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A responsabilização penal dos crimes cometidos durante a ditadura militar sob a óptica da justiça de transição

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Agenda 11/12/2018 às 11:49

3. POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A LEI DE ANISTIA

O Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do RE 466.343 entendeu, por maioria de votos, que os Tratados de Direitos Humanos são superiores a legislação infraconstitucional, podendo ter dois níveis hierárquicos a depender do rito de incorporação dos tratados: a) hierarquia supralegal para aqueles incorporados pelo rito ordinário e b) hierarquia constitucional para aqueles que observarem o procedimento especial estabelecido no § 3º do Art. 5º da Constituição Federal de 1988. Segundo Piovesan, independentemente da forma de incorporação do tratado de direitos humanos, realizando-se uma interpretação sistemática e teleológica da Constituição, os mesmos possuem natureza de norma constitucional (PIOVESAN, 2013).

Através do posicionamento do STF, percebe-se que ele garante uma superioridade dos Tratados de Direitos Humanos, frente as normas infraconstitucionais, seja através da hierarquia supralegal ou através da hierarquia constitucional.

A Emenda Constitucional de nº 45 de 30 de dezembro de 2004 trouxe uma revisão na posição do Supremo Tribunal Federal sobre Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos. Antes desta norma alguns julgadores do Supremo Tribunal Federal viam os Tratados e Convenções de Direitos Humanos como equivalentes à lei ordinária federal, ou seja, como normas colocadas hierarquicamente em patamar inferior à Constituição Federal de 1988.

A visão do Supremo Tribunal Federal era que os Tratados ou Convenções Internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, seriam situados, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em consequência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa (BEZERRA, 2016, p. 9).

Com o advento da Emenda Constitucional de nº 45 de 30 de dezembro de 2004, especialmente pelas mudanças inseridas ao artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, mormente a inserção do novel parágrafo 3º, o Supremo Tribunal Federal teve que fazer uma releitura de suas decisões, visando atualizá-las para adequá-las à nova normativa constitucional (Ibidem, p. 10).

No entanto, a forma como o texto do parágrafo 3º, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988 foi redigido trouxe divergências de interpretação. As principais críticas à reforma constitucional nesse particular derivam do entendimento de que o legislador reformista não teria levado em consideração a doutrina e a jurisprudência internacionais já consolidadas no sentido de equiparar as normas dos Tratados e Convenções Internacionais sobre direitos humanos com as normas constitucionais (Ibidem, p. 10).

Segundo Valério de Oliveira Mazzuolli, todos os Tratados e Convenções Internacionais de direitos humanos, desde que ratificados e em vigor no Brasil, independentemente do quorum de sua aprovação, têm nível de normas constitucionais, à luz do parágrafo 2º, do artigo 5º, da Constituição Federal de 19883. Já os Tratados e Convenções Internacionais que não versem sobre direitos humanos possuem status de “supralegalidade”, ou seja, são colocados acima das leis e abaixo da Constituição Federal de 1988 (MAZZUOLLI, 2013, p. 235).

Flávia Piovesan afirma que os tratados e convenções ratificados antes da EC 45/2004 são materialmente constitucionais por força do art. 5º, § 2º, no entanto, só serão formalmente constitucionais se passarem pelo rito do § 3º do art. 5º. Assim, se inseridos no ordenamento jurídico com status de norma constitucional deverá o legislador, no momento de criação das leis infraconstitucionais, observar a compatibilidade com o conteúdo desses tratados (PIOVESAN, 2013, p.145).

Em outras palavras, os tratados internacionais incorporados ao direito brasileiro passam a ter eficácia paralisante (para além de derrogatória) das demais espécies normativas domésticas, cabendo ao juiz coordenar essas fontes (internacionais e internas) e escutar o que elas dizem. (JAYME, 1995, p. 259)

Mas, também, pode ainda existir o controle de convencionalidade concentrado no Supremo Tribunal Federal na hipótese dos tratados de direitos humanos (e somente destes) aprovados pelo rito do art. 5o, § 3o, da Constituição (MENDES, 2005, p. 239).

