa moratória nele prevista.
A Súmula 479 do STJ diz que as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.
Por último, a Súmula 381 do STJ dispõe que nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas.
Ainda com relação às instituições bancárias, o STJ já teve a oportunidade de aplicar, no ano de 2018, a teoria do desvio produtivo de Marcos Dessaune quanto à situação de consumidor que despendeu desarrazoado tempo para lidar com os percalços decorrentes de encargos bancários, ações judiciais e privação de tempo para outras atividades mais produtivas, em decorrência da má prestação de serviço por parte da instituição financeira – AResp 1.167.245.
Mencione-se que a teoria do desvio produtivo já foi utilizada pelo STJ em outras situações, tais como injustificado atraso em entrega de diploma por instituição de ensino e aquisição de veículo zero quilômetro portador de sério vício. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também tem se valido da teoria do desvio produtivo em seus julgados.
Quanto às relações de caráter trabalhista são excluídas da incidência do CDC porque a relação de emprego não configura relação de consumo nos moldes do que foi definido acima, ainda que haja uma assimetria entre trabalhador e empregador, sendo tal relação regulada pela CLT.