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Da distinção ontológica entre crimes econômicos em sentido amplo e estrito

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Agenda 24/11/2018 às 11:35

É nítida a importância da distinção ontológica entre crimes econômicos em sentido amplo e em sentido estrito, sendo esta diferença significativa na construção da ciência contemporânea do direito penal, em sua atual quadra de evolução epistemológica.

1. PROLEGÔMENOS

O direito penal foi destinatário de significativo desenvolvimento do ponto de vista doutrinário no último século, por vezes acompanhado da evolução na jurisprudência dos tribunais pátrios que, adotando o entendimento esposado principalmente na doutrina comparada germânica, acolheu no Brasil variadas tendências juspenalistas provenientes do direito alemão.

Mormente a partir dos estudos que culminaram na teoria da ação final ou finalismo, propugnados pelo professor germânico Hans Welzel1, de forma potencial entre os anos 1930 e 1960, e pelas elucubrações teóricas calcadas no funcionalismo da filosofia pós-moderna prelecionada na Escola de Frankfurt, que resultaram nas teorias do funcionalismo teleológico e no funcionalismo sistêmico, desenvolvidas respectivamente pelos professores alemães Claus Roxin2 e Günther Jakobs3, a doutrina juspenalista brasileira reuniu o arcabouço necessário para abordar delitos que, por sua natureza, não poderiam ser integralmente elucidados pelas correntes de pensamento tradicionais da dogmática jurídico-penal.

Uma categoria que nos últimos anos tem despertado a atenção não apenas da ciência do direito penal mas também da comunidade jurídica é a dos delitos econômicos. Não apenas a dogmática jurídico-penal, mas também a criminologia tem dedicado percucientes estudos acerca dos assim denominados white collar crimes, em designação da doutrina comparada norte-americana.

A criminalidade econômica é fruto da evolução do sistema capitalista, mormente do capitalismo financeiro a partir do século XX, cuja tangibilidade decorrente da segunda revolução industrial era cada vez mais rarefeita, diante da evolução do mercado de capitais e das atividades das bolsas de valores ao redor do mundo.

O presente artigo científico visa a promover uma delimitação teórica, sob o ponto de vista ontológico, entre as categorias de delitos econômicos em sentido amplo (crimes econômicos lato sensu) e em sentido estrito (crimes econômicos stricto sensu), em especial a partir das implicações midiáticas em casos como o da “operação lava-jato” no Brasil.

Desde logo sustenta-se que expor uma distinção conceitual sob o ponto de vista ontológico não significa uma aproximação ao criticado ontologismo do sistema finalista propugnado pela citada teoria do professor alemão Hans Welzel, ainda acolhida no texto do Código Penal Brasileiro a partir da reforma promovida pela Lei n. 7.209/1984. Há que se ater a parâmetros objetivos quando se aborda a ciência do direito penal, sob pena de convertê-la ao subjetivismo arbitrário.

Nesse sentido, este estudo tem por objetivo geral apresentar a definição de crimes econômicos e suas categorias sob a égide da ciência do direito penal contemporânea, inserida em um Estado Democrático e Social de Direito que adota um modo de produção capitalista de matriz intervencionista, como ocorre na experiência brasileira.

Ademais, o objetivo específico deste trabalho é sustentar a distinção ontológica entre crimes econômicos lato sensu e crimes econômicos stricto sensu, como forma de subsidiar eficazmente a aplicação da pena e a fundamentação das decisões judiciais condenatórias em tais categorias delitivas.

O que se observa hodiernamente na prática forense é a imperfeita abordagem dos delitos econômicos por parcela dos juízes criminais, em parte fruto do reduzido quantitativo de estudos sobre a matéria na doutrina brasileira, o que dificulta uma adequada hermenêutica da criminalidade econômica na jurisprudência pátria.

O principal objetivo deste artigo científico é iniciar um debate mais consistente sobre a temática que, embora eminentemente teórica, deita raízes na política legislativa e na prática jurisprudencial em matéria criminal. Outrossim, tenciona-se construir uma teoria tipicamente brasileira sobre a criminalidade econômica, auxiliando decisivamente na evolução da doutrina juspenalista nacional, ainda carente de estudos sobre o tema.