Alçados ao patamar constitucional, com equivalência de Emenda Constitucional, por questão de lógica deve também garantir-lhes os meios que garante a qualquer norma constitucional ou Emenda de se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional (MAZZUOLLI, 2015, p. 235).

Caso o tratado em causa tenha sido aprovado por maioria qualificada e, posteriormente, ratificado e entrado em vigor no Brasil com “equivalência” de emenda constitucional, a situação muda. De fato, se a Constituição possibilita sejam os tratados de direitos humanos alçados ao patamar constitucional, com equivalência de emenda, por questão de lógica deve também garantir-lhes os meios que prevê a qualquer norma constitucional ou emenda de se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional (MAZZUOLI, 2015).

Em outras palavras, não se pode propor, com base nesses instrumentos, as ações do controle abstrato de normas (ADI, ADC, ADPF etc.) para invalidar as leis federais ou estaduais contrárias aos seus comandos, senão apenas se utilizar do controle difuso de convencionalidade (se se entender, como nós, que os tratados de direitos humanos não aprovados por maioria qualificada no Congresso têm status – não “equivalência” – de norma constitucional) ou do controle de supralegalidade das normas infraconvencionais (se se entender, como o STF, que os tratados de direitos humanos não aprovados por maioria qualificada guardam nível supralegal no Brasil). (MAZZUOLI, 2015).

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No caso dos Tratados e Convenções Internacionais de direitos humanos não internalizados pelo quorum qualificado do referido parágrafo 3º, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, “passam eles a ser paradigma apenas do controle difuso de convencionalidade” (MAZZUOLLI, 2013, p. 235).

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no ano de 2010, ingressou com uma ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental questionando a validade da lei de Anistia para os casos de tortura e crimes comuns cometidos durante da Ditadura Militar.

Em abril de 2010, o STF, votou, por sete votos a dois, pela improcedência da ADPF 153, decidindo pela manutenção da Lei da Anistia no ordenamento jurídico pátrio.

A anisitia implementada no Brasil não se conecta com o conceito de Justiça de Transição, foi uma anistia aos membros do Estado e funcionários dele (uma autoanistia). Esse entendimento da lei impediu um real avanço da Justiça de Transição, que ficou impedida de punir penalmente os responsáveis por torturas ou assassinatos em nome do Estado ditatorial, por exemplo. Segundo Remigio, a Lei da Anistia “pretendeu selar um acordo e jogar ao esquecimento as perversidades praticadas pelos agentes estatais da repressão, em contramão à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que não reconhece a validade de leis de autoanistia” (GREGO; HAMDAN, 2016, p. 213-225).

Com relação às respostas judiciais das ações penais, consistentes basicamente em decisões de primeira instância sobre recebimento ou rejeição de denúncia ou julgamento de Recurso em Sentido Estrito ou Habeas Corpus em segunda instância. Em 100% dos casos as decisões não estão fundamentadas no mérito da ação propriamente dito (ou seja, o cometimento do fato típico, antijurídico e culpável), mas apenas na afirmação genérica da incidência da Lei de Anistia e das normas de prescrição para os casos denunciados, inclusive com relação aos crimes permanentes não exauridos (como o caso das ocultações de cadáver) (BRASIL, 2017).

Para Pedro Dallari, último coordenador da Comissão da Verdade, as Forças Armadas no Brasil deveriam reconhecer a responsabilidade institucional pelo que houve no passado, disse também que tal episódio recente da revelação do memorando secreto da CIA onde diz que o General Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, sabia e autorizou execução de opositores durante a ditadura militar, deveria servir para o Supremo Tribunal Federal reavaliar a interpretação da lei de Anistia, processando na Justiça e responsabilizando os culpados (DELLARI, 2018).

Depende do Supremo Tribunal Federal a decisão sobre a possibilidade de julgamento daqueles que deram causa a todas violações praticadas, diretamente ou indiretamente (Ibidem).

