Como é sabido, a Lei Falimentar traz regras tanto de direito material quanto de direito processual. E uma das disposições de direito processual de fundamental importância é aquela que estabelece o foro competente para decretação da falência, deferimento da recuperação judicial e homologação do plano de recuperação extrajudicial.
Por esta regra, elege-se o local do principal estabelecimento como foro competente para se ingressar com pedido de falência e de recuperação de empresas. Dessa forma, se um ente empresarial possui diversos estabelecimentos (por exemplo, um estabelecimento em São Paulo, outro no Rio de Janeiro, e outro em Belém) somente o juízo da Comarca de onde estiver localizado um desses estabelecimentos - o estabelecimento principal - é que será competente para apreciar pedidos de falência e de recuperação relativos a ele.
Logo, uma vez sendo decretada a falência ou a recuperação judicial, onde estiver localizado o estabelecimento principal, todos os credores sujeitos a tais medidas (mesmo que tenham negociado com outro estabelecimento) deverão acorrer ao foro universal legalmente eleito, para realizar os atos processuais necessários à defesa de seus interesses.
Portanto, inegável a importância de se delimitar a contento qual é o estabelecimento principal de um empresário, pois a conclusão de tal investigação por certo que, em caso de falência ou recuperação judicial, trará grande influência para os credores.
2 Previsão legal do foro competente para o processo de falência ou recuperação
O artigo 7º do Decreto-lei nº 7661/1945 (cuja vigência expirará cento e vinte dias após a publicação da nova Lei (1)) estabelece que: "É competente para declarar a falência o juiz em cuja jurisdição o devedor tem o seu principal estabelecimento ou casa filial de outra situada fora do Brasil".
A Lei nº 11.101/2005 (nova Lei de Falências), no mesmo passo, dispõe em seu artigo 3º que: "É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil".
Ambos os diplomas legais, conforme visto, definem que o foro competente para os processos por eles regulados (2) é o do principal estabelecimento do devedor. Com a ressalva de que, se este estabelecimento principal não estiver situado no Brasil, torna-se competente o foro da casa filial situada dentro do nosso país.
À primeira vista parece muito simples, então, se estabelecer qual é o juízo competente para apreciar as demandas fundadas na Lei Falimentar.
As coisas, todavia, não são bem assim, posto não haver uma posição definitiva acerca da exata definição do conceito de estabelecimento principal (3), pois este não foi estabelecido legalmente; e ainda, a doutrina e jurisprudência não têm posições consensuais a respeito do mesmo, segundo melhor explicitaremos no tópico seguinte.
3 As conceituações de "principal estabelecimento"
De início, esclareçamos que "considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária" (4). Assim, estabelecimento não se resume ao local onde é exercida a empresa, mas sim compõe-se de todos os bens corpóreos e incorpóreos que o empresário individual ou sociedade empresária lançam mão para exercer sua atividade empresarial. Em nossa visão, porquanto, estabelecimento é uma universalidade de fato, pois se encaixa perfeitamente nas disposições do artigo 90 do Código Civil (5).
Portanto, assentado o que seja estabelecimento, necessário se esclarecer a noção de estabelecimento principal; considerando que um mesmo empresário (individual ou sociedade empresária) pode possuir mais de um estabelecimento (uma matriz e uma ou mais filiais).
Antes de ingressarmos em tal polêmica, de plano devemos esclarecer que a conceituação de principal estabelecimento pode girar em torno de uma perspectiva formal ou de uma perspectiva material. Pela primeira, seria muito fácil definir o estabelecimento principal, pois bastaria dizer que este seria aquele designado como matriz no registro empresarial. Contudo, alinhados com a doutrina e jurisprudência contemporânea, e sem grandes delongas, queremos desde já afastar de nossas reflexões o enfoque baseado unicamente no critério formal; pois se este prevalecesse, o empresário individual ou os administradores da sociedade empresária poderiam, a seu talante, mudar o foro do estabelecimento principal, bastando para isso uma simples alteração no Registro de Empresas.
Desse jeito, imperioso se torna nos debruçarmos sobre o que chamamos de perspectiva material para conceituação do estabelecimento no desiderato de chegarmos a uma conclusão face à problemática que se impõe; e para isso, primeiramente examinemos na doutrina comercialista o conceito de tal instituto, conforme segue:
"Conceitua-se o principal estabelecimento tendo em vista aquele em que se situa a chefia da empresa, onde efetivamente atua o empresário no governo ou no comando de seus negócios, de onde emanam as suas ordens e instruções, em que se procede às operações comerciais e financeiras de maior vulto e em massa"
"Principal estabelecimento, para fins de definição da competência para o direito falimentar, é aquele em que se encontra concentrado o maior volume de negócios da empresa; é o mais importante do ponto de vista econômico" (Fábio Ulhoa Coelho (7)).
"A doutrina, há muito, considera principal estabelecimento, para efeito falimentar, aquele em que se encontrar a centralização das ocupações empresariais, isto é, o local de onde emanam as ordens e se realizam as atividades mais intensas da empresa" (Ricardo Negrão (8)).
