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A posse.

Uma digressão histórico-evolutiva da posse e de sua tutela jurídica

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Agenda 14/07/2005 às 00:00

7. A Concepção Contemporânea da Posse

As concepções do direito medieval, em especial do direito canônico, vigeram até a Revolução Francesa. A respeito, invocável o magistério de Astolpho Rezende: "Um dos primeiros atos da Revolução Francesa foi a abolição do regime feudal. Abolido esse regime, extintos ficaram, por via de conseqüência, todos os direitos reais nascidos dele, cuja existência era inconciliável com os princípios em que ia repousar a nova organização da sociedade. A Revolução deu a todas as rendas o caráter de simples direitos de crédito, todos os privilégios e regalias incompatíveis com o novo regime e tirou aos cargos públicos caráter de propriedade. Os direitos reais ficaram assim reduzidos ao que eram entre os romanos" [81]

O Código Civil Francês, publicado em 1804, consolidou esta situação, priorizando uma visão privatista da propriedade e da posse. Na esteira do Código Napoleônico, surgiram os códigos: austríaco (1811), neoirlandês (1838), saxão (1863), italiano (1865) do Cantão de Zürich (1887).

Estas legislações, refletindo o pensamento jurídico então vigente, agasalharam uma concepção da posse que espelhava o modelo filosófico, político e jurídico próprio do Estado Liberal, oriundo da Revolução Francesa.

Após séculos de um nefasto modelo onde o Estado servia ao monarca e somente secundariamente agia em prol do cidadão (sequer podemos falar, tecnicamente em cidadania neste caso), a Revolução Francesa representou a ruptura com ancestrais dogmas e a eclosão de um novo pensamento, no qual o Estado não pode ter como finalidade oprimir ao indivíduo e servir a uma casta ou classe.

Pensadores como Russeau, (retomando o pensamento jusnaturalista e contratualista de Hobbes e Locke), e Descartes, fornecem a base filosófica para um modelo de no qual o Estado surge como fruto da opção dos homens, que abrem mão de parte de sua liberdade para constituir uma instituição cuja finalidade é assegurar a paz necessária ao desenvolvimento das atividades individuais. Em síntese, o Estado Liberal é um Estado mínimo, cuja maior virtude deve ser a de interferir o menos possível na esfera de direitos do cidadão.

Sob a ótica jurídica, o Estado Liberal apregoa a igualdade de todos perante a lei, mas somente no plano formal, e apresenta uma visão privatista e individualista.

Desta forma, embora construída a partir de postulados científicos, a posse que emerge das legislações do início do século XIX não difere muito da romana no que diz respeito ao enfoque em relação ao indivíduo.

Mas é preciso lembrar que a ruptura com o regime absolutista é mais formal do que concreta. Em verdade, sob o prisma social, apenas a denominada "burguesia" se beneficiou com a possibilidade de ascensão social e acesso ao poder estatal. Esta camada, formada pelos beneficiados do mercantilismo e, posteriormente, da revolução industrial que se iniciava, foi paulatinamente ganhando espaço em vista do acumulo de riquezas, e foram, na verdade, os grandes mentores do processo revolucionário.

Por isso, não e de surpreender que a igualdade seja meramente formal. Não há uma vontade real de alterar o status quo social. O que se busca é assegurar uma esfera de liberdade, vale dizer, de não interferência estatal, que possibilite o pleno desenvolvimento das atividades comerciais e industriais.

Ocorre que este modelo não tardaria a apresentar problemas. É que as camadas menos favorecidas da sociedade foram aglomerando-se nos centros urbanos, em virtude do processo de industrialização, o que permitiu a difusão de idéias e a mobilização.

