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A Emenda Constitucional nº 45/04, a súmula vinculante e o livre convencimento motivado do magistrado.

Um breve ensaio sobre hipóteses de inaplicabilidade

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4. ALGUMAS HIPÓTESES DE INAPLICABILIDADE DA SÚMULA VINCULANTE.

Neste tópico explorar-se-ão algumas virtuais hipóteses de não-aplicação da súmula vinculante pelos órgãos judicantes, tendo em vista livre convencimento destes, obtido por uma acurada observância às regras da hermenêutica jurídica.

A) O órgão judicante entende inconstitucional a EC nº 45/04, no que se refere à adoção da súmula vinculante;

A Constituição da República brasileira consagra um sistema misto de controle de constitucionalidade [18], vale dizer, em nosso sistema jurídico é possível a realização de controle concentrado – o dito modelo austríaco de controle de constitucionalidade -, levado a cabo por uma Corte Constitucional – o STF -, e também, a realização de controle difuso – dito modelo norte-americano de controle de constitucionalidade -, o qual pode ser realizado por qualquer órgão judicante, no caso sub judice, valendo entre as partes.

Assim, em nosso sistema, qualquer órgão investido de jurisdição pode, no caso concreto, para gerar efeitos inter partes, declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, afastando sua aplicabilidade.

Durante a tramitação da Emenda Constitucional nº 45/04 e mesmo após sua vigência, inúmeras foram as vozes que questionaram sua validade face a Carta Constitucional de 1988, especialmente no que se relaciona com o duplo grau de jurisdição [19], supressão de instância e, notadamente, com a independência dos magistrados, dentre outros argumentos amplamente difundidos pelo acirrado debate travado sobre o tema.

Ora, a EC nº 45/04 não aboliu, até onde nos conste, o controle difuso de constitucionalidade. Por conseguinte, qualquer juiz possui, ainda, a faculdade de deixar de aplicar normas que entenda inconstitucionais, nos casos de sua competência.

Nem mesmo as normas constitucionais, oriundas do Poder Constituinte Derivado, estão imunes ao controle de constitucionalidade, seja este concentrado, seja difuso.

Nesses termos, é evidente que há a possibilidade de determinado magistrado ou Tribunal [20], no exercício da interpretação do ordenamento ao aplicar a lei ao caso concreto, entender plausível uma ou mais das objeções argüidas contra a súmula vinculante, já referidas, deixando de aplicar a mesma, dando a EC nº 45/04, no particular, por inconstitucional, de modo que o novel art. 103-A não seria aplicado, no caso concreto.

Nem se argumente com base em lugares comuns como os seguintes: a) que o Supremo Tribunal Federal é a Corte Constitucional, à qual compete a guarda da Constituição, vez que é sabido que diversos fatores influenciam os julgados desta e de qualquer outra corte, não necessariamente jurídicos. Ou b) que ao Pretório Excelso compete dar a última palavra sobre tema constitucional, e que a decisão divergente virá a ser reformada, seja em sede de recurso, seja através do manejo da reclamação prevista no § 3º do art. 103-A, eis que recurso é, de regra, voluntário, e não se presume. A inércia da parte, ou o desatendimento dos pressupostos recursais, v.g., dentre inúmeros outros fatores, podem impedir a subida dos autos, permitindo o trânsito em julgado da decisão, tornando definitiva a decisão assim prolatada. [21]

Assim, resta evidenciado que o magistrado ou Tribunal, no exercício de seu livre convencimento, tem o dever de deixar de aplicar normas que venham a entender por inconstitucionais, e que decisão de tal feição tem plenas condições de transitar em julgado, podendo vir a fazer justiça no caso concreto.

B) O órgão judicante entende inconstitucional o próprio teor da súmula do Pretório Excelso;

O mesmo raciocínio desenvolvido no item precedente serve para fundamentar a presente hipótese. Ainda que o órgão judicante não entenda inconstitucional a Emenda Constitucional nº 45/04 ou o instituto da súmula vinculante, em si mesmo, poderá vir a entender inconstitucional o próprio teor de determinada súmula – o que é perfeitamente possível, haja vista o Princípio do Livre Convencimento, a liberdade hermenêutica de que goza o juiz e, ainda, a diversidade de entendimentos sobre os mais variados assuntos, na jurisprudência -, ainda que tal súmula tenha tido origem no Pretório Excelso – pelas mesmas razões já apontadas linhas atrás -.

