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Dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto e serviço no CDC.

Uma análise dos artigos 1º ao 3º do microssistema consumerista

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11/09/2018 às 10:10

Resumo:


  • O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, conforme previsão constitucional.

  • Os conceitos de consumidor, fornecedor, produto e serviço são fundamentais para a compreensão das relações de consumo e estão definidos nos primeiros artigos do CDC.

  • O CDC aplica-se a relações de consumo que envolvem tanto bens materiais quanto imateriais, e abrange atividades de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, excluindo as relações de caráter trabalhista.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Este texto tem por objetivo analisar os conceitos básicos definidos nos três primeiros artigos do CDC e as consequências decorrentes dessas noções. As definições a serem abordadas serão as de consumidor, fornecedor, produto e serviço.

Resumo: O Código de Defesa do Consumidor contém uma parte introdutória que precisa ser interpretada de acordo com o contexto da sociedade de consumo de massa, sendo que desse trecho introdutório decorrem conceitos importantes para a compreensão do resto do microssistema. Este texto tem por objetivo analisar os conceitos básicos definidos nos três primeiros artigos do Código de Defesa do Consumidor Brasileiro e as consequências decorrentes dessas noções. As definições a serem abordadas serão as de consumidor, fornecedor, produto e serviço.


1. INTRODUÇÃO

As normas do Código de Defesa do Consumidor têm natureza cogente e imperativa. Isso se deu em função de o Estado ter percebido a necessidade de regular a relação de consumo, na qual existe a vulnerabilidade de natureza fática, jurídica, técnica ou mesmo informacional do consumidor diante do fornecedor, que detém toda a expertise e o aparato para elaborar contratos de adesão que lhes sejam mais favoráveis ou mesmo judicializar seus conflitos.

Antes, o centro do direito privado estava no Código Civil, inspirado em filosofia racionalista, fruto de um liberalismo individualista. O Código Civil de 1916 era inspirado no Code Napoléon do século XVIII. O contrato estava fundado em três princípios tradicionais, que eram o pacta sunt servanda – a vinculação ao que foi estabelecido –, a autonomia da vontade e a liberdade do exercício de propriedade.

Porém, a partir de 1962, com a iniciativa do presidente Kennedy (EUA) em enumerar os direitos básicos dos consumidores à segurança, informação, direito de escolha e direito de ser ouvido, houve uma mudança de paradigmas em vários ordenamentos jurídicos, até porque a própria ONU editou a Resolução 39/248 em 1985, fixando uma série de objetivos dos Estados perante os consumidores – orientações e diretrizes que passariam a ser adotadas nas legislações internas.

Na sociedade de consumo, a hipercomplexidade da relação entre consumidor e fornecedor demanda um dirigismo contratual, que é a intervenção do Estado no direito privado, fazendo o contrato cumprir a sua função social, com o fim de atingimento da justiça social1. Isso porque se observa, na realidade dos contratos de adesão, realidade essa da massificação e despersonalização do contrato, uma distância ou assimetria entre as figuras dos contratantes – um detém a posição dominante e o outro depende do contrato para a realização de suas faculdades existenciais, criando vínculos de catividade ou contratos de longa duração, muitas vezes. Cláudia Lima Marques menciona que essa posição dominante do fornecedor seria a “Machposition” (MARQUES, 2008, p. 24).

O CDC, assim, busca a igualdade material por meio das normas que institui. A nova teoria contratual vai se fundar no reconhecimento de que há a necessidade de uma responsabilização dos fornecedores que independe da culpa – responsabilidade objetiva –, levando em consideração a ideia de uma sociedade do risco, sendo que o critério de distribuição desses riscos vai ser objeto de interesse da Análise Econômica do Direito – Law and Economics –, que estudará a questão da internalização dos custos para o fornecedor em decorrência das externalidades negativas que eventualmente surgem da relação de consumo.