As precárias condições de trabalho e a escassa urbanização destes centros, que surgiram e cresceram sem controle, contribuíram ainda mais para a eclosão de movimentos de protesto. É neste quadro histórico que surgem o pensamento socialista e os movimentos sociais como a Comuna de Paris ou o Anarquismo italiano. O quadro agrava-se ainda mais com a I Guerra Mundial, em cujo fim verificamos a Revolução Russa. Também neste período, ou seja, segunda década do século XX, acontece a Revolução Mexicana.

Este contexto do início do século XX, com movimentos revolucionários na América, com a Europa combalida pelo conflito mundial, e com a África e Ásia com quadros de instabilidade e, ainda, sob o jugo do colonialismo, é que tem advento o constitucionalismo social.

Os marcos do constitucionalismo social são as Constituições Mexicana (1917) e de Weimar (Alemanha 1919), marcadas pelo surgimento dos denominados direitos de segunda geração [82].

É preciso, neste passo, estabelecer a correta dicotomia entre Estado Social e Estado Socialista. O Estado Socialista está baseado em uma visão estatizante e abole a propriedade privada, ao passo que o Estado Social não é incompatível com o Capitalismo.

A consagração de um modelo de constitucionalismo social não implicou, porém, alterações instantâneas no direito civil e na visão acerca da posse. Tal somente passou a ocorrer a partir da segunda metade do século XX, como se pode ver do Código Civil Italiano.

A Constituição Federal de 1988 indubitavelmente agasalhou uma visão escudada nos primados de um Estado Social.

Mas o que caracteriza a visão de um Estado Social? O aspecto fundamental do Estado Social reside na ampliação do papel do Estado, de mero garantidor de direitos, e verdadeiro mecanismo de interferência na realidade social. Enquanto o Estado Liberal é um Estado Mínimo, cuja maior virtude é interferir o mínimo possível nas leis de mercado, o Estado social representa um re-direcionamento do Estado, através do qual se busca estabelecer uma série de atuações positivas pelas quais o aparelho Estatal efetivamente atue em benefício da redução das desigualdades sociais. A conseqüência é uma visão mais "solidarista", menos individualista do Direito.

Especificamente no que diz com a posse e a propriedade, ocorre a inserção do conceito da "função social" da propriedade e da posse, por conseguinte. Mas o que é a função social da propriedade? Grosso modo, podemos dizer que a função social da propriedade representa uma mitigação do poder absoluto do proprietário e uma condicionante do exercício da posse, caracterizando-se pela submissão da propriedade e da posse a uma utilidade que transcende o mero interesse individual.

A propriedade e a posse e o seu exercício apresentam repercussões sobre o meio ambiente, economia, condições de trabalho etc..., que são dimensões tipicamente coletivas e que eram normalmente olvidadas.

Observando-se os ordenamentos ocidentais modernos "podemos afirmar que teve acolhida bastante favorável na maioria dos ordenamentos ocidentais. Precursoramente a Constituição Mexicana de 1917, art. 27, e Weimar (Alemanha, 1919), art. 153, seguidas, depois, pela Constituição italiana de 1947, art. 42. Vista a proteção ambiental como face da função social, podemos observar a Constituição da Espanha (1978), arts. 148 e 149, a Constituição Alemã de 1949, reformada em 1972 (art. 74, n. 24) e a lei italiana n. 394 de 1986 (art. 5º, 3). Também a lei francesa nº 76-673 de 1976 e a Lei de Controle de Poluição inglesa de 1974." [83]

Analisando a legislação pátria, vemos que "as Constituições de 1967 e 1969 deve-se à inserção da função social da propriedade, e como condicionante da propriedade. Na primeira art. 150, § 22 e 157 e parágrafos, e na segunda, art. 153, § 22, e 161 . A Constituição de 1988 dedicou diversos dispositivos à disciplina da propriedade. José Afonso da Silva enumera os seguintes arts. 5º, inc. XXIV a XXX, 170, II e III, 176, 177, 178, 182, 182, 183, 184, 185, 186, 191 e 222. Na verdade, o art. 5º nos incisos XXII e XXIII traz os princípios basilares da propriedade, o primeiro garantindo-a., o segundo atrelando-a a função social." [84]

