6. VETO PRESIDENCIAL
Como garantia da tripartição e harmonia dos poderes (CF, art. 2º) e favorecendo o sistema de freios e contrapesos, permite Constituição brasileira que o Presidente da República participe do controle preventivo de constitucionalidade, autorizando-o a sancionar ou vetar projetos de lei aprovados pelo Congresso, por inconstitucionalidade ou interesse público, devendo, em qualquer caso, motivar os vetos (CF, art. 66, § 1º). Não se esquece que a repartição das funções foi emergida por ARISTÓTELES, mas sua atribuição a órgão distintos ocorreu com a doutrina de MONTESQUIEU. Ensina, TEMER (2000, p. 138), que o "Chefe do Poder Executivo participa do processo de elaboração de lei, seja pela ''iniciativa'', (...) seja pela ''sanção'' (...). Ou, ainda, pelo veto, quando se tenta impedir a modificação do sistema normativo." E que "''vetar'', na significação constitucional, é discordar dos termos de uma projeto de lei."
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (1995, p. 172 ) revela que o Presidente da República "recusa a sanção a projeto de lei já aprovado pelo Congresso, dessa forma impedindo sua transformação em lei. Essa recusa, porém, há de ser fundamentada".
Na mesma orientação dos autores retro, são também as lições de REBELLO PINHO (2002, p. 33/34) e ALEXANDRE DE MORAES (2002, p. 585).
Como se constata, o Presidente da República exerce o controle preventivo de constitucionalidade e de interesse público ao vetar dispositivos de projeto de lei ou por inteiro, sempre motivadamente, como fez por meio da Mensagem n. 25/02 (idem), em relação ao projeto que originou a Lei n. 10.409/02.
7. O VETO AO ARTIGO 56 DO PROJETO DE LEI N. 1.873/1991
Como dito acima, o artigo 56 do Projeto de Lei n. 1.873/1991, da Câmara de Deputados - n. 105/96 no Senado Federal, que deu origem a Lei n. 10.409/2002, dispunha:
"Art. 56. O processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17, 18 e 19, se caracterizado ilícito transnacional, caberão à Justiça Federal.
''Parágrafo único. Se o lugar em que tiverem sido praticados for Município que não seja sede de vara da Justiça federal, o processo e julgamento referidos no caput caberão à Justiça Estadual, com interveniência do Ministério Público respectivo, com recurso para o Tribunal Regional Federal da circunscrição."
Ou seja, seu parágrafo único repetia a essência do artigo 27 da Lei n. 6.368/76, com a devida vênia constitucional (art. 109, § 3º), ambos tratando de delegação de competência (e não procedimento)!. Ocorre que o artigo 56 foi vetado pelo Presidente da República, por orientação do Ministério da Justiça, impedindo sua entrada no ordenamento jurídico, pois o veto gera essa conseqüência.
No caso em questão, entretanto, o raciocínio pode ser outro, como adiante se anota, desde que esmiuçadas e entendidas as razões do veto presidencial.
7.1. O Capítulo IV da Lei n. 6.368/76 foi integralmente derrogado?
Primeiramente, não se pode admitir que todo o Capítulo IV da Lei n. 6.368/76 foi derrogado pela Lei n. 10.409/02. A norma do artigo 27 daquela e do artigo 56 do Projeto desta referem-se a competência, enquanto o mencionado Capítulo IV e os Capítulos IV e V da Lei nova tratam de procedimento. Por isso, a importância de se reconhecer a diferença entre esses dois conceitos: competência é medida da jurisdição; procedimento é o rito, conjunto de atos a serem seguidos.
Evidente que o artigo 27 da Lei n. 6.368/76 cuida de competência e está equivocadamente disposto no capítulo chamado de "Procedimento Criminal". Reforça esse entendimento o fato de o Projeto da Lei 10.409/02 corrigir essa atecnia legislativa, retirando o artigo 56 dos capítulos que determinam sobre procedimento e inserindo-o no "Capítulo VIII - Disposições Finais".
Como retrodito, o novo procedimento não derrogou inteiramente o Capítulo IV da Lei n. 6.368/76, mas tão-somente os artigos que falam do mesmo assunto, qual seja, o procedimento para processar e julgar os crimes relativos a entorpecentes.
