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Da distinção ontológica entre crimes econômicos em sentido amplo e estrito

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24/11/2018 às 11:35
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3. DISTINÇÃO ONTOLÓGICA ENTRE OS DELITOS ECONÔMICOS

A criminalidade econômica pode ser observada sob o ponto de vista da ciência total do direito penal, seguindo teoria elaborada na doutrina comparada lusitada pelo professor Jorge de Figueiredo Dias21, que considera o estudo juspenalista sob o viés de três diferentes províncias: a dogmática jurídico-penal, a criminologia e a política criminal.

Considerando o desenvolvimento do sistema financeiro doméstico e internacional, bem como da proteção oferecida aos direitos humanos de terceira dimensão, o Estado brasileiro, no exercício de sua função legiferante e seguindo tendência do ordenamento jurídico estrangeiro, propugnou a criação de novos tipos penais, inseridos no Código Penal Brasileiro ou na legislação penal extravagante.

Exemplos dessas novas modalidades delitivas podem ser observados nos tipos penais previstos na Lei n. 7.492/1986 (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional); Lei n. 8.666/1993 (Estatuto Jurídico da Contratação Pública ou Lei de Licitações); Lei n. 9.605/1998 (Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente); Lei n. 9.613/1998 (Lei dos Crimes de Ocultação de Bens, Direitos e Valores ou Lei dos Crimes de “Lavagem de Dinheiro”); Lei n. 12.737/2012 (alteração do Código Penal Brasileiro para iserir a tipificação criminal dos delitos informáticos); dentre outros.

Além disso, parcelas do Código Penal Brasileiro como seu Título XI da Parte Especial, dedicado aos “Crimes contra a Administração Pública”, demonstram que o direito penal nacional passa a sancionar condutas lesivas a bens jurídicos de natureza supraindividual – o que de certa forma poderia conflitar com antigos axiomas da dogmática jurídico-penal tradicional, como a função proibitiva de incriminações vagas e indeterminadas detida pelo princípio da legalidade, norteada pelo brocardo latino nullum crimen nulla poena sine lege certa22.

Todavia, vem se promovendo uma releitura da proteção penal destinada a bens jurídicos de natureza supraindividual, especialmente no contexto do compliance penal23 como forma de autorregulação por parte de organizações públicas e privadas, a fim de se evitar a violação da esfera jurídica de determinadas coletividades, como a dos consumidores, idosos, crianças, cidadãos, dentre outros.

Os crimes econômicos, nesse sentido, podem ser considerados uma categoria delitiva autônoma, inseridos na classificação doutrinária de crimes. E tal gênero, sustenta-se no presente artigo científico, pode ser decomposto em duas espécies bem definidas, a saber: crimes econômicos em sentido amplo ou lato sensu, e crimes econômicos em sentido estrito ou stricto sensu.

A classificação proposta leva em consideração uma abordagem ontológica no estudo dos delitos econômicos. O estudo da ontologia, no espectro da filosofia jurídica, pode ser associada ao que o professor Miguel Reale cognomina ontognoseologia, sendo dela o estudo de suas condições objetivas. Relevante transcrever, para melhor cognição do ora exposto, escólio doutrinário da lavra deste saudoso jusfilósofo, na forma como segue, in verbis:

“Ora, a Lógica formal e a Metodologia formam em conjunto o campo da Lógica Positiva, subordinando-se ambas à Ontognoseologia, que é a teoria transcendental do conhecimento, cujo problema essencial é o da correlação primordial entre pensamento e realidade, entre o sujeito cognoscente e algo a conhecer. Podemos, pois, conceituar a Ontognoseologia como sendo a doutrina do ser enquanto conhecido e das condições primeiras do pensamento em relação ao ser. (…) A Ontognoseologia desdobra-se, por abstração, em duas ordens ou momentos distintos de pesquisas: ora indaga das condições do conhecimento pertinentes ao sujeito que conhece (Gnoseologia); ora indaga das condições de cognoscibilidade de algo, ou, por outras palavras, das condições segundo as quais algo torna-se objeto do conhecimento, ou, em última análise, do ser enquanto conhecido ou cognoscível (Ontologia, tomada esta palavra em sentido estrito). Poderíamos, em síntese, dizer que a Ontognoseologia desenvolve e integra em si duas ordens de pesquisas: uma sobre as condições do conhecimento do ponto de vista do sujeito (a parte subjecti) e a outra sobre essas condições do ponto de vista do objeto (a parte objecti)”24.