Para a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a Câmara Criminal do Ministério Público Federal, o Brasil é o único país do continente que protege os autores das violações de direitos humanos com a lei de anistia, impunidade esta que desrespeita as obrigações assumidas pelo Brasil de acordo com o direito internacional e com a própria Constituição Federal:

O Ministério Público Federal, desde 2008, investiga e processa esses crimes, em estrita observância a essas normas. Entretanto, em razão da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 153, que considerou válida a Lei de Anistia à luz do direito brasileiro, o Poder Judiciário tem sido refratário às iniciativas de responsabilização criminal dos autores dessas graves violações aos direitos humanos (MATAIS, 2018).

A impunidade é prejudicial para a nossa democracia, não houve punição dos culpados e cúmplices tornando o Estado descredibilizado. Da mesma forma, a não responsabilização pessoal tornou difícil a identificação dos mandantes e dos realizadores de torturas, assassinatos, entre outros. Como bem posto por Cláudio Ferreira de Souza Neto e Daniel Sarmento:

mas, se sobram constituições, faltou-nos constitucionalismo. A maior parte das constituições que tivemos não logrou limitar de forma eficaz a ação dos governantes em favor dos direitos dos governados. Muitas dela foram pouco mais que fachadas, que visavam a emprestar uma aparência de legitimidade ao regime, mas que não subordinaram efetivamente o exercício do poder, que se desenvolvia quase sempre às suas margens. No nosso conturbado processo político, abundam os golpes e desvios em relação às constituições vigentes, com ou sem rompimento formal com elas.

O autoritarismo, a confusão entre o público e o privado, a exclusão social e a violação dos direitos mais básicos de amplos segmentos da população são patologias crônicas da trajetória nacional, que têm persistido renitentemente, a despeito da retórica das nossas constituições (NETO; SARMENTO; 2014).


CONCLUSÃO

O que se pode concluir, ao fim e ao cabo da exposição teórica, é que em seu artigo primeiro, a Constituição Federal define a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, caracterizado pela ideia de governo do povo, participação política, respeito à dignidade da pessoa humana e exercício permanente da cidadania.

Exemplo disso é o artigo 5º da Constituição Federal e seus incisos III e XLIII:

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

(...)

 XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;” (BRASIL, 1988). 

O Sistema Internacional de Direitos Humanos busca garantir e direcionar a aplicação das disposições da Declaração Universal dos Direitos Humanos às diversas realidades que compõem a comunidade internacional, de modo a promover a paz, a igualdade e a proteção da dignidade humana. (SANTOS, 2010).

Conforme disposto no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça o Brasil, faz parte da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados desde 2002, onde tem a obrigação internacional de cumprir com o que foi acordado quando da sua assinatura e/ou ratificação dos tratados, segundo determinação do princípio pacta sunt servanda, que além de previsto no artigo 26 da citada Convenção de Viena, é considerado regra costumeira de Direito Internacional e, portanto, uma de suas principais fontes legais cogentes (Ibidem).

No caso brasileiro, os crimes ocorridos no período da ditadura ferem os Direitos Humanos, tendo o Estado o dever de investigá-los e puni-los. No entanto existem dificuldades relacionadas ao decurso do tempo e falta de provas, entre outros. Mesmo assim, alguns autores, entendem que essa investigação deve ocorrer, mesmo que seja em desacordo acordo com os tipos penais existentes em seu direito interno. Este dever de investigação e punição são obrigações de jus cogens, ou seja, direito cogente, assim os Estados têm o dever de cumpri-las (SANTOS, 2010, p. 121).

Mesmo com este compromisso constitucional de concretização dos direitos humanos, é notória a abstenção do nosso País em relação à investigação e à punição dos crimes de tortura e outros crimes cometidos pelas instituições policiais e militares durante a Ditadura, bem como em relação à abertura de arquivos da época e determinação da verdade sobre os acontecimentos. Essa omissão do Estado brasileiro afeta diretamente a essência do Estado Democrático de Direito, tendo em vista que viola os princípios que sustentam o Estado que a República Federativa do Brasil se propõe ser, sendo essa abstenção inaceitável (LINHARES, 2010, p. 4887).