Leia-se a ementa do Superior Tribunal de Justiça, já citada: "A Lei n. 6.368/76 permanece em vigor naquilo em que não confronta com a Lei n. 10.409/02, não podendo o magistrado deixar de aplicar o novo rito procedimental, que não foi vetado, produzindo seus efeitos desde a sua edição. A melhor solução para esse conflito aparente de normas encontra-se no art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução do Código Civil, segundo o qual ''a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando com ela seja incompatível ou quando regule inteiramente toda a matéria de que tratava a anterior''". (HC 24779/MS, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Gallotti).
7.2. Razões de veto ao Capítulo III do Projeto de Lei n. 1.873/1991
Compulsando as razões de veto ao art. 56 do Projeto de lei, verifica-se que ele foi feito em apenas duas linhas, in verbis: "O disposto no art. 56 e seu parágrafo único ficam prejudicados em face do veto sugerido ao Capítulo III." Não obstante a laconicidade, muito pode ser extraído dessa declaração. O motivo, como se percebe, foi a instabilidade jurídica que geraria - o que ocorreu em relação ao artigo 27 da nova lei - se fosse aprovado um dispositivo que fizesse remissão a artigos vetados por inconstitucionalidade e seus reflexos.
O Ministério da Justiça (Mensagem, idem), em relação ao capítulo que trazia os tipos e sanções penais, manifestou o seguinte:
"Em que pese a louvável intenção do legislador ao tentar conferir tratamento diferenciado ao consumidor de drogas, há vício de inconstitucionalidade do art. 21, que contamina a íntegra de vários outros artigos do capítulo em questão. (...) Em vista disso, somado o fato de que em vários artigos há remissão expressa ao art. 14, a permanência dos demais artigos do Capítulo III acarretaria difícil e temerária conjugação com os tipos previstos na Lei n. 6.368/76. Isso porque a interpretação extensiva e a analogia são proibidas em direito penal."
Pelo contido na Mensagem (idem), alguns artigos do Capítulo III do Projeto, especialmente o art. 21, feririam os princípios da legalidade e da individualização da pena. Além do mais, outros artigos continham situação desinteressantes do ponto de vista de aplicação das normas penais. E o veto a alguns artigos e a aprovação de outros seria temerário, o que motivou o veto integral ao referido capítulo.
7.3 Razões de veto ao art. 56 do Projeto de Lei n. 1.873/1991
Vetando o Capítulo III, resultou impraticável e igualmente desgostoso manter o art. 56 do Projeto que menciona sua aplicação nos casos dos artigos antes vetados. Logo, o veto do art. 56 foi decorrente de sua prejudicialidade em relação ao Capítulo III, não por falta de constitucionalidade ou de inconsistência de seu conteúdo. Ou seja, foi um veto meramente formal, por ricochete, não atingindo seu mérito. Não se quer dizer que um dispositivo rejeitado deve ter eficácia. Mas que sua essência pode ser aproveitada, pois não padece de vícios de inconstitucionalidade ou desinteresse público.
8. VIGÊNCIA DO ARTIGO 27 DA LEI N. 6.368/76
Para se afirmar que o artigo 27 da Lei 6.368/76 mantém-se intacto é interessante trazer à luz o confronto de vários vetores, alguns deles já vistos antes.
Nesse condão, deve-se mentalizar que a Lei n. 6.368/76 não foi ab-rogada, mas somente derrogada no que pertine ao procedimento (e não a critério de competência!). Veja-se o que dispõe o art. 9º da Lei Complementar n. 95/98: "a cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou dispositivos revogados".
O art. 59 do Projeto de Lei previa expressamente a revogação da Lei n. 6.368/76. Mas esse artigo também foi vetado, pois "a cláusula que revoga a Lei n. 6.368/76 não deve persistir, sob pena de abolição de diversos tipos penais, entre outros efeitos nocivos ao interesse público." (cf. Mensagem 25/02, idem).
Com isso, a Lei n. 6.368/76 continuar em vigor naquilo que não contrariar a novel legislação. Observe-se que a intenção da Presidência da República é expressa em manter os artigos definidores de crime da lei antiga e outros dispositivos igualmente interessante, dentre os quais o de delegação de competência à Justiça Estadual, no caso de traficância internacional.