Portanto, podemos resumir que há na doutrina pátria, basicamente duas orientações, bem evidenciadas na opinião dos autores acima referenciados, qual seja:
1ª) diz que o estabelecimento principal é onde se localiza a chefia da empresa e, cumulativamente, onde se verificam as operações negociais mais intensas;
2ª) considera que o estabelecimento principal é aquele onde está concentrado o maior volume de negócios da empresa; logo, simplesmente aquele de maior importância econômica.
Antes de avaliarmos as duas correntes, vejamos o que diz a jurisprudência superior (STJ e STF) acerca da definição de estabelecimento principal:
"Não é aquele a que os estatutos da sociedade conferem o título de principal, mas o que forma concretamente o corpo vivo, o centro vital das principais atividades comerciais do devedor, a sede ou núcleo dos negócios, em sua palpitante vivência material"
"O juízo competente para processar e julgar pedido de falência e, por conseguinte, de concordata, é o da comarca onde se encontra ‘o centro vital das principais atividades do devedor’, conforme o disposto no art. 7º da Lei de Falências (Decreto-lei nº 7.661/45) e firme entendimento do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema" (STJ (10)).
Perceba-se que tanto STF quanto STJ, conforme podemos colher das decisões colacionadas a título de exemplo (que bem resumem o entendimento dominante de tais tribunais), definem como principal estabelecimento aquele que corresponda ao "centro vital das principais atividades do devedor". Contudo, nas discussões do qual seja esse dito "centro vital", a jurisprudência também se controverte: uns entendem que tal centro vital é onde fica a chefia da empresa, presumindo que aí é celebrada a maior parte dos negócios; outros, que é onde está o estabelecimento de maior relevância econômica, mas utilizando-se de critérios variados para estabelecer qual seja este estabelecimento mais relevante economicamente.
4 Afinal, qual o melhor critério para se definir o "principal estabelecimento"?
Analisadas as posições da doutrina respeitabilíssima e colacionados arestos que bem sintetizam a posição (sobre o assunto) das nossas instâncias judiciárias máximas, resta agora fazermos o confronto das idéias para daí sugerirmos uma possível solução para a polêmica.
Como vimos, a doutrina divide-se entre uns que dizem ser o principal estabelecimento aquele onde está a chefia da empresa e, cumulativamente, onde se realiza as maiores operações negociais. Fábio Ulhoa, a seu turno, conforme seu conceito transcrito no tópico anterior, acredita seja suficiente para se dizer que um estabelecimento é o principal o fato deste centralizar as operações negociais mais intensas.
Logo ab initio, consideramos, com a devida vênia, imprecisa a posição doutrinária que exige estejam presentes, cumulativamente, a centralização da chefia da empresa e realização das operações mais expressivas, para poder se definir o estabelecimento como principal. Ora, para nós afigura-se como óbvio que casos podem ocorrer onde cada uma dessas características poderá recair sobre estabelecimentos distintos. E, diante disso, como solucionar a problemática?
Quanto à posição doutrinária que identifica o principal estabelecimento como sendo aquele mais importante do ponto de vista econômico; concordamos com tal orientação. Contudo, respeitosamente, acreditamos deva ser melhor esmiuçada tal constatação.
Por outro vértice, voltando à análise da posição doutrinária que identifica como estabelecimento principal aquele onde está a chefia da empresa, ressaltemos que no paradigmático Conflito de Competência nº 37736/SP (do qual transcrevemos trecho da ementa no tópico anterior), julgado pela Segunda Seção do STJ em 11/06/2003, envolvendo a empresa SHARP, foi muito bem analisado tal posicionamento. Nesse julgado, outrossim, o Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, em seu voto-vista, com precisão, sintetizou a divergência central travada naquele julgamento (decidido por maior de votos) ao afirmar que: "No caso dos autos, a questão reside fundamentalmente em saber-se onde está o ‘corpo vivo’, o centro vital das principais atividades comerciais do devedor, se em Manaus, onde está localizado o parque industrial das empresas em exame, ou em São Paulo, local onde está o comando e administração delas".
Defendeu o Ministro referido supra, que tal ‘corpo vivo’ estaria em São Paulo, pois lá se encontraria "[...] o maior volume de negócios, a centralização da influência econômica, a direção, o comando e a administração geral [...]".
A seu turno, o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, acompanhando o voto vencedor da Ministra-relatora, Dra. Nancy Andrighi, e rechaçando o argumento que conduz no sentido de que o principal estabelecimento seria definido pelo local onde estaria sediada a administração da empresa, expressou com veemência o seu entendimento: "Nessa situação, vejo o seguinte: em uma falência, a prioridade do legislador são os credores trabalhistas e fiscais. E vamos jogar isso por terra por causa de uma empresa cujos diretores vão morar, por exemplo, no litoral, ou em Petrópolis?".