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caráter público da função social é realçado por José Afonso da Silva, que assevera que "os juristas brasileiros, privatistas e publicistas concebem o regime jurídico da propriedade privada como subordinado ao Direito Civil, considerado direito real fundamental" e emenda que "essa é uma perspectiva dominada pela atmosfera civilista, que não levou em conta as profundas transformações impostas às relações de propriedade privada, sujeita, hoje, à estreita disciplina do Direito Público, que tem sua sede fundamental nas normas constitucionais." [85]

Mais adiante, ao versar sobre o capítulo da ordem econômica, lembra o citado jurista acerca da propriedade que "ela não mais poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social." [86]

Especificamente no novo Código Civil, temos o artigo 1.228, que expressamente preconiza a adoção da função social da propriedade, e, portanto, da posse, salientando que a propriedade deve ser exercida "em consonância com suas finalidade econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem, como evitada a poluição do ar e das águas."

Esta nova visão deu azo a concepções novas e recentes, como a "teoria do fato socioeconômico potestativo". A respeito desta concepção, apostila Joel Dias Figueira Júnior: "A posse nada mais é do que uma relação fática socioeconômica com carga potestativa (poder de ingerência) formada pelo sujeito titular de um bem da vida para a obtenção da satisfação de suas necessidades, suficientemente apta a excluir terceiros que possam prejudicar de alguma forma o seu normal desenvolvimento, tornando-se geradora de efeitos que se refletem no muno jurídico. Por poder de fato entende-se a sujeição da coisa à pessoa e a senhoria da posse sobre a coisa: é o elemento mais evidente e indispensável desse instituto." [87]

Segundo este autor, "para identificar uma situação possessória e a respectiva qualidade do possuidor não é necessário adentrar o caminho espinhoso da análise do animus e do corpus. O exame deverá basear-se no poder do sujeito sobre determinado bem dentro de um contexto social e econômico, em que a posição de senhoria exterioriza-se (exercício) ou potencializa-se (possibilidade de exercício) através de uma relação potestativa como desmembramento da propriedade ou de outro direito real, no mundo jurídico." [88]

Na esteira desta teoria, afirma o doutrinador, "a caracterização da posse prescinde do exercício de atos (exteriorização material que é própria, como dissemos, de uma concepção naturalista do corpus), bastando, em qualquer hipótese, a existência de poder sobre um bem. Por isso, exemplificando, é admissível a posse de um imóvel sem que o possuidor o cultive, explore ou visite. Como não existem parâmetros ou diretrizes que determinem a atuação máxima ou mínima do titular de um direito, pela mesma razão, sendo a posse desmembramento fático de alguns dos poderes inerentes à propriedade ou direitos reais, também não encontramos parâmetros legais que determinem a atividade de quem exercita qualquer desses poderes." [89]

Logo, a conclusão é que "a posse não é o exercício do poder; mas sim o poder sócio-econômico propriamente dito que tem o titular da relação fática sobre um determinado bem. A posse caracteriza-se tanto pelo exercício como pela possibilidade de exercício. Ela é disponibilidade e não disposição; é a relação potestativa e não necessariamente o efetivo exercício." [90]

Na mesma senda segue Ricardo Fuiza, que a comentar o artigo 1.196 do novo Código Civil, afirma que "a posse é uma situação fática com carga potestativa que, em decorrência da relação sócio-econômica formada entre um bem e o sujeito, produz efeitos que se refletem no mundo jurídico. O seu primeiro e fundamental elemento é, portanto, o poder de fato, que importa na sujeição do bem à pessoa e no vínculo de senhoria estabelecido entre o titular e o bem respectivo. A posição de senhoria exterioriza-se através do exercício ou da possibilidade de exercício do poder, como desmembramento da propriedade ou de outro direito real, no mundo fático. Por sua vez, o poder exteriorizado ou a possibilidade do seu exercício estará , via de regra, em consonância com o direito real que ele representa na órbita do mundo de fato. Em outras palavras, a situação potestativa do mundo fático corresponderá àquela pertinente ao mundo jurídico, dentro de suas limitações." [91]

Como se observa, a vanguarda das teorias acerca da posse abstrai a secular discussão acerca do animus e do corpus.