Isso é revelado pela vontade legislativa ao introduzir o artigo 56 no Projeto, bem como as razões de veto não fazerem menção alguma quanto sua inconveniência, mas estritamente utilizou o critério de prejudicialidade, mesmo porque não poderia vetar apenas palavras (CF, art. 66, § 2º).
Talvez seja esse o exercício intelectual a ser feito para verificar a higidez do art. 27 da Lei n. 6.368/76. MIGUEL REALE (1995, p. 285) leciona que "interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é aplicável a todos os casos que correspondem àqueles objetivos."
Diga-se, sobretudo, que a instrução feita no local do delito é mais robusta e viva do ponto de vista probatório, revelando útil manter a regra de delegação de competência à Justiça Estadual. Sobre a questão do foro, GRINOVER, SCARANCE FERNANDES E GOMES FILHO (2001, p. 53) ditam que "no processo penal a competência territorial comum, pelo foro da consumação do delito (CPP, art. 70), é estabelecida mais no interesse público do que no da parte: é mais provável conseguir provas idôneas onde se deram os fatos, tanto assim que alguns ordenamentos elevam a nível constitucional a regra do ''forum comissi delicti''."
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, autêntico protetor das leis federais e condutor das orientações que cuidam de matérias não-constitucionais, caminha remansosamente ao entendimento de que o artigo 27 da Lei n. 6.368/76 foi recepcionado pela Constituição Federal e mantém-se aplicável:
"RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTES. ''ECSTASY''. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ALEGAÇÃO DE SER INCOMPETENTE A JUSTIÇA ESTADUAL PARA ANÁLISE DO FEITO. MUNICÍPIO QUE NÃO É SEDE DE VARA FEDERAL,. COMPETÊNCIA DELEGADA A TEOR DO ART. 27, DA LEI N. 6.368/76 E ART. 109, INCISO V E § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. FALTA DE INDÍCIOS DE AUTORIA. INOCORRÊNCIA.
''Não sendo o município sede de vara da Justiça Federal, compete à justiça comum processar e julgar os crimes de tráfico internacional de entorpecentes. É o que dispõe o art. 27 da Lei 6.368/76, recepcionado pela CF/88'' (HC 75.173, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado em 17.06.97, Informativo n. 76, do STF.
''(...)" (RHC 12029/SC, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 27.11.2001, grifo atuais).
"HABEAS CORPUS. TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTES. (...) JUSTIÇA ESTADUAL. INCOMPETÊNCIA RELATIVA. PRECLUSÃO. (...)
1. Em não sendo a Comarca sede de Juízo Federal, competente é a Justiça Estadual, ex vi do artigo 27 da Lei 6.368/76, para processar e julgar o feito relativo a tráfico internacional de drogas. (...)" (HC 22893/RS, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 19.09.2002, grifos atuais).
O Supremo Tribunal Federal, defensor universal, não-exclusivo, da constitucionalidade normativa, apontou recentemente (22.02.2005), através de sua Primeira Turma - num debate sobre a competência federal absoluta em razão da matéria (crime cometido a bordo de aeronave) em confronto com a competência territorial por delegação - que o artigo 27 da Lei n. 6.368/76 continua em vigor, conforme noticiado no seu Informativo n. 377:
"Salientou-se, também, o caráter federal da jurisdição exercida por juiz estadual na hipótese do citado art. 27 da Lei 6.368 (...), reforçado pelo disposto no art. 108, II, da CF, que determina caber aos Tribunais Regionais federais o julgamento de recurso das causas decididas pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição". (HC 85059/MS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 22.02.2005).
A decisão que mais tem força orientadora, no entanto, é a proferida pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que reúne as duas Turmas criminais (5ª e 6ª), composta pelos eminentes Ministros Laurita Vaz (Relatora), Felix Fischer (Presidente), Paulo Medina, Hélio Quaglia Barbosa, Arnaldo Esteves Lima, Nilson Naves, José Arnaldo da Fonseca, Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti. Saliente-se que o julgamento foi por unanimidade, chamando a atenção também a sua data: 23.02.2005 (um dia após a decisão do STF retro), publicado ainda neste mês, em 07.03.2005:
"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. TRÁFICO INTERNACIONAL. JUÍZO ESTADUAL. DELEGAÇÃO. EXPEDIÇÃO DE CARTA PRECATÓRIA. CUMPRIMENTO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1.Nos termos do art. 27 da Lei n. 6.368/76, c.c. art. 109, inciso V, e § 3º, da Constituição Federal, se o crime de tráfico internacional ocorreu em local que não é sede de Vara da Justiça Federal, caberá à Justiça Estadual processar e julgar o feito por delegação.