A metodologia aplicável ao presente artigo científico é de natureza qualitativa, envolvendo o levantamento bibliográfico dos principais livros e compêndios de direito penal e criminologia relacionados direta e indiretamente com o estudo dos delitos econômicos, dado o cariz eminentemente teórico do objeto de estudo em comento. Valer-se-á do método dedutivo, expondo elementos da teoria geral do delito para abordar especificamente a criminalidade econômica e sua distinção ontológica.

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O referencial teórico, por sua vez, são os estudiosos que sustentam o funcionalismo penal na teoria do delito, mormente as teorias teleológico-moderada e limitadora da pena, respectivamente desenvolvidas na doutrina comparada germânica dos professores Claus Roxin e Winfried Hassemer4.


2. ESCORÇO HISTÓRICO DO CONCEITO ANALÍTICO DE DELITO

Um dos temas de maior relevância no estudo dos fundamentos do direito penal é o conceito de delito, na medida em que compõe a própria definição da disciplina em comento. Definir o crime, em suma, é definir o próprio direito penal, nos termos propostos por vários juspenalistas da doutrina brasileira e estrangeira.

Nesse sentido, o professor alemão Franz Von Liszt define o direito penal como “conjunto das prescrições emanadas do Estado, que ligam ao crime, como fato, a pena como consequência”5; o também alemão Edmund Mezger o define como “conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, ligando ao delito, como pressuposto, a pena como consequência”6; o professor espanhol Luis Jiménez de Asúa, por sua vez, define como “conjunto de normas y disposiciones jurídicas que regulan el ejercicio del poder sancionador y preventivo del Estado, estableciendo el concepto del delito como presupuesto de la acción estatal, así como la responsabilidad del sujeto activo, y asociando a la infracción de la norma una pena finalista o una medida aseguradora”7.

Na doutrina brasileira, o professor Eduardo Magalhães Noronha define o direito penal como “conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica”8; o professor Damásio Evangelista de Jesus, membro do Ministério Público estadual de São Paulo, seguindo as lições de José Frederico Marques, define a disciplina como “conjunto de normas que ligam ao crime, como fato, a pena como consequência, e disciplinam também as relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabilidade das medidas de segurança e a tutela do direito de liberdade em face do poder de punir do Estado”9; para o professor Fernando Galvão, é “o ramo do direito público que reúne os princípios e as normas jurídicas que limitam o poder punitivo do Estado, estabelecendo que a prática de determinadas condutas tenha como consequência a aplicação das penas ou de medidas de segurança”10; o professor Nilo Batista, ao decotar uma das acepções do direito penal, o define como “conjunto de normas jurídicas que, mediante a cominação de penas, estatuem os crimes, bem como dispõem sobre seu próprio âmbito de validade, sobre a estrutura e elementos dos crimes e sobre a aplicação e execução das penas e outras medidas nelas previstas”11; por fim, para o professor e membro do Ministério Público estadual de Minas Gerais Rogério Greco, “direito penal objetivo é o conjunto de normas editadas pelo Estado, definindo crimes e contravenções, isto é, impondo ou proibindo determinadas condutas sob a ameaça de sanção ou medida de segurança, bem como todas as outras que cuidem de questões de natureza penal, v.g., excluindo o crime, isentando de pena, explicando determinados tipos penais”12.

Vê-se, pois, que o conceito de crime encontra-se imbricado na essência da dogmática jurídico-penal, sendo parte integrante da própria definição de direito penal. Todavia, observa-se que o conceito de delito, em especial seu conceito analítico, sofreu profundas alterações na teoria do direito penal do último século, especialmente nas passagens do paradigma causal-naturalista para o causal-valorativo, deste para o finalista e, enfim, para o atual panorama funcionalista na ciência do direito penal.

