2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO NORMA FUNDAMENTAL
A necessidade de atribuir ao indivíduo um valor intangível originou-se, especialmente, de documentos históricos como a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, e da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, os quais reconheceram importantes direitos humanos, tais como a liberdade e a igualdade.[21] Porém, é com a Declaração Universal de Direitos Humanos[22], de 1948, que a dignidade humana tornou-se efetivamente consagrada, princípio do qual decorrem os demais valores essenciais à sociedade.[23]
O princípio somente passou a ser incluído expressamente nas Constituições após a Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, somente se faz constar em parte das Constituições do mundo, com maior predominância nas europeias e americanas, o que não significa que nos demais países não haja observância do princípio. Todavia, é certo que a partir da sua expressa inclusão como norma jurídica, propicia-se um grau de reconhecimento e de proteção.
A dignidade da pessoa humana serve como fundamento para os demais princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, servindo como suporte axiológico para todo o ordenamento jurídico.[24] Tendo em vista a sua importância, a dignidade foi, inclusive, consagrada pela Constituição Federal como fundamento do Estado Democrático de Direito.[25] A partir da previsão normativa, vislumbra-se, além da necessidade de o indivíduo impedir a sua degradação, a necessidade de o Estado propiciar ao indivíduo a garantia de sua existência material mínima.[26]
No Brasil, numa clara intenção de outorgar a alguns valores, a força de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, o constituinte optou por apresentá-los em título distinto sob o nome de ‘princípios fundamentais’, com o propósito de serem o núcleo essencial da Constituição. Assim, a dignidade da pessoa humana ali inserida, perpassa por todo o texto constitucional, tácita ou expressamente, servindo inclusive para nortear as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais.
Por previsão expressa no texto constitucional, não há dúvidas de que, no Brasil, a dignidade humana possui o status de norma jurídica fundamental do Estado, de modo que possui normatividade e aplicação a todo o sistema de regras e princípios constitucionais. Nesse sentido, é o Estado que funciona como o meio de concretização dos pressupostos da dignidade humana, como um fim de conferir efetividade à previsão constitucional.[27]
O fato de a dignidade constar no rol dos Princípios Fundamentais da Constituição não significa que ela contém apenas uma declaração de conteúdo moral e ético, sem força de concretização, mas que, além de ser dotada de eficácia plena, também é guia para os direitos e deveres fundamentais, sejam os elencados no artigo 5º ou noutras partes do texto constitucional. Entretanto, cabe destacar que a dignidade não deve ser vista propriamente como um direito em si, mas como um direito ao seu reconhecimento, respeito, proteção e até mesmo promoção e desenvolvimento, o que faz concluir que a dignidade é um fim que pode ser sempre alcançado quando existirem os meios necessários e suficientes para que o ser humano possa usufruir uma vida digna.
Por outro lado, conforme se verá adiante, não se pode pretender que o status de princípio fundamental a que foi lhe atribuído enseje o entendimento de que a dignidade é princípio de feições absolutas, sem qualquer flexibilidade. Esta noção, como bem lembra Alexy, contradiz a própria noção de princípio, além de que, a dignidade pode ser realizada em diversos graus, visto que por vezes existem conflitos de dignidade entre pessoas.
3 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS
A Dignidade da pessoa humana confere à ordem constitucional unidade de sentido e legitimidade, uma vez que se irradia por todo seu texto e é a base de nosso Estado democrático de Direito. Dessa forma, os direitos e garantias fundamentais também têm nela seu fundamento direto e imediato e funcionam como uma espécie de especificação, embora o grau de vinculação é diferenciado, de tal sorte que existem direitos que constituem explicitações em primeiro grau da idéia de dignidade e outros que decorrem destes. É assim que o Poder Judiciário, nas suas decisões judiciais, via de regra se refere à dignidade da pessoa, isto é, não como fundamento isolado, mas vinculado à determinada norma de direito fundamental, compreendendo-se que os direitos fundamentais são garantias específicas daquele princípio, ou num certo sentido, mero desdobramento.
Nessa linha de raciocínio, o princípio da dignidade da pessoa humana relaciona-se, em muitas situações, com os direitos fundamentais, já que em regra, uma violação a um direito fundamental estará vinculada a uma ofensa à dignidade da pessoa. Nestes casos, a dignidade da pessoa apresenta feições de norma geral, já que a existência de determinado direito fundamental, não exige que ela seja invocada para a concretização do direito. Por outro lado, naquelas questões em que o caso não se compatibiliza claramente com um direito fundamental expresso, a dignidade da pessoa pode ser utilizada diretamente, como ocorre nas situações que envolvem novas ofensas e ameaças, a exemplo dos excessos cometidos nas manipulações genéticas.