Ainda: ocorre a flexibilização e não a extinção dos princípios contratuais tradicionais, passando a ser introduzidos o princípio do equilíbrio, a boa-fé objetiva, a transparência e a função social do contrato. Passaram a coexistir com o Código Civil os microssistemas – denominação criada por Natalino Irti da década de 70 no livro A Era da Descodificação para designar as legislações especiais que surgiram no intuito de regular temas específicos na seara privada e que constituem sistemas lógicos, tais como a Lei das Mensalidades Escolares, a Lei dos Planos de Saúde e o próprio CDC (TIMM, 2008).

Nesses termos é que se pode afirmar que o consumidor é um sujeito presumidamente vulnerável em lei na sociedade de consumo. Neste texto, serão abordados os três primeiros artigos do Código de Defesa do Consumidor e vários conceitos que eles abrangem, configurando as denominadas “Disposições Gerais” do Capítulo I do Título I do CDC.


2. AS ESPÉCIES DE VULNERABILIDADE

O primeiro artigo do CDC é aquele que menciona o triplo mandamento constitucional de proteção consumerista:

Art. 1º O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, XXXII, 170, V, da Constituição Federal e art. 48. de suas Disposições Transitórias.

A necessidade de proteção se dá em função da vulnerabilidade do consumidor. Esta poderá ser uma vulnerabilidade técnica, que ocorre quando o indivíduo não tem o domínio a respeito do processo de produção do produto, não possui noção com relação às características do serviço ou bem que adquire ou utiliza.

Exemplo que pode ser mencionado é o caso do médico e seu paciente, hipótese em que existe sim a relação de consumo, tendo em vista a presença desta espécie de vulnerabilidade e também em função de o Princípio Fundamental nº XX do Código de Ética Medica – que é uma resolução editada por uma autarquia federal, o Conselho Federal de Medicina – não se sobrepor às normas da Constituição Federal e do CDC.

Quanto à vulnerabilidade jurídica, é possível afirmar que o consumidor carece de conhecimentos de Direito, Economia ou mesmo Contabilidade, colocando-se em posição de desvantagem diante do fornecedor, que pode contratar bons advogados e conhece a lógica do mercado (HONESKO; RAGAZZI, 2010). O fornecedor tem a capacidade, inclusive, de adotar técnicas persuasivas de marketing para fins de induzimento ao consumismo2.

Na vulnerabilidade fática, também chamada de socioeconômica, existe uma “Machtposition” ou “posição dominante” do fornecedor, sendo que o princípio favor debilis surge com o intuito de contrabalancear esse desequilíbrio (MARQUES, 2008, p. 24). No plano fático, vão existir casos, inclusive, de hipervulneráveis, como as crianças, idosos e analfabetos, que precisam ter seus direitos tutelados e não podem sofrer, por exemplo, corte de energia elétrica caso estejam em situação de comprometimento de sua saúde, mesmo em caso de inadimplemento do titular da conta.

Quanto à vulnerabilidade informacional, mencione-se que o princípio da transparência é um dos mais importantes do direito do consumidor e está bastante relacionado à boa-fé objetiva. É justamente em função da falta de informações do consumidor a respeito dos produtos e serviços e em função das técnicas de marketing que atingem constantemente o aquele que consome que o CDC prevê, em seus artigos 4º, caput e 6º, III o dever de prestação de informações claras e adequadas por parte do fornecedor.

Com relação a álcool e tabaco, a presunção de vulnerabilidade informacional não é absoluta. Isso já foi reconhecido tanto pela doutrina como pela jurisprudência do STJ. Carnaúba (2013) menciona que existe simetria de informação nesse caso, porque o consumidor tem a capacidade de sopesar os riscos decorrentes do uso de tais drogas. Daí a razão pela não existe fundamento para uma proteção diferenciada. Veja-se a ementa do REsp 1.113.804/RS:

RESPONSABILIDADE CIVIL. TABAGISMO. AÇÃO REPARATÓRIA AJUIZADA POR FAMILIARES DE FUMANTE FALECIDO. PRESCRIÇÃO INOCORRENTE. PRODUTO DE PERICULOSIDADE INERENTE. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO A DEVER JURÍDICO RELATIVO À INFORMAÇÃO. NEXO CAUSAL INDEMONSTRADO. TEORIA DO DANO DIRETO E IMEDIATO (INTERRUPÇÃO DO NEXO CAUSAL). IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL.