8. A proteção possessória no sistema jurídico brasileiro contemporâneo.

No atual contexto do direito pátrio, a posse é tratada como simples fato. A propósito, lembra Adroaldo Furtado Fabrício que: "Posse é fato. Fracassaram as tentativas de caracteriza-la como um direito, inclusive a de Jhering, líder da corrente. A própria doutrina germânica, de um modo geral, manteve-se fiel à idéia de ser a posse simples fato, independente de qualquer relação jurídica entre pessoa e coisa". [92]

E, após trazer a lume a doutrina de Pontes de Miranda, que identifica o caráter fático da posse, conclui: "Sem dúvida, pode haver ‘direito de possuir, ou direito a possuir’, ou ainda, ‘direito à posse’, mas este direito positivamente não é posse, tanto que o titular daquele ius possidendi nem sempre é possuidor. Por outro lado, toda tentativa de justapor a esse direito de possuir um ‘direito de posse’(ius possessionis) esbarra na impossibilidade de se lhe atribuir um conteúdo determinado. O ‘direito de posse’ é direito a que, ou direito de quê? Qualquer resposta cairá ou na tautologia ou na confusão com o ius possidendi. Precisamente, o que caracteriza a posse é o prescindir, para torná-la digna de proteção jurídica, de saber se corresponde ou não à existência de um direito." [93]

Diversamente, Serpa Lopes, após mencionar as três concepções doutrinárias da posse, conclui: "Não temos dúvida em que a posse é um direito e não simplesmente uma pura relação de fato. Demais, ex facto oritur ius. Se formos considerar a posse como um não direito pela circunstância de se basear num fato, tal marca teríamos de lança-la em muitos outros institutos, porquanto do mesmo modo, se fundam em relações de fato. E entendemos assim como um direito por isso que se nos afigura incontestável a presença de uma relação jurídica em todo e qualquer fato tutelado pela ordem jurídica e aparelhado da actio." [94]

De minha parte, vejo a posse como uma relação fática de cuja juridicização dimanam direitos. Mas a posse em si não é um direito. É suporte fático.

A posse apresenta dupla tratativa, ou seja, tanto a lei processual como o direito material, versam sobre a matéria. Tanto a lei civil como a processual, estabeleceram a proteção ao possuidor, direto ou indireto, esbulhado ou turbado, ou em vias de sê-lo, inclusive de forma liminar (artigo 506 do CC revogado e 928 do CPC), distinguindo o CPC três hipóteses de ações, quais sejam: reintegração de posse manutenção de posse e interdito proibitório.

A espécie de ação será determinada pelo grau de ofensa à posse, correspondendo, as modernas ações, mutatis mutandis, aos interditos do direito romano.

A ação de imissão de posse, que no CPC de 1939 era considerada possessória, não mais ostenta este caráter, pois "em que pese presente o caráter possessório, a ação é dominial e de natureza petitória, não se confundindo com as possessórias típicas e, tampouco, com a reivindicatória" [95].