A definição de crime (ou delito) pode ser aferida legalmente pelo disposto no art. 1º do Decreto-Lei n. 3.914, de 9 de dezembro de 194113, conhecido como Lei de Introdução do Código Penal e da Lei de Contravenções Penais. Tal definição legal apresenta importante nota distintiva entre os crimes e as contravenções14, especialmente quanto ao tipo de sanção penal aplicável a cada uma das espécies de infração penal.

Todavia, há que se apresentar um conceito de delito que ostente elementos de cientificidade, necessidade esta que trouxe prolífero debate na ciência do direito penal a partir de meados do século XIX, desde a égide da teoria da conduta causal-naturalista até a atual abordagem funcionalista.

Uma didática exposição sobre a trajetória evolutiva do conceito de delito é trazida na referenciada obra do professor Damásio Evangelista de Jesus, que estrema o conceito de crime em quatro sistemas, a saber: formal; material; formal e material; formal, material e sintomático – sustentando a prevalência dos dois primeiros. Reputa-se pertinente o excerto do referido estudo propugnado pelo insigne jurista, nos termos que seguem, in verbis:

“Formalmente, conceitua-se o crime sob o aspecto da técnica jurídica, do ponto de vista da lei. Materialmente, tem-se o crime sob o ângulo ontológico, visando a razão que levou o legislador a determinar como criminosa uma conduta humana, a sua natureza danosa e consequências. O terceiro sistema conceitua o crime sob os aspectos formal e material conjuntamente. Assim, Carrara, que adotava o critério substancial e dogmático, definia o delito como 'a infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso'. O quarto critério visa ao aspecto formal e material do delito, incluindo na conceituação a personalidade do agente. Ranieri, sob esse aspecto, define o delito como 'fato humano tipicamente previsto por norma jurídica sancionada mediante pena em sentido estrito (pena criminal), lesivo ou perigoso para bens ou interesses considerados merecedores da mais enérgica tutela', constituindo 'expressão reprovável da personalidade do agente, tal como se revela no momento de sua realização'. Dos quatro sistemas, dois predominam: o formal e o material. O primeiro apreende o elemento dogmático da conduta qualificada como crime por uma norma penal. O segundo vai além, lançando olhar às profundezas das quais o legislador extrai os elementos que dão conteúdo e razão de ser ao esquema legal”15.

Outrossim, o conceito analítico de crime adotado pelo direito brasileiro, ainda legalmente vinculado ao modelo finalista de direito penal elaborado por Hans Welzel na primeira metade do século XX, entende o delito como fato típico, ilítico (ou antijurídico) e culpável. Ainda que se tenha elaborado por parte da doutrina brasileira o que pode ser denominado de teoria finalista moderada bipartida, em que a culpabilidade não seria considerada elemento do crime, mas pressuposto de aplicação da pena16, o conceito analítico tripartido de crime ainda é a posição segura da maioria dos estudos brasileiros na ciência do direito penal.

Considerando o conceito material de crime, desenvolvido sob o aspecto ontológico, torna-se viável a elaboração de uma teoria ontológica dos delitos econômicos, a iniciar pela elaboração do conceito de delito econômico.

Preliminarmente, entretanto, ressalte-se que a criminalidade econômica é dotada de peculiaridades que a diferencia da abordagem hodierna dos crimes tradicionais, considerando tratar-se de fenômeno típico da atual quadra evolutiva do modo de produção capitalista, oriundo do mercantilismo quinhentista. Ademais, o capitalismo financeiro é fenômeno recente na história da humanidade, considerando como marco em tal fenômeno socioeconômico a criação do mercado de valores mobiliários, em especial as primeiras bolsas de valores, com destaque para a Bolsa da Antuérpia, Bélgica, em 153117.

A doutrina penalista, observando a criação de tipos penais diferenciados a partir de meados do século XX, especialmente ligados à violação de bens jurídicos ligados aos direitos humanos de terceira dimensão18, trouxe nova abordagem à epistemologia do direito penal, questionando o alegado ontologismo do modelo finalista do professor alemão Hans Welzel, e vindicando uma retomada valorativa no estudo do crime e da conduta delitiva.