1. Não há ofensa ao art. 535. do CPC quando o acórdão, de forma explícita, rechaça todas as teses do recorrente, apenas chegando a conclusão desfavorável a este. Também inexiste negativa de prestação jurisdicional quando o Tribunal de origem aprecia a questão de forma fundamentada, enfrentando todas as questões fáticas e jurídicas que lhe foram submetidas.

2. A pretensão de ressarcimento do próprio fumante (cuja prescrição é quinquenal, REsp. 489.895/SP), que desenvolvera moléstias imputadas ao fumo, manifesta-se em momento diverso da pretensão dos herdeiros, em razão dos alegados danos morais experimentados com a morte do fumante. Só a partir do óbito nasce para estes ação exercitável (actio nata), com o escopo de compensar o pretenso dano próprio. Preliminar de prescrição rejeitada.

3. O cigarro é um produto de periculosidade inerente e não um produto defeituoso, nos termos do que preceitua o Código de Defesa do Consumidor, pois o defeito a que alude o Diploma consubstancia-se em falha que se desvia da normalidade, capaz de gerar uma frustração no consumidor ao não experimentar a segurança que ordinariamente se espera do produto ou serviço.

4. Não é possível simplesmente aplicar princípios e valores hoje consagrados pelo ordenamento jurídico a fatos supostamente ilícitos imputados à indústria tabagista, ocorridos em décadas pretéritas - a partir da década de cinquenta -, alcançando notadamente períodos anteriores ao Código de Defesa do Consumidor e a legislações restritivas do tabagismo.

5. Antes da Constituição Federal de 1988 - raiz normativa das limitações impostas às propagandas do tabaco -, sobretudo antes da vasta legislação restritiva do consumo e publicidade de cigarros, aí incluindo-se notadamente o Código de Defesa do Consumidor e a Lei n.º 9.294/96, não havia dever jurídico de informação que impusesse às indústrias do fumo uma conduta diversa daquela por elas praticada em décadas passadas.

6. Em realidade, afirmar que o homem não age segundo o seu livre-arbítrio em razão de suposta "contaminação propagandista" arquitetada pelas indústrias do fumo, é afirmar que nenhuma opção feita pelo homem é genuinamente livre, porquanto toda escolha da pessoa, desde a compra de um veículo a um eletrodoméstico, sofre os influxos do meio social e do marketing. É desarrazoado afirmar-se que nessas hipóteses a vontade não é livre.

7. A boa-fé não possui um conteúdo per se, a ela inerente, mas contextual, com significativa carga histórico-social. Com efeito, em mira os fatores legais, históricos e culturais vigentes nas décadas de cinquenta a oitenta, não há como se agitar o princípio da boa-fé de maneira fluida, sem conteúdo substancial e de forma contrária aos usos e aos costumes, os quais preexistiam de séculos, para se chegar à conclusão de que era exigível das indústrias do fumo um dever jurídico de informação aos fumantes. Não havia, de fato, nenhuma norma, quer advinda de lei, quer dos princípios gerais de direito, quer dos costumes, que lhes impusesse tal comportamento.

8. Além do mais, somente rende ensejo à responsabilidade civil o nexo causal demonstrado segundo os parâmetros jurídicos adotados pelo ordenamento. Nesse passo, vigora do direito civil brasileiro (art. 403. do CC/02 e art. 1.060. do CC/16), sob a vertente da necessariedade, a teoria do dano direto e imediato, também conhecida como teoria do nexo causal direto e imediato ou teoria da interrupção do nexo causal.