Considerando a ontologia como parte do estudo da ontognoseologia, apresentar uma distinção ontológica entre delitos econômicos lato sensu e stricto sensu envolve não apenas uma abordagem no plano da dogmática jurídica, do direito positivo, mas também no âmbito da filosofia jurídica, nos termos da classificação supra.

Sustenta-se que a carga valorativa implementada na teoria do delito, considerando a atual evolução epistemológica do direito penal (em apropriação do termo alcunhado pelo professor Cezar Roberto Bitencourt) tem promovido gradativo retorno ao subjetivismo que ensejou a criação do modelo finalista, hoje criticado por seu ontologismo. Ora, ratifica-se que a crítica ao ontologismo não pode ser manejada para se adotar uma postura doutrinária antiontológica, considerando a importância que a ontologia possui como suporte filosófico para a teoria do conhecimento (epistemologia).

Os delitos econômicos, chamados pela doutrina comparada norte-americana de white collar crimes (“crimes do colarinho branco”)25, tem em sua definição objeto de grande controvérsia no âmbito da dogmática jurídico-penal e da criminologia. O professor Edwin H. Sutherland os definia como: “crime cometido por uma pessoa respeitável e de alta posição social no decurso de sua atividade profissional”26; o professor Herbert Edelhertz, por sua vez, conceituava o white collar crime como “um ato ilegal, ou uma série desses atos, cometido por meios não físicos e por encobrimento ou fraude, a fim de obter dinheiro ou bens, evitar o pagamento ou a perda de dinheiro ou bens, ou ainda vantagens pessoais ou empresariais”27. Tais definições, originárias nos estudos sobre a matéria, carecem de completude no conteúdo atual de tais atos ilícitos penais.

A tipologia dos crimes econômicos é objeto de prolíferos debates no âmbito da criminologia, como pode ser visto nos estudos dos professores Clinard e Quinney, por exemplo, adotam tipologia comungada por parte dos criminólogos que distinguem os delitos profissionais dos corporativos, como espécies de crimes econômicos.

Tal classificação é alvo de severas críticas do professor James William Coleman, que em referenciada obra traduzida para a língua portuguesa tece as seguintes considerações, in verbis:

“O trabalho dos criminologistas, com certeza, seria facilitado se cada crime do colarinho branco pudesse ser claramente classificado como organizacional ou profissional e, na verdade, em edições anteriores deste livro, tentou-se fazer exatamente isso. Mas, infelizmente, a vida real é mais complexa do que os esquemas analíticos desenvolvidos para contê-la, e alguns crimes não podiam ser enquadrados em nenhuma categoria. Entre os exemplos mais importantes estão os numerosos casos da indústria de poupança e empréstimos, em que os executivos do primeiro escalão de instituições financeiras usaram a organização como ferramenta para desfalcar financeiramente a própria organização. Esse tipo de crime, que Calavita e Pontell apelidaram de desfalque coligido, 'representa uma espécie híbrida (crime organizacional e profissional): um 'crime da corporação contra a corporação'. A distinção entre o crime organizacional e o profissional ainda é muito útil para ser abandonada, porém, mais do que conceituada como uma dicotomia, ela deve ser vista como um continuum”28.

