5. UMA ÚLTIMA REFLEXÃO: A SÚMULA VINCULANTE E A NULIDADE CONSTITUCIONALMENTE COMINADA PELO ART. 93, IX DA CF.
Como forma de combater o arbítrio – sempre incompatível com o Estado Democrático de Direito -, a Constituição Federal de 1988 veio a exigir a fundamentação de todas as decisões judiciais, no inciso IX do art. 93.
Neste sentido, a lição de CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO:
"Por isso, diversas Constituições – como a belga, a italiana, a grega e diversas latino-americanas – haviam erguido o princípio da motivação à estatura constitucional, sendo agora seguidas pela brasileira de 1988, a qual veio adotar em norma expressa (art. 93 inciso IX), o princípio que antes se entendia defluir do § 4º do art. 153 da Constituição de 1969." [32]
Dentre os diversos escopos visados pela Carta Constitucional com tal exigência, encontram-se, especialmente, aqueles de possibilidade de revisão das decisões – presume-se mais fácil de ser reformada em outro grau de jurisdição decisão na qual o magistrado trouxe à lume as razões da mesma, por ser mais viável demonstrar seu desacerto -, bem como o controle da sociedade sobre os órgãos judicantes – razão pela qual encontra vínculo estreito com o Princípio da Publicidade.
O dever de motivar, ou dever de fundamentação, mantém estreita ligação, portanto, com o Princípio do Devido Processo Legal Constitucional. JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE ensina que:
"o dever de motivação das decisões judiciais, qualquer que seja seu conteúdo, constitui garantia constitucional do devido processo legal (CF, art. 93, IX)." [33](sem destaques no original).
A EC nº 45/04 alterou a redação do referido inciso, mas não extinguiu nem restringiu tal exigência. A Constituição da República, tanto em seu texto original como no texto atual, comina nulidade às decisões que descurarem de tal dever.
Explica-se o problema: parece-nos que conferir força vinculante a determinado posicionamento judicial sobre determinado objeto implica em impedir as instâncias inferiores de, naquele assunto em particular, decidir diversamente – o que foi o próprio objeto da criação do instituto -.
Ocorre que, para tanto, o magistrado deixará de lançar todos os consideranda de sua motivação, como tradicionalmente o faz, devendo decidir, como único fundamento, nos seguintes termos: "Tendo em vista o teor da Súmula nº... do STF, cuja força é vinculante, DECIDO:... ".
Verifica-se, nos casos de simples aplicação da súmula, completa omissão de fundamentação. Passar-se à diretamente do relatório ao dispositivo, resumindo-se a motivação à frase acima. Onde estará, em casos tais, a fundamentação, constitucionalmente exigida, sob pena de nulidade?
Nem se argumente com base em remissões às razões da própria súmula, de seus precedentes. A nosso juízo, a simples remissão aos fundamentos das decisões, é de flagrante inconstitucionalidade, por afronta ao inciso IX do art. 93, sendo todas as decisões assim proferidas, portanto nulas. [34]
Assim sendo, resta uma questão em aberto: como compatibilizar a novíssima súmula vinculante [35], com o Princípio da Motivação ou Fundamentação das Decisões referido?
Apenas parece oportuno repisar que a norma constitucional que exige a fundamentação das decisões é norma constitucional originária, o que não se verifica com o novel instituto. Seria constitucional a adoção da súmula vinculante, se ela entra em conflito com uma garantia fundamental do devido processo legal como a referida?
6. CONCLUSÃO
Logo, vê-se a gravidade de se adotar, em determinado sistema jurídico, institutos simplesmente transplantados de outro, haja vista a ampla incompatibilidade que este, freqüentemente, encontrará com inúmeros outros institutos do sistema, em prejuízo de todo o referido sistema.
É pacífico que restam definitivamente superados sistemas jurídicos como aqueles da prova legal, de feição napoleônica, por incompatíveis com o Estado Democrático de Direito e com o devido processo legal.
Democracia implica em respeito ao pluralismo e à diversidade, e sujeição às decisões judiciais, ainda que desfavoráveis ao Príncipe – Estado-administração.
CHAÏM PERELMAN e LUCIE OLBRECHTS-TYTECA, com propriedade, doutrinam:
"Já não se trata de privilegiar a univocidade da linguagem, a unicidade a priori da tese válida, mas sim de aceitar o pluralismo, tanto nos valores morais como nas opiniões. A abertura para o múltiplo e o não-coercitivo, torna-se então, a palavra-mestra da racionalidade." [36]
Em tempos de prestígio do Princípio da Proporcionalidade e da Razoabilidade, exige-se comedimento na aplicação, pelo Poder Judiciário, do referido instituto, sob pena de violar, em última análise, o Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, inscrito no inciso XXXV do artigo 5º, garantia das garantias e direitos fundamentais, por assegurar todos os demais, eis que o exercício legítimo da jurisdição exige liberdade de decidir para os órgãos judicantes componentes do sistema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à Dogmática e Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris Editor, 1989.
BASTOS, Celso Ribeiro; TAVARES, André Ramos. As tendências do Direito Público no limiar de um novo milênio. São Paulo : Saraiva, 2000.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 14ª ed. São Paulo : Malheiros, 1997.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. 12ª ed. São Paulo : Saraiva, 2000.
MARCATO, Antonio Carlos (coord.). Código de Processo Civil interpretado. São Paulo : Atlas, 2004.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro : Forense, 2001.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e legislação constitucional. 4ª ed. São Paulo : Atlas, 2004.
PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. A nova retórica. São Paulo : Martins Fontes, 1996.
SCHNAID, David. Filosofia do Direito e Interpretação. 2ª ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2004.
SILVA, Kelly Susane Alflen da. Hermenêutica Jurídica e Concretização Judicial. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris Editor, 2000.
Notas
1 Vale dizer, aqueles constantes do rol do art. 103, I a IX da CR, ou seja: a) Presidente da República; b) Mesa do Senado Federal; c) Mesa da Câmara dos Deputados; d) Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa, no caso do Distrito Federal; e) Governador de Estado ou do DF; f) Procurador-Geral da República; g) Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB; g) Partido político com representação no Congresso Nacional; h) Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
2 Na realidade, o vocábulo grego se escreve ermhneuein, conforme consta da própria obra citada, p. 45, ainda no primeiro parágrafo.
3 SILVA, Kelly Susane Alflen da, Hermenêutica Jurídica e Concretização Judicial, p. 45.
4 Op. cit., p. 1.
5 Apud SILVA, Kelly Susane Alflen, op. cit., p. 75. Tradução da autora: "Por causa disso, forma-se, antes da arte da interpretação, a exposição de suas regras. E pelo antagonismo entre regras, pelo conflito de diversas orientações sobre a indispensável interpretação das obras e esta necessidade tão condicionada de constituir a regra, que se originou a ciência hermenêutica."
6 MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 1.
7 AZEVEDO, Plauto Faraco de, Crítica à Dogmática e Hermenêutica Jurídica, p. 14.
8 Conferir DINIZ, Maria Helena, Compêndio de introdução à ciência do Direito, p. 423.
9 Conferir DINIZA, Maria Helena, op. cit. P, 426.
10 Conferir DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 424.
11 Op. cit., p. 427.
12 Op. cit., p. 425.
13 SCHNAID, David, Filosofia do Direito e Interpretação, p. 274.
14 Neste sentido: ZWEIGERT e MARIA HELENA DINIZ, op. cit., p. 427.
15 Op. cit., p. 150.
16 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel, Teoria Geral do Processo, p. 68.
17 Apurd MARCATO, Antonio Carlos (coord.), Código de Processo Civil interpretado, p. 365.
18 Neste sentido, MORAES, Alexandre de, Constituição do Brasil Interpretada e legislação constitucional, p. 2.373.
19 Neste sentido, FÁBIO KONDER COMPARATO, mencionado por ANDRÉ RAMOS TAVARES in BASTOS, Celso Ribeiro, TAVARES, André Ramos, As tendências do direito público no limiar de um novo milênio, p. 177.
20 Este, apenas através de seu pleno ou órgão especial, jamais por órgão fracionário, em virtude da cláusula de reserva de plenário inserta no art. 97 da Constituição da República.
21 Relembre-se, ainda, por oportuno, o caráter excepcional do Recurso Extraordinário.
22 O contrário do que se verifica no sistema do common law, imperante na Inglaterra e nos Estados Unidos, notadamente, em que a importância da lei é mitigada, e a dos precedentes judiciais exacerbada.
23 Salvo órgãos fracionários de Tribunais – Câmaras, Turmas, Seções, etc. -, pelas razões constantes da nota 19, supra.
24 Cujo caráter vinculante é novo e controvertido, e cuja inserção dentre as fontes do direito é questão jamais pacificada na doutrina.
25 E, lembre-se que a lei só é lei exatamente por ser vinculante.
26 Conceito delineado em nossa monografia "Do Reexame Necessário em Matéria Penal no Ordenamento Jurídico Brasileiro Contemporâneo", defendida por ocasião de nossa graduação em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG, ainda inédita (Luís Fernando Sgarbossa).
27 Apud "Nueva Filosofia de la interpretación del derecho", 2ª ed., Mexico : Porrua, 1973.
28 Op. cit., p. 16.
29 Op. cit., p. 151.
30 Note-se que o dispositivo constitucional, ao exigir que a súmula refira-se a matéria constitucional, tão somente, impede a adoção de súmula com caráter vinculante, pelo STF, em matéria infraconstitucional, invadindo a esfera de competência do STJ.
31 Donde se infere que, caso determinada interpretação de norma jurídica seja uniforme nos pretórios, não poderá o Supremo aprovar súmula em sentido contrário, por ausente o pressuposto constitucional da controvérsia.
32 Op. cit., p. 68.
33 Apud MARCATO, Carlos Antonio (coord.), op. cit., p. 365.
34 O mesmo vício inquina, em nosso juízo, a Lei nº 9.099/95, que em seu art. 46 permite que as Turmas Recursais mantenham a sentença com base em seus próprios fundamentos. A inconstitucionalidade é patente. Celeridade não justifica fazer tabula rasa dos direitos que deveriam ser protegidos pelo processo – detrimento dos fins em nome dos meios. Conferir artigo de nossa lavra intitulado "A EC nº 45/04 e o Princípio da Celeridade ou Brevidade Processual", publicado no Boletim Jus Navigandi de 05.05.2005, e no Boletim Temático Jus Navigandi de 10.05.2005, disponível em https://jus.com.br/artigos/6676/a-emenda-constitucional-n-45-04-e-o-principio-da-celeridade-ou-brevidade-processual
35 Assim que adotada pelo Supremo, conforme os trâmites preconizados pela EC nº 45/04, já estudados, evidentemente.
36 PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie, Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 20.