9. Reconhecendo-se a possibilidade de vários fatores contribuírem para o resultado, elege-se apenas aquele que se filia ao dano mediante uma relação de necessariedade, vale dizer, dentre os vários antecedentes causais, apenas aquele elevado à categoria de causa necessária do dano dará ensejo ao dever de indenizar.

10. A arte médica está limitada a afirmar a existência de fator de risco entre o fumo e o câncer, tal como outros fatores, como a alimentação, álcool, carga genética e o modo de vida. Assim, somente se fosse possível, no caso concreto, determinar quão relevante foi o cigarro para o infortúnio (morte), ou seja, qual a proporção causal existente entre o tabagismo e o falecimento, poder-se-ia cogitar de se estabelecer um nexo causal juridicamente satisfatório.

11. As estatísticas - muito embora de reconhecida robustez - não podem dar lastro à responsabilidade civil em casos concretos de mortes associadas ao tabagismo, sem que se investigue, episodicamente, o preenchimento dos requisitos legais.

12. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, provido.

(REsp 1113804/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/04/2010, DJe 24/06/2010).

Já quanto à questão do transporte aéreo internacional, a doutrina vinha defendendo que, graças à imperatividade das normas do Código de Defesa do Consumidor, a Convenção de Varsóvia – alterada pela Convenção de Montreal no ano de 2003 – não prevalecia sobre o CDC em matéria de extravio de bagagens. Ocorre que o STF, em 2017, proferiu decisão no RE 636331/RJ, que ganhou repercussão geral, passando a entender da seguinte forma:

Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Extravio de bagagem. Dano material. Limitação. Antinomia. Convenção de Varsóvia. Código de Defesa do Consumidor. 3. Julgamento de mérito. É aplicável o limite indenizatório estabelecido na Convenção de Varsóvia e demais acordos internacionais subscritos pelo Brasil, em relação às condenações por dano material decorrente de extravio de bagagem, em voos internacionais. 5. Repercussão geral. Tema 210. Fixação da tese: "Nos termos do art. 178. da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor". 6. Caso concreto. Acórdão que aplicou o Código de Defesa do Consumidor. Indenização superior ao limite previsto no art. 22. da Convenção de Varsóvia, com as modificações efetuadas pelos acordos internacionais posteriores. Decisão recorrida reformada, para reduzir o valor da condenação por danos materiais, limitando-o ao patamar estabelecido na legislação internacional. 7. Recurso a que se dá provimento

(RE 636331/RJ, Relator (a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-257 DIVULG 10-11-2017 PUBLIC 13-11-2017).

Assim, em que pese a vulnerabilidade do consumidor diante das empresas de aviação aérea, há de se reconhecer que existe mandamento constitucional no sentido de aplicação da norma de direito internacional. Veja-se o teor do art. 178. da Constituição Federal:

Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.

Apesar do que foi exposto acima, lembre-se que o CDC continua sendo aplicado de forma prioritária ao art. 280, I do Código Brasileiro de Aeronáutica no que diz respeito à limitação do quantum indenizável – isso com relação ao transporte aéreo nacional.

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3. DAS COMPETÊNCIAS EM MATÉRIA CONSUMERISTA

Importante perceber que, apesar de o art. 1º do Código de Defesa do Consumidor fazer referência a apenas 3 dispositivos constitucionais, outros devem ser levados em consideração, principalmente para fins de fixação de competências materiais e legislativas. O operador do direito deve observar as competências fixadas nos artigos 22 a 30 da Constituição Federal.

Dessa forma, o art. 22, XXIX da Constituição menciona que é competência privativa da União legislar em matéria de propaganda comercial. Por propaganda comercial deve ser entendida a publicidade, uma vez que a Carta Magna não emprega a precisão de terminologia da doutrina consumerista.