A crítica elaborada supra traz como exemplo significativo um tipo penal (desfalque coligido) que no ordenamento jurídico brasileiro seria associado aos crimes de gestão fraudulenta e gestão temerária, previstos no art. 4º e parágrafo único da Lei n. 7.492/1986, que trata dos crimes contra o sistema financeiro nacional.

Essa indagação leva a sustentar-se, no presente artigo científico, a distinção entre delitos econômicos lato sensu – que englobariam todos aqueles que atentassem contra bens jurídicos de natureza supraindividual não ligados a manutenção e desenvolvimento de um modo de produção econômica adotado pelo país que o tipifica – dos delitos econômicos stricto sensu – que violam diretamente bens jurídicos supraindividuais ligados ao equilíbrio mercadológico e a manutenção e desenvolvimento do modo de produção econômica adotado no país que o tipifica.

Considerando que o Brasil adota o modo de produção capitalista, os crimes contra o sistema financeiro, contra a economia popular (Lei n. 1.521/1951), de ocultação de bens, direitos e valores, de concorrência desleal (art. 195 da Lei n. 9.279/1996), dentre outros ligados diretamente à manutenção do capitalismo podem ser classificados como delitos econômicos stricto sensu. Em contrapartida, os crimes contra a administração pública em geral, os crimes ambientais, os crimes contra a organização do trabalho29, dentre outros, que afetam indiretamente o modo de produção capitalista, podem ser qualificados como delitos econômicos lato sensu.


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, verifica-se a importância da distinção ontológica entre crimes econômicos em sentido amplo e em sentido estrito, deveras significativa na construção da ciência contemporânea do direito penal, em sua atual quadra de evolução epistemológica.

Compreender os delitos econômicos como categoria autônoma de crimes em uma classificação doutrinária contempla a proteção dada pelo direito penal aos bens jurídicos de natureza supraindividual, mormente aqueles ligados ao equilíbrio mercadológico inserido no contexto do modo de produção capitalista, o que sem dúvidas engloba o mercado financeiro, reputando-se de grande relevo a repressão aos crimes contra o sistema financeiro nacional.

Logo, a classificação de natureza ontológica ora apresentada neste artigo científico não é apenas importante no estudo da dogmática jurídico-penal, mas também possui reflexos marcantes na criminologia, na política criminal e na filosofia jurídica, dada a importância que deve ser conferida à ontologia como aporte teórico para a compreensão da teoria do conhecimento aplicada ao direito penal, especialmente no atual contexto dos sistemas funcionalistas às teorias da conduta e do delito, com destaque para o modelo de prevenção geral positiva limitadora da pena de Hassemer e da teoria discursiva do direito penal como consectária de uma leitura jurídica da filosofia de Habermas.

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O retorno a paradigmas calcados na ontologia – e mais ainda, na ontognoseologia, conforme propugnada por Miguel Reale – não indicará o retorno a equívocos semelhantes ao ontologismo do sistema finalista de Welzel, que deita raízes no positivismo kelseniano. O eterno evolver da ciência do direito penal permite aos teóricos o constante aprofundamento visando ao fim principal desta província da ciência jurídica, a saber, limitar o arbítrio no exercício do jus puniendi estatal, o que estimula a elaboração de um estudo de natureza neopositivista como o presente.


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Sobre o autor
Divo Augusto Cavadas

Divo Augusto Pereira Alexandre Cavadas é Advogado e Professor de Direito. Procurador do Município de Goiânia (GO). Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Especialista em Direito Penal e Filosofia. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Realizou estudos junto à Universidad de Salamanca (Espanha), Universitá di Siena (Itália), dentre outras instituições. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Diplomado pela Câmara Municipal de Goiânia e Comendador pela Associação Brasileira de Liderança, por serviços prestados à sociedade.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVADAS, Divo Augusto. Da distinção ontológica entre crimes econômicos em sentido amplo e estrito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5624, 24 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69741. Acesso em: 19 abr. 2024.

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