Esta dúvida deve-se "a confusão entre jus possessionis (ações possessórias) com jus possidendi (vindicação da posse, CC. art. 521)." [96]

Há divergência doutrinária acerca do caráter real ou pessoal das ações. A respeito, esclarece Marcelo Colombelli Mezzomo: "Diverge a doutrina quanto ao caráter pessoal ou real das ações possessórias. Adroaldo Furtado Fabrício após afirmar que a posse entra no mundo jurídico só quando ofendida sendo mero ‘meio suporte fático’ a que se soma a violação, aduz que ‘com efeito, do nosso ponto de vista as ações possessórias não envolvem de modo nenhum ius in re’. Ovídio Baptista da Silva opina contrariamente, ou seja, pelo caráter real e, após fazer menção as opiniões confusas e equivocadas acerca da ação (de direito material) e do direito subjetivo; bem como acerca da necessária presença de direito real nas ações reais, afirma que ‘se a posse é poder fático sobre um objeto, as pretensões que dela nascem haverão de ser pretensões reais’. Também Theodoro Júnior opina pelo caráter real, pois: ‘Na verdade não há razão para questionar em torno da natureza real da ação possessória, pelo menos em face do direito positivo nacional, posto que o artigo 95 do CPC, ao cuidar da competência para as ações reais imobiliárias, inclui expressamente entre estas, as possessórias.’" [97]

Astolpho Rezende, após longa digressão acerca da discussão do caráter pessoal ou real das ações possessórias acaba por concluir que "as ações possessórias não são, portanto, ações reais; e não o são porque reais são apenas as ações que nascem do jus in re, do direito real (domínio ou direito real sobre coisa alheia)." [98]

Na mesma esteira anota Serpa Lopes: "No Direito atual, pelo menos em relação aos sistema do nosso Direito positivo,a despeito de certas opiniões contrárias, entendemos melhor orientada a corrente que qualifica como real a açãopossessória." [99]

Diversa a opinião de Joel Dias Figueira Júnior, que após afirmar que a natureza jurídica da ação deve levar em conta a natureza jurídica da relação de direito material, no plano substancial, e o pedido, no plano instrumental, conclui: "Em síntese, por esses motivos, as ações possessórias não podem ser consideradas como ações reais ou ações pessoais, em que pese o entendimento contrário da doutrina e da jurisprudência dominantes. As demandas possessórias revestem-se de natureza puramente interdital em razão do caráter fático-potestativo que suas respectivas relações apresentam na órbita substancial. Por isso, a natureza jurídica não pode ser senão fático-potestativa." [100]

Também negando o caráter real das ações possessórias, segue Adroaldo Furtado Fabrício, que apostila: "Ainda na perspectiva que nos situamos inicialmente, qual seja a de ver na posse um fato e não um direito, perde toda significação o problema, em torno do qual se acirra as controvérsias, de ser ‘o direito de posse’ real ou pessoal. Se direito não é, não há de ser real nem pessoal, e aí não se encontrará o critério para a classificação da ação. Como entendemos, o ‘direito subjetivo material’ invocado pelo autor, em ação de cunho possessório - direito de ser reintegrado ou mantido na posse, ou ainda assegurado contra violência iminente -, não preexiste à ofensa, mas nasce dela. A posse é apenas ‘meio suporte fático’, a que precisa somar-se a violação ou ameaça para fazer incidir a regra protetiva. É então e só então que a posse ingressa no mundo jurídico; o Direito dá atenção à posse ofendida ou ameaçada, não à posse pacífica. Como pensar-se, nesse quadro, em direito real, em ius in re? A relação jurídica é entre o possuidor e o que ameaçou, embaraçou ou tomou a posse, apenas." [101]

Qualquer que seja sua natureza, as ações possessórias apresentam características especiais, três das quais são identificadas por César Fiúza como sendo: o caráter dúplice, a fungibilidade, a possibilidade de cumulação com pedido indenizatório. [102]