O art. 24, V do texto constitucional estabelece competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar em matéria de produção e consumo; já o inciso VIII estabelece competência concorrente para legislar sobre responsabilidade por dano ao consumidor.

O art. 55. do CDC, inclusive, confirma essas competências: a União, os Estados e o Distrito Federal, em caráter concorrente e nas suas respectivas áreas de atuação administrativa, baixarão normas relativas à produção, industrialização, distribuição e consumo de produtos e serviços.

O poder fiscalizatório se estende aos municípios, nos termos do §1º do art. 55. do CDC. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios fiscalizarão e controlarão a produção, industrialização, distribuição, a publicidade de produtos e serviços e o mercado de consumo, no interesse da preservação da vida, da saúde, da segurança, da informação e do bem-estar do consumidor, baixando as normas que se fizerem necessárias.

O art. 55. contém, ainda, o §3º – o §2º foi revogado: os órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais com atribuições para fiscalizar e controlar o mercado de consumo manterão comissões permanentes para elaboração, revisão e atualização das normas referidas no §1°, sendo obrigatória a participação dos consumidores e fornecedores.

Existe, portanto um princípio participativo no art. 55, §3º. O CDC dá ao consumidor o poder de influenciar, a capacidade de ser ouvido, poder este que já havia sido designado pelo presidente Kennedy em 1962. Trata-se do exercício da cidadania3 pelo consumidor, uma vez que ser cidadão não se resume ao exercício do sufrágio.

Os municípios sempre ficam com uma competência legislativa residual, ou seja, para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I). Exemplo vem consubstanciado na Súmula 645 do STF, que menciona ser competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial. A Súmula Vinculante 38 corrobora tal ideia, estabelecendo que “É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”.

Resta lembrar que o art. 220, §4º do texto constitucional menciona que a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. Aqui, pode-se perceber a face dos princípios da prevenção e precaução.

Segundo a concepção trazida pela professora Teresa Ancona Lopez, o Direito vai encontrar nesses princípios duas formas de amenizar a possibilidade desses novos riscos. Daí que é importante que o operador da ciência jurídica saiba suas origens e consiga localizá-los dentro do Código de Defesa do Consumidor (LOPEZ, 2013).

A Lei 9.294/96 é que regulamentou o art. 200, §4º da Constituição, e ficou conhecida como Lei Murad. O princípio da proporcionalidade é que fundamenta a imposição de restrições à liberdade publicitária, em prol da saúde e segurança dos consumidores. Nessa lei, há, por exemplo, restrição de horário para veiculação de publicidade de bebidas alcoólicas e autorização de veiculação em meios de comunicação comuns apenas dos medicamentos considerados anódinos – aqueles de venda livre. É o que Bruno Miragem denomina de “publicidade restrita” (MIRAGEM, 2016, p. 286).


4. A DEFINIÇÃO DE CONSUMIDOR

O Código de Defesa do Consumidor, no art. 2º, utiliza dois verbos: “adquirir” e “utilizar”. Isso evidencia que consumidor não é apenas a pessoa física ou jurídica que celebra um contrato com o fornecedor, mas também aquele que meramente utiliza o produto ou serviço, estando na qualidade de bystander ou consumidor equiparado. Veja-se:

Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Pois bem. O art. 2º, caput do CDC define que o consumidor pode ser pessoa física ou jurídica. A interpretação dos termos “pessoa física” e “pessoa jurídica”, juntamente com a expressão “destinatário final” vai demonstrar a prevalência da teoria finalista no direito brasileiro, sendo que o STJ a encampa em sua jurisprudência.

O finalismo procura encaixar no conceito de consumidor apenas aqueles que sejam considerados realmente vulneráveis na relação jurídica assimétrica de consumo. Para tal, considera como consumidor aquele que seja o destinatário final e econômico do serviço ou produto. Destinatário final porque retira o bem do mercado. Destinatário econômico porque não o reemprega no mercado para fins de exercício de sua própria atividade, exaurindo a função econômica do bem.