Em nosso sistema – civil law, ou romano-germânico, e ainda constitucionalista, lembre-se -, há predominância da lei sobre qualquer outra fonte do direito [22], e da Constituição sobre todo o ordenamento.

Ora, se em tal sistema, pode qualquer órgão regularmente investido de jurisdição [23], afastar a aplicação da lei, pedra angular do dito sistema, por entendê-la inconstitucional, por acaso não poderá fazê-lo com a jurisprudência [24] – gênero no qual se inserem as súmulas -, em semelhante hipótese, ainda que vinculante [25]? A resposta é sim, eis que, quem pode o mais, pode o menos.

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Deste modo, conclui-se constituir prerrogativa do órgão judicante – ou, antes, dever do mesmo - afastar a aplicação de súmula, ainda que vinculante, caso esteja convencido de sua inconstitucionalidade, fundamentando, para tanto, sua decisão, em homenagem ao art. 93, IX, da Carta Magna.

C) O órgão judicante entende inexistir identidade entre os pressupostos fáticos ou jurídicos dos precedentes que ensejaram a súmula e aqueles do caso sub judice;

Outra hipótese de inaplicabilidade da súmula vinculante é aquela em que o órgão judicante, ao analisar o caso concreto para julgamento, convence-se de que, a despeito de aparente aplicabilidade de determinada súmula ao mesmo, ou da postulação em tal sentido por uma das partes, estão ausentes um ou mais pressupostos fáticos ou jurídicos essenciais à sua aplicação.

Como visto precedentemente, assim como a EC nº 45/04 não tolheu aos órgãos judicantes o controle difuso de constitucionalidade, tampouco derrogou com o Princípio do Livre Convencimento e com o Princípio da Persuasão Racional.

Continua vigente em nosso sistema jurídico, o princípio de que o juiz é livre para decidir a lide de conformidade com o seu convencimento, observados os limites legais e constitucionais.

Aliás, isto faz parte do próprio munus ínsito à função na qual encontra-se investido o magistrado, é seu dever, e corolário do Princípio do Devido Processo Legal Constitucional. [26] Assim sendo, violação a tal princípio seria inconstitucional, até mesmo por ferimento ao Princípio do Devido Processo Legal Constitucional.

A identidade fático-jurídica entre os precedentes que originaram a edição da súmula e o caso sub judice é indispensável à aplicação da mesma. Daí a importância de conhecer-se e estudar-se não somente o mero enunciado das súmulas, mas também o teor dos precedentes que a originaram.

Pois conforme ensina RECASÉNS SICHES [27], citado por PLAUTO FARACO DE AZEVEDO:

"A validade das normas jurídicas positivas está necessariamente condicionada pelo contexto situacional em que e para que se produziram." [28] (sem destaques no original).

Mutatis mutandis, pode-se afirmar o mesmo a respeito de jurisprudência vinculante.

A aplicação de jurisprudência, sumulada ou não, a determinado caso pressupõe, inexoravelmente, a identidade no plano dos fatos, bem como do direito. Ausente algum desses pressupostos, torna-se ilegítima e inconstitucional a pretendida aplicação.

De se lembrar, sempre, o ensinamento de CARLOS MAXIMILIANO:

"Uma decisão isolada não constitui jurisprudência; é mister que se repita, e sem vacilações de fundo. O precedente, para constituir jurisprudência, deve ser uniforme e constante.". [29]

Lembra-se, com freqüência, do requisito de constância – leia-se, reiteração -, para qualificar determinado posicionamento judicial sobre determinado assunto como jurisprudência, mas esquece-se, também freqüentemente, do requisito uniformidade e, especialmente, a essencial identidade de fundo – fático-jurídica -, para assim poder qualificá-la.

Verificando-se discrepância, ainda que parcial, entre os fatos ou o direito regente da situação que originou o litígio e os fatos ou o direito regente das situações ensejadoras da súmula – vale dizer, seus precedentes -, é de se declará-la inaplicável.