Com relação à responsabilização dos crimes cometidos durante o regime de exceção, o STF entende que a Lei de Anistia extingui a responsabilidade penal de todos aqueles que cometeram crimes políticos e crimes comuns relacionados a crimes políticos entre 2 de setembro de 1961 até 15 de agosto de1979 (ADPF 153), panorama este traçado em conformidade com a jurisprudência interna mesmo que em dissonância com o que tem sido decidido nos Tribunais Internacionias (BRASIL. VARA FEDERAL. 9º Vara Federal Criminal de São Paulo. Processo nº 0011715-42.2016.403.6181).

Ademais, quando se fala em responsabilização por atos estatais que configuram crimes contra a humanidade admitem-se duas possibilidades, não excludentes, a responsabilidade assumida pelo próprio Estado e a responsabilidade pessoal dos agentes que cometeram trais crimes. A responsabilidade política do Estado implica juridicamente no reconhecimento da condição de mortos ou desaparecidos, na obrigação correlata de indenizar as vítimas pelos danos sofridos e também no compromisso de restituir administrativamente benefícios, vantagens ou posições pessoais subtraídas por razões políticas.

Já a responsabilização dos agentes criminosos é pessoal, envolvendo os aspectos civis, administrativos e criminais. Na área criminal é averiguada a exata participação do agente, estabelecendo a punição de acordo com a punibilidade do agente.

Neste caso, a possibilidade de responsabilização pessoal de agentes estatais por atos criminosos encontra forte precedente no julgamento dos criminosos nazistas após a Segunda Guerra, não só nos famosos julgamentos do Tribunal de Nuremberg, mas também naqueles realizados pelo próprio Estado Alemão, exemplarmente o Julgamento de Auschwitz, que apurou em Frankfurt, entre 1963 e 1965, crimes ocorridos naquele campo de concentração (LINHARES, 2010, p. 4887/4888).

Ainda que não revestida de natureza constitucional, a supralegalidade da Convenção Americana de Direitos Humanos alça suas disposições a um patamar normativo superior àquele ocupado pelas disposições da Lei 6.683/89. A antinomia entre ambas pode ser resolvida por meio do emprego do critério hierárquico: lex superior derogat inferiori. Assim, prevaleceria a norma hierarquicamente superior — qual seja, a Convenção Americana de Direitos Humanos (NETO, 2014).

Não fosse suficiente a incompatibilidade frente à Convenção Americana de Direitos Humanos, a Lei de Anistia revela-se material e originariamente inconstitucional, não apresentando qualquer valor jurídico o suposto perdão criminal aos agentes públicos que cometeram violações a direitos humanos (WEICHERT, 2010, p. 62-103).

O Brasil foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos a processar, condenar e punir os agentes públicos violadores dos Direitos humanos pelos crimes que cometeram. Dessa forma, o Estado Brasileiro tem por obrigação rever a Lei 6.683/79 (Lei de Anistia), que não pode funcionar como mecanismo de impunidade aos crimes contra humanidade cometidos à época. Em suma, em relação aos outros países do Cone Sul, o Brasil teve uma excepcional política de Justiça Transicional, que por ventura de uma Lei da Anistia ainda vigente, vê impossibilitado o julgamento e responsabilização desses agentes pelos crimes e violações aos direitos humanos.

Admitir o contrário seria ignorar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, elemento nuclear de nosso sistema constitucional e do próprio direito internacional dos direitos humanos. A interpretação da Lei de Anistia que inclui, em seu âmbito de proteção, os agentes do Estado não passa no teste do controle de convencionalidade. Por isso, ainda que o Supremo Tribunal Federal não reveja a decisão proferida na ADPF 153, os juízes competentes podem julgar ações penais ajuizadas contra agentes públicos que cometeram crimes contra os direitos humanos durante o regime militar.

Por fim, é preciso sempre lembrar o período da ditadura no País, bem como os tantos outros episódios que ainda hoje marcam nossa história com práticas políticas e policiais de abuso de poder. Conforme Galeano (2009), “o esquecimento, diz o poder, é o preço da paz, [...] uma paz fundada na aceitação da injustiça como normalidade cotidiana” (2009, p. 214). Que nunca aceitemos este tipo de paz.

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