caráter dúplice coloca o demandado em condições de postular direito próprio no mesmo processo independentemente de reconvenção, "mas esta reciprocidade de posição jurídica entre as partes, esta alternatividade de atitudes entre autor e réu, na mesma demanda, só é possível em relação ao mesmo objeto litigioso" [103]. A respeito, lembra Francisco Antônio Casconi: "De modo geral, a relação jurídico-processual mantém uma polaridade bem definida no sentido de que uma das partes é a que pede para si um bem da vida e a outra, em face de quem é pedido, apenas se defende. Excepcionalmente, há situações em que os dois sujeitos da relação jurídico-material podem propor a mesma ação um contra o outro, surgindo a denominada ação dúplice. O art. 922 permite que o réu, na contestação, alegando que foi ofendido em sua posse, demande, por sua vez, proteção possessória e indenização pelos prejuízos resultantes da turbação ou esbulho cometidos pelo autor da ação. Tal pedido é possível em razão da natureza dúplice das possessórias. Podendo o réu formular pedidos na contestação, não se admite, em regra, reconvenção nas ações possessórias" [104].

Neste caso "qualquer dos litigantes pode assumir a posição de autor ou réu. Em tais condições, lícito é a este último pleitear seu direito e reclamar perdas e danos na própria contestação. Pode, ainda, o autor, pelo mesmo motivo, ser condenado a respeitar a posse do adversário, cominando-se-lhe idêntica pena à pedida na inicial." [105]. A duplicidade está prevista para as três modalidades de ações [106], mas há necessidade de pedido, não bastando mera improcedência da ação para beneficiar-se o réu.

A propósito, doutrina Arnaldo Rizzardo: "Vindo omissa a contestação, não cabe conceder-se tal proteção, eis que o caráter dúplice está no fato de o réu inserir na contestação seu direito de investir ou contra-atacar. De modo que a simples improcedência, por si só, não representa tutela judicial dispensada à posse do demandado. Não se deduz que está o réu autorizado a ingressar na posse, ou que restaram legitimados os atos que praticava, e atacados judicialmente. Mesmo quando o juiz afirma ser possuidor o réu, e revelar-se justa e de boa-fé sua posse, não está dispensando tutela possessória." [107]

Mas seriam as ações possessórias ações dúplices por natureza? Responde Adroaldo Furtado Fabrício nos seguintes termos: "Parece-nos que não. Em matéria de proteção possessória, supõe-se a existência de um possuidor e de um ofensor da posse; as correspondentes legitimações ativa e passiva são definidas por essas mesmas posições e não são intercambiáveis. O que antes denominamos polaridade da relação processual acha-se predeterminada antes mesmo da instauração do processo. Basta que se confronte a situação com os exemplos anteriores das ações de divisão e demarcação para saltar a vista a diferença. E, no entanto, a lei tornou dúplice a ação possessória, ao permitir que o juiz, no mesmo processo e independentemente de reconvenção, dispensasse a proteção possessória ao réu, se ele a requerer para si e provar os requisitos que normalmente se exigem do autor." [108]

A fungibilidade das demandas possessórias tem origem no caráter dinâmico da posse e na perspectiva instrumental do processo. A fungibilidade permite que uma ação possessória seja recebida e processada em lugar da outra, seja porque a primeira foi erroneamente ajuizada, seja porque a situação de fato evoluiu. O CPC foi expresso ao atribuir fungibilidade às ações possessórias, consoante se depreende do artigo 920, excepcionando a regra segundo a qual o pedido vincula o juiz (princípio dispositivo que se traduz para o julgador no princípio da congruência ou simetria).

A respeito da fungibilidade, manifesta-se Arnaldo Rizzardo, verbis: "De forma geral, o erro na denominação correta do interdito provém, às vezes, do erro do interessado quanto ao fato em si, ou de equívoco no referente à qualificação do fato, ou mesmo de uma modificação quanto a apresentação do fato. Por outras palavras, o prejudicado informa em sua inicial que lhe foi retirado o bem, embora tenha ocorrido uma simples turbação, ou refere corretamente os fatos acontecidos, mas avalia-os erroneamente, com dimensões não correspondentes à realidade; ou, ainda, apesar da correta exposição dos fatos, ocorre após uma mudança no rumo dos mesmos. Assim, no caso de ser o ato inicial do esbulhador mera turbação, vindo somente mais tarde a tornar-se público o esbulho. São estas umas das razões que justificam a conversibilidade dos interditos. Somam-se outras, como a idêntica natureza das ações, sempre objetivando a proteção possessória; e a dificuldade prática em se identificar ou dimensionar o tipo de ofensa à posse." [109]