Em tal hipótese, resta evidente possuir o órgão judicial a prerrogativa e até mesmo o dever de, fundamentadamente, afastar a aplicação da súmula no caso concreto, decidindo conforme o seu livre convencimento, através das regras usuais da hermenêutica, das regras sobre o ônus da prova, dos elementos de prova constantes dos autos, das regras da experiência comum, presunções, etc., lançando mão de todos os demais recursos de que dispõe.

É dever do órgão judicante ser criterioso na aplicação de súmula – vinculante ou não – realizando meticulosa verificação da identidade ou similitude entre o caso concreto e o preceituado por aquela. Ausente tal identidade de fundo entre os pressupostos fático-jurídicos da súmula e os do caso sub judice, impõe-se sua não-aplicação.

D) A súmula padece de vício formal – procedimental – em sua adoção;

Como vimos no capítulo introdutório a este ensaio, a própria Carta Magna exige diversos requisitos para que a súmula possa produzir efeitos vinculantes. Tais requisitos, uma vez ausentes, impedirão peremptoriamente a produção de tais efeitos, em virtude de inquinada de insanável inconstitucionalidade.

Assim, a teor do texto constucional, não estará hábil à produção de tais efeitos caso tenha restado inobservado um dos seguintes requisitos: a) ausência do quorum de 2/3 exigido pelo caput do art. 103-A para a aprovação da súmula; b) ausência de publicação pela imprensa oficial; c) revisão ou cancelamento da súmula desrespeitando o disposto em lei que venha a regulamentar tais procedimentos – art. 103-A, caput -.

Em todas estas hipóteses, se porventura vier a ser publicada súmula, não há que se falar em caráter vinculante da mesma, vez que se tratam de requisitos exigidos pela própria Carta Fundamental para a produção de seus efeitos, de modo que será totalmente legítima, legal e conforme à Constituição a recusa, por parte do órgão judicante, em aplicá-la.

E) A súmula não preenche os pressupostos constitucionais para sua adoção.

Ainda vislumbra-se uma última hipótese na qual a virtual recusa de aplicação da súmula seria legítima e conforme ao ordenamento. Trata-se daquela hipótese de a súmula não preencher os pressupostos do caput - a saber, basear-se em reiteradas decisões sobre matéria constitucional - ou os do § 1º do art. 103-A da CR - a saber, ter por objeto a validade, interpretação e eficácia e de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judicantes, ou entre esses e a administração pública, e seja tal divergência apta a acarretar grave insegurança jurídica e a multiplicação de processos sobre questão idêntica.

Deste modo, se não houverem reiteradas decisões no sentido da súmula proposta, ou se esta não versar sobre matéria constitucional [30], ou se não se referir à validade, interpretação e eficácia de normas determinadas, ou se entre tais normas não haja controvérsia entre órgãos judicantes [31], ou entre estes e entre a administração pública, ou se, havendo a controvérsia, esta não seja atual, mas encontre-se superada, ou ainda, se tal divergência não se revele apta a acarretar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica – note-se que a Constituição utilizou a conjunção aditiva e, e não a alternativa ou, de modo que exige ambos os requisitos, tanto a insegurança quanto a relevante multiplicação, cumulativamente, e, por fim, que a multiplicação de processos refira-se a questão idêntica – não similar, nem análoga, mas rigorosamente idêntica -.

De todo o exposto, restam diversas hipóteses de inaplicabilidade, devendo o órgão judicante, verificadas tais hipóteses, afastar sua incidência.

Sobre os autores
Geziela Jensen

Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Membro da Société de Législation Comparée (SLC), em Paris (França) e da Associazione Italiana di Diritto Comparato (AIDC), em Florença (Itália), seção italiana da Association Internationale des Sciences Juridiques (AISJ), em Paris (França). Especialista em Direito Constitucional. Professora de Graduação e Pós-graduação em Direito.

Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JENSEN, Geziela; SGARBOSSA, Luis Fernando. A Emenda Constitucional nº 45/04, a súmula vinculante e o livre convencimento motivado do magistrado.: Um breve ensaio sobre hipóteses de inaplicabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 708, 13 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6884. Acesso em: 22 nov. 2024.

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