O maximalismo, por sua vez, é a doutrina que procura encaixar no conceito de consumidor um maior número de agentes. Dessa forma, acaba considerando como consumidor todos os destinatários fáticos da relação de consumo, bastando retirar o produto ou serviço do mercado, não precisando haver o seu exaurimento. Essa teoria admite o consumo intermediário, ou seja, o reemprego do bem obtido na atividade do agente.

Há de se mencionar, porém, que houve uma interpretação no STJ de que, com base no art. 29. do CDC, poder-se-ia considerar que pequenas empresas ou determinados profissionais liberais poderiam ser considerados consumidores, desde que comprovada a vulnerabilidade no caso concreto em situações de consumo intermediário, ou seja, eles consomem para reempregar o bem ou serviço na sua atividade econômica. É o finalismo aprofundado. Veja-se a ementa do REsp 1.195.642/RJ:

CONSUMIDOR. DEFINIÇÃO. ALCANCE. TEORIA FINALISTA. REGRA. MITIGAÇÃO. FINALISMO APROFUNDADO. CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO. VULNERABILIDADE.1. A jurisprudência do STJ se encontra consolidada no sentido de que a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica.

2. Pela teoria finalista, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pela Lei nº 8.078/90, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo.

3. A jurisprudência do STJ, tomando por base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29. do CDC, tem evoluído para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem denominando finalismo aprofundado, consistente em se admitir que, em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor.

4. A doutrina tradicionalmente aponta a existência de três modalidades de vulnerabilidade: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor). Mais recentemente, tem se incluído também a vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra).

5. A despeito da identificação in abstracto dessas espécies de vulnerabilidade, a casuística poderá apresentar novas formas de vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo. Numa relação interempresarial, para além das hipóteses de vulnerabilidade já consagradas pela doutrina e pela jurisprudência, a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso, caracterizar uma vulnerabilidade legitimadora da aplicação da Lei nº 8.078/90, mitigando os rigores da teoria finalista e autorizando a equiparação da pessoa jurídica compradora à condição de consumidora.

6. Hipótese em que revendedora de veículos reclama indenização por danos materiais derivados de defeito em suas linhas telefônicas, tornando inócuo o investimento em anúncios publicitários, dada a impossibilidade de atender ligações de potenciais clientes. A contratação do serviço de telefonia não caracteriza relação de consumo tutelável pelo CDC, pois o referido serviço compõe a cadeia produtiva da empresa, sendo essencial à consecução do seu negócio.Também não se verifica nenhuma vulnerabilidade apta a equipar a empresa à condição de consumidora frente à prestadora do serviço de telefonia. Ainda assim, mediante aplicação do direito à espécie, nos termos do art. 257. do RISTJ, fica mantida a condenação imposta a título de danos materiais, à luz dos arts. 186. e 927 do CC/02 e tendo em vista a conclusão das instâncias ordinárias quanto à existência de culpa da fornecedora pelo defeito apresentado nas linhas telefônicas e a relação direta deste defeito com os prejuízos suportados pela revendedora de veículos.

7. Recurso especial a que se nega provimento.

(REsp 1195642/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/11/2012, DJe 21/11/2012).

Quanto ao parágrafo único do artigo 2º do CDC, é um dispositivo que serve para dar fundamento à tutela coletiva dos consumidores, sendo interpretado conjuntamente com o art. 81. do Código. Assim, essa norma traz a ideia de consumidor por equiparação, sendo que determinados grupos – ou mesmo a indeterminação de uma coletividade de consumidores como um todo – ganham proteção jurídica. Veja-se:

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Fala-se, dessa forma, em justiça social também no âmbito do processo civil. Na década de 70, Mauro Capelletti encabeçou aquilo que ficou conhecido como o Projeto de Florença de Acesso à Justiça. Passou-se a falar em três ondas renovatórias de acesso à justiça: a primeira delas dizia respeito à assistência jurídica integral e gratuita; a segunda, à busca da proteção dos interesses difusos e coletivos; e a terceira, à simplificação de procedimentos e realização de métodos alternativos de solução de conflitos (PEDRON, 2016).