No mesmo diapasão, afirma Adroaldo Furtado Fabrício que "cada uma das ações possessórias tem como pressuposto uma forma específica de hostilidade à posse, que, em escala crescente de gravidade, vai da simples ameaça ao esbulho, passando pela turbação. Contudo, isso não inibe o juiz de outorgar a proteção possessória, mesmo quando requerida sob denominação inadequada ou com invocação de um por outro daqueles pressupostos. É tradicional no Direito Brasileiro a regra nesse sentido, pois, já no tempo da consolidação de Ribas, a doutrina e a jurisprudência a tinham como vigente." [110]

Isto ocorre porque "sobreleva o caráter pragmático das ações, o que exige uma pronta atuação do Estado, pois o possuidor que intenta o pedido de amparo contra ofensa de sua posse, em verdade, pretende, pela prestação jurisdicional, que seja interrompida a ação do ofensor, com a volta da situação anterior, quando ele exercia plenamente a posse." [111]

A terceira característica é a cumulabilidade da tutela interdital com a condenatória, visto que possível o pedido de perdas e danos, conforme preconiza o artigo 921 do CPC. Mas, "as perdas e danos indenizáveis segundo o artigo são os decorrentes da ofensa à posse, e somente estes. Prejuízos outros, não relacionados com os atos ofensivos, não podem ser objeto dessa especial forma de cumulação." [112] A cumulação pode ser intentada sem prejuízo do rito especial. [113]

Tal possibilidade de cumulação estende-se ao réu. A propósito, o escólio de Adroaldo Furtado Fabrício, reportando-se a Couto e Silva: "Silencia o artigo quanto à possibilidade de cumulação dos outros pedidos previstos no artigo 921, por parte do réu. Mas, dada a eadem ratio, não se percebe motivo para que o réu se prive de pedir, se for o caso, também cominação de pena para futuras agressões á posse e o desfazimento de plantações e construções. Estabelecida ex lege a duplicidade da ação, facultam-se ao réu as mesmas cumulações permitidas ao autor pelo art. 921 do Código." [114]

Uma quarta característica das ações possessórias pode ser apontada na preponderante carga executiva, a respeito da qual o processualista gaúcho acima citado tece as seguintes considerações: "Seja de manutenção, seja de reintegração, o julgado impõe por si mesmo os seus efeitos, sem necessidade de um ulterior processo de execução; esta se restringe à expedição e cumprimento de um mandado, sem necessidade de nova citação ou formalidades outras. A ‘auto-executabilidade’ da sentença deferitória da reintegração ou manutenção é característica da proteção interdital e, portanto, independente do rito, assim como independente da haver decorrido tempo maior ou menor de ano e dia desde a ofensa à posse até o ajuizamento da ação." [115]

Esta característica é realçada por Orlando de Assis Corrêa, que escreve: "A sentença que julga procedente o pedido tem força executiva por si própria, não dependendo sua execução de pedido ‘de execução de sentença’. Poderá haver execução, e até mesmo liquidação de sentença, como vimos antes, quando houver pedidos cumulados, ou para recebimento de honorários. A reintegração ou a manutenção,porém, decorrem da própria decisão, mediante o mandado de reintegração ou manutenção." [116]

De par com as ações possessórias stricto sensu, há outros remédios judiciais como os embargos de terceiro e a nunciação de obra nova.

Além deles, há a possibilidade de desforço pessoal, que foi mantida pelo Novo Código Civil, artigo 1210, parágrafo 1º. [117]

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A posse.: Uma digressão histórico-evolutiva da posse e de sua tutela jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 743, 14 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6985. Acesso em: 11 mai. 2024.

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