2.O cumprimento de carta precatória expedida por Juízo Estadual, no exercício de competência federal delegada deverá ser realizado por Juízo Federal.
3.(...)". (CC 40396/AM, STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 23.02.2005, publ. 07.03.2005, p. 138, grifos atuais).
Esse último decisum, corroborado especialmente pelo HC 85059 do STF, resume todo o trabalho exposto e responde à questão sugerida, conferindo vigência normativa ao artigo 27 da Lei n. 6.368/76. Com efeito, não há incompatibilidade seja vertical, seja horizontal, entre o art. 27 da lei velha com a Constituição Federal ou com a lei nova. Dessa maneira, sua vigência continua incólume, devendo ser aplicado aos casos de tráfico transnacional, desde que praticado em Municípios que não tenham sede da Justiça Federal, a teor da Súmula 522 do Supremo Tribunal.
9. CONCLUSÃO
Competência é a medida e o limite da jurisdição, utilizado como critério para distribuí-la entre os vários órgãos do Poder Judiciário (FREDERICO MARQUES, 1998, p. 220.).
A lei infraconstitucional pode delegar competência à Justiça Estadual local nos Municípios que não forem sede de Justiça Federal (art. 109, § 3º, da Constituição Federal).
Processo
é a relação jurídica pela qual o Estado procede à composição da lide, aplicando o direito ao caso concreto e dirimindo os conflitos de interesses (CAPEZ, 2001, p. 13).Procedimento
, ou rito processual, é a sucessão ordenada, a concatenação de atos processuais para exteriorização do processo (MIRABETE, 1998, p. 475).A revogação é o fenômeno que retira uma norma do ordenamento jurídico e manifesta-se em duas espécies: ab-rogação é a extinção total da norma anterior; a derrogação torna sem efeito uma parte da norma.
A revogação pode ser expressa, quando a nova lei declarar a retirada das normas anteriores, ou tácita, se houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga ou se as novas disposições regularem integralmente matéria tratada pelas anteriores (LICC, art. 2º, § 1º).
A nova lei derrogou somente os artigos da Lei n. 6.368/76 que tratam de procedimento, pois regula inteiramente a matéria.
Vetar
, na significação constitucional, é ato do Presidente da República de discordar dos termos de uma projeto de lei. (TEMER, 2000, p. 138).O Capítulo III da Lei n. 10.409/02 foi vetado, por vício direto e reflexo de inconstitucionalidade, por ofender os princípios da legalidade e individualidade de pena.
O veto ao art. 56 do Projeto da Lei n. 10.409/02 utilizou-se apenas do critério de prejudicialidade, pois fazia remissão aos tipos penais antes vetados, mesmo porque não poderia vetar palavras. Não fez menção alguma à sua inconstitucionalidade ou inconveniência quanto ao mérito.
A orientação da Súmula 522 do Supremo Tribunal Federal continua: "Salvo ocorrência de tráfico com o Exterior, quando, então, a competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados o processo e o julgamento dos crimes relativos a entorpecentes."
Dispunha a Súmula 54 do Tribunal Federal de Recursos: "Compete à Justiça Estadual de primeira instância processar e julgar os crimes de tráfico internacional de entorpecentes, quando praticado o delito em comarca que não seja de Vara do Juízo Federal."
Conclui-se, portanto, que a vigência do artigo 27 da Lei n. 6.368/76 continua ilesa. O processo e julgamento dos crimes de tráfico transnacional de entorpecentes, originalmente de competência da Justiça Federal, serão delegados à Justiça Estadual do Município que não tenha Vara Federal, entendimento esse reforçado pelos recentes julgados do STF (HC 85059) e STJ (CC 40396/AM).
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