A tutela processual do consumidor num viés coletivista observa, então, a influência, na elaboração da Lei da Ação Civil Pública – Lei 7347/85 –, das class actions norte-americanas, além de ser fruto de uma 2ª onda renovatória de acesso à justiça.

Com relação aos interesses transindividuais, pode-se afirmar que os direitos ou interesses difusos são aqueles que têm natureza indivisível e os titulares são pessoas indeterminadas ligadas por circunstâncias de fato. Exemplo: ação movida pelo Ministério Público para evitar o dano ao meio ambiente com base no princípio da prevenção. Outro exemplo: ação ajuizada pelo Ministério Público para a interrupção de publicidade enganosa ou abusiva.

Já os direitos ou interesses coletivos são os de natureza indivisível, sendo que os titulares são um grupo, categoria ou classe de pessoas – os titulares são determináveis – ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base – o vínculo não é de fato e sim de direito. Exemplo: um sindicato defende os direitos de uma determinada categoria de trabalhadores. Outro exemplo: Bessa (2008) menciona a hipótese de ação judicial com objetivo de impedir empresa de plano de saúde ou escola/universidade promova aumento das prestações, contrariando a legislação.

Direitos ou interesses individuais homogêneos, por sua vez, são os que decorrem de origem comum. Após a condenação promovida pelo legitimado coletivo, poderá haver liquidação individual se o prejudicado se habilitar com a finalidade de promover a execução da dívida. A sentença, portanto, é genérica, e num segundo momento do processo existirá a liquidação individual pelos habilitados.

Há de se mencionar ainda que, levando em consideração a capacidade das ações coletivas de tutelarem os direitos difusos, existe doutrina no sentido da necessidade de ampliação do conceito de consumidor contido no CDC, para que haja a passagem de um “paradigma antropocêntrico” para o “paradigma biocêntrico” (FERNANDES, 2016, p. 137-138).

Na obra coletiva 25 anos do Código de Defesa do Consumidor: trajetória e perspectivas, o autor Antonio Joaquim Schellenberger Fernandes vai encampar a linha de pensamento seguida por Lívia Gaigher Bósio Campello e Mariana Ribeiro Santiago, prestigiando os princípios da igualdade, liberdade e proteção ambiental no âmbito da tutela coletiva.

Fernandes (2016) considera que o conceito de consumidor no CDC deve ser revisto, uma vez que trabalha com um paradigma antropocêntrico. Assim, passam a ser inseridos como titulares de direitos na relação de consumo outros conceitos, tais como a segurança alimentar, a qualidade da água, a mobilidade urbana, dentre outros. Considerando os princípios da precaução e prevenção, é de extrema relevância a tutela de tais entes despersonalizados como consumidores por equiparação.

Fernandes (2016, p. 153) entende ser preferível falar em “direito das relações de consumo” e não “direito do consumidor”. Sua proposta é louvável, amplia o papel da ação civil pública e torna evidente que a construção doutrinária e jurisprudencial em torno de uma relação atomizada finalista consumidor/fornecedor não resolve muitos problemas presentes na sociedade.

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Sobre o autor
Thiago dos Santos Rocha

Thiago dos Santos Rocha é um empresário e autor jurídico. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. Especialista em Direito do Consumidor. Atualmente realiza preparação para o concurso público da diplomacia. Site pessoal: www.thiagodossantosrocha.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Thiago Santos. Dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto e serviço no CDC.: Uma análise dos artigos 1º ao 3º do microssistema consumerista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5550, 11 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67844. Acesso em: 5 dez. 2025.

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