Ao final prevaleceu que o foro competente seria Manaus, onde estava o parque industrial da empresa, e não em São Paulo, onde estava sediada a direção. Portanto, conforme cremos, houve um claro (e ao nosso ver, correto) posicionamento contrário à doutrina que identifica o principal estabelecimento como sendo aquele em que está sediada a chefia da empresa, apesar disso não ser declarado expressamente no acórdão.
Então, após termos contato com tão ilustres posicionamentos, cabe-nos agora enfrentar a questão central: afinal, qual o melhor critério para se definir o principal estabelecimento para efeitos falimentares?
Consoante já nos posicionamos, o critério que leva em conta onde está situada a chefia (administração) da empresa não deve prevalecer, segundo brilhantemente explicitou o Douto Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira no trecho do seu voto ao norte transcrito.
Portanto, cremos que deva sobressair mesmo o posicionamento do ilustre Fábio Ulhoa Coelho, qual seja: que será considerado principal estabelecimento aquele de maior importância do ponto de vista econômico. Acreditamos, não obstante, haver necessidade de um aperfeiçoamento nesse entendimento.
Isto posto, para adotarmos tal posição, partimos de uma reflexão tendente a privilegiar os princípios (11) da celeridade e da economia processual, expressamente adotados pela nova Lei de Falências (art. 75, §único); presumindo que no foro do estabelecimento de maior porte econômico serão melhor privilegiados tais princípios.
O grande problema é estabelecer critérios precisos que possam identificar essa dita importância econômica.
Enfrentando esse desafio, propomos inicialmente que se analise qual é a atividade econômica a que se dedica o empresário.
O Código Civil esclarece isso, dizendo ser tal atividade de produção ou circulação de bens ou serviços (art. 966 CC).
Então, o estabelecimento de maior importância econômica é justamente aquele responsável pela maior produção ou maior circulação de bens ou serviços.
Logo, caso todos os estabelecimentos de um empresário se dediquem apenas à circulação de bens ou serviços, fica muito fácil identificar o estabelecimento mais importante economicamente. Basta averiguar o faturamento de cada um. Certamente aquele que apresentar maior renda deverá ser considerado o mais importante, ou seja, o "centro vivo" das atividades empresariais.
Já no que diz respeito ao empresário que se dedica primordialmente à produção de bens (tem várias fábricas, por exemplo), pensamos deva se ver o estabelecimento responsável pela maior produção, identificando-o como estabelecimento mais importante.
As coisas, no entanto, ficam bem mais complexas quando notamos existirem empresas que possuem estabelecimentos que somente produzem e outros que somente comercializam; o que leva-nos a problematizar: nesse caso como se fará a comparação entre os estabelecimentos para ver qual o mais importante economicamente, visto não poder se comparar valores de faturamento com valores de produção, pois muitas vezes o estabelecimento que produz transfere todos os bens produzidos ao estabelecimento que somente comercializa?
Ante tal questão, pensamos ser a melhor solução verificar se o estabelecimento que comercializa existe em função do que produz. Se assim for, por certo que este último é o principal.
Agora, se tivermos um estabelecimento que produz, e ele mesmo comercializa os bens produzidos; e tivermos um outro estabelecimento da mesma empresa que apenas comercializa, aí basta compararmos o faturamento de cada um para estabelecermos o de maior importância econômica.
Assim, nota-se que a temática abordada no presente artigo é extremamente complexa. Contudo, há a necessidade urgente da jurisprudência assentar de vez um critério seguro de fácil aferição que prevaleça, pois enquanto isso não for feito continuaremos assistindo infindáveis conflitos de competência a serem suscitados, causando um transtorno injustificável aos já morosos feitos falimentares.
Notas
1
Que foi publicada em 09.02.2005.2
Considerando, ainda, que o Decreto-lei nº 7661/1945 estabelece em seu artigo 156, caput, que: "O devedor pode evitar a declaração da falência, requerendo ao juiz, que seria competente para decretá-la, lhe seja concedida concordata preventiva". Logo, as mesmas regras de fixação do juízo competente do artigo 7º também valem (enquanto estiver em vigência o DL referenciado) para a concordata preventiva, e para a suspensiva (art. 202, §1º).3
No direito positivado temos apenas o conceito de estabelecimento, qual seja (art. 1142 CC): "Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária".4
Artigo 1142 do Código Civil.5
Artigo 90 do Código Civil: "Constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária".6
In Curso de Direito Comercial, v. 1, Saraiva, 25ª ed., 2003, p. 277.7
In Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, Saraiva, 2005, p. 28.8
In Manual de Direito Comercial e de Empresa, v. 1, 3ª ed., Saraiva, 2003, p. 81.9
Jurisprudência citada por Celso Marcelo de Oliveira in Comentários à Nova Lei de Falências, Thomson IOB, 2005, p. 110, fazendo referência à RTJ 81/705.10
CC 37736/SP, Segunda Seção, Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 11/06/2003, DJ 16/08/2004.11
Que acreditamos se aplicar tanto à falência quanto à recuperação de empresas.