Nesse desiderato, reputa-se pertinente trazer à colação didático escólio doutrinário da lavra do professor Cezar Roberto Bitencourt sobre o funcionalismo no direito penal e suas principais teorias, a saber, o funcionalismo teleológico ou moderado (Claus Roxin), o funcionalismo radical sistêmico (Günther Jakobs) e o funcionalismo preventivo limitador da pena (Winfried Hassemer), que deitam raízes também no estudo justificador da sanção penal. Segue a posição do ilustre jurista, in verbis:

“Com esse ponto de partida, Roxin pretende evidenciar que o Direito Penal não deve ser estruturado deixando de lado a análise dos efeitos que produz na sociedade sobre a qual opera, isto é, alheio à realização dos fins que o legitimam. Por isso, sustenta que quando as soluções alcançadas no caso concreto, por aplicação dos conceitos abstratos deduzidos da sistematização dogmática, sejam insatisfatórias, elas podem ser corrigidas de acordo com os princípios garantistas e as finalidades político-criminais do sistema penal. Em outras palavras, a configuração do sistema de Direito Penal passa a ser estruturada teleologicamente, atendendo a finalidades valorativas. (…) Jakobs, por sua vez, incorporando fundamentalmente a teoria dos sistemas sociais de Luhmann, concebe o Direito Penal como um sistema normativo fechado, autorreferente do Direito positivo, em função da finalidade de prevenção geral positiva da pena, com a exclusão de considerações empíricas não normativas e de valorações externas ao sistema jurídico positivo. (…) A função da pena, segundo Hassemer, é a prevenção geral positiva: 'a reação estatal perante fatos puníveis, protegendo, ao mesmo tempo, a consciência social da norma. Proteção efetiva deve significar atualmente duas coisas: a ajuda que obrigatoriamente se dá ao delinquente, dentro do possível, e a limitação desta ajuda imposta por critérios de proporcionalidade e consideração à vítima. A ressocialização e a retribuição pelo fato são apenas instrumentos de realização do fim geral da pena: a prevenção geral positiva. No fim secundário de ressocialização fica destacado que a sociedade corresponsável e atenta aos fins da pena não tem nenhuma legitimidade para a simples imposição de um mal. No conceito limitador da responsabilidade pelo fato, destaca-se que a persecução de um fim preventivo tem um limite intransponível nos direitos do condenado. Uma teoria da prevenção geral positiva não só pode apresentar os limites necessários para os fins ressocializadores, como também está em condições de melhor fundamentar a retribuição pelo fato”19.

O excerto supra, ao apresentar didaticamente a evolução epistemológica do direito penal (expressão cunhada pelo professor Bitencourt), a partir do modelo funcionalista, expõe a retomada valorativa da doutrina penalista ante ao questionado ontologismo do modelo finalista de Welzel.

Contudo, sustenta-se no presente artigo científico que não se pode abandonar o estudo do objeto, a saber, a ontologia de determinada realidade observada no mundo fenomênico, com base nos alegados exageros metodológicos de determinada teoria do conhecimento – no caso em tela, o finalismo enquanto teoria epistemológica do direito penal.

Logo, a abordagem ontológica e, nesse sentido, a distinção entre delitos econômicos em sentido amplo e em sentido estrito sob o viés ontológico, conforme doravante se refletirá, não pode ser olvidado em uma abordagem sistemática e científica do direito penal, sendo importante para a compreensão dessa nova realidade no âmbito da dogmática jurídico-penal e mesmo da criminologia, adotando-se a teoria crítica20.

Sobre o autor
Divo Augusto Cavadas

Divo Augusto Pereira Alexandre Cavadas é Advogado e Professor de Direito. Procurador do Município de Goiânia (GO). Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Especialista em Direito Penal, Direito Tributário e Filosofia. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Realizou estudos junto à Universidad de Salamanca (Espanha), Universitá di Siena (Itália), dentre outras instituições. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Diplomado pela Câmara Municipal de Goiânia e Comendador pela Associação Brasileira de Liderança, por serviços prestados à sociedade.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVADAS, Divo Augusto. Da distinção ontológica entre crimes econômicos em sentido amplo e estrito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5624, 24 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69741. Acesso em: 22 dez. 2024.

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