É de se destacar que, da mesma forma, os direitos sociais, econômicos e culturais, seja na condição de direitos de defesa (negativos), seja na dimensão prestacional (atuando como direitos positivos), constituem exigência e concretização da dignidade da pessoa humana.[28] Assim, o reconhecimento da liberdade de associação sindical, o direito de greve, de jornada de trabalho razoável, discriminações nas relações trabalhistas, dentre outros, objetivam em última análise a proteção da pessoa contra a afronta a sua existência com dignidade. Sob a ótica do Estado, todos os órgãos estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa, impondo um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação de abster-se de ações que atentem contra ela, bem como no dever de protegê-la contra agressões oriundas de terceiros, sejam pessoas particulares ou não, como ainda, na obrigação de agir para que ela possa ser concretizada.
Outrossim, a dignidade humana possui relação intrínseca com a garantia de direitos fundamentais mínimos na esfera constitucional, denominado por parcela da doutrina como o mínimo existencial, vez que não se pode assegurar uma vida digna a um indivíduo se não forem atendidas determinadas garantias. O mínimo existencial é composto, especialmente, pela educação, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à justiça.[29] Se essas condições matérias básicas não forem atendidas, estar-se-á frustrando a tutela da dignidade humana, por impedir o gozo de bens materiais e imateriais que permitem o desenvolvimento autônomo e digno do cidadão.[30]
Conforme o exposto, deste princípio resultam duas consequências: a) assegura que uma pessoa não poderá ser reduzida à condição de mero objeto para uma finalidade a ser alcançada por terceiros. Há destaque para a esfera negativa dos direitos fundamentais, vez que consiste em uma esfera de proteção contra atos que ocasionem lesão ou ameaça às garantias do indivíduo; b) impõe deveres ao Poder Público a fim de resguardar a dignidade da sociedade, inclusive mediante medidas prestacionais positivas.[31]
Ademais, é possível visualizar que, a partir do respeito à dignidade humana, decorrem quatro consequências: a) a igualdade de direitos entre todos os homens, passando a integrar a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) a garantia da independência e autonomia do indivíduo, tendo especial atenção aos meios de coação externa em sua personalidade ou à atuação que implique a sua degradação; c) a proteção dos direitos inalienáveis do homem; d) a impossibilidade da negativa dos meios essenciais para o desenvolvimento como pessoa ou da imposição de condições degradantes de vida.[32]
Barroso ressalta, ainda, três observações sobre o princípio da dignidade humana: a) o princípio é parte do conteúdo dos direitos fundamentais, mas com estes não se confunde. Não é tampouco um direito fundamental em si, ponderável com os demais, mas consiste em parâmetro de ponderação em caso de concorrência entre direitos fundamentais; b) apesar de ser um valor ou princípio fundamental, a dignidade humana não tem caráter absoluto; c) aplica-se tanto às relações entre indivíduo e Estado, quanto nas relações privadas.[33]
A constitucionalização do princípio da dignidade humana modificou, sobretudo, a sua construção jurídica, ao tornar-se o elemento fundante de todo o ordenamento jurídico. Pode-se afirmar que atualmente, a dignidade humana é considerada como um superprincípio constitucional, no qual todas as demais escolhas políticas realizadas no mundo jurídico são fundamentadas.[34]
Diante dessas considerações, é possível compreender que a dignidade humana não se coaduna como um conceito vazio ou abstrato, mas sim como um conceito valorativo, o qual determina um valor constitucional como o centro do ordenamento jurídico. Esse conceito define, ao mesmo tempo, uma norma constitucional e um direito fundamental, o que remete a uma visão na qual o ser humano deve ser considerado a base na interpretação das demais normas.[35]
Ao aprofundar-se o pensamento acerca da dignidade, visualiza-se um distanciamento entre o discurso e a prática quando se abordam as questões relacionadas à pobreza e a exclusão social, por uma série de razões. É que, para muitos, a pobreza é um dado relativo e varia de um lugar para outro, além de que a vida indigna pela qual passam os pobres não é suscetível de resolução diretamente pelo Estado, pois exige investimentos públicos maciços nesta direção, o que por vezes é impossível. Parece um paradoxo, mas o Estado que foi idealizado pela sociedade para atender às suas necessidades, mas não consegue fazê-lo. A explicação talvez possa estar na crise do modelo de Estado de Bem-Estar Social.
O Estado de Bem-Estar construiu-se ao impulso das políticas econômicas Keynesianas, adotadas pela maioria dos países industrializados após a segunda guerra mundial e foi o resultado de um compromisso entre as classes sociais, em que aquelas detentoras do poder, aceitaram a aplicação de políticas de redistribuição das rendas através dos salários e de políticas fiscais coerentes.[36] No início dos anos 80, o pensamento Keynesiano foi sendo cada vez mais rejeitado pelas classes dominantes e substituído pelo modelo neoliberal, que é contrário ao Estado de bem-estar.[37] Por conseqüência, a crise porque passa o Estado de bem-estar reduziu sensivelmente os direitos sociais, deixando no cidadão o sentimento de inoperância do poder público.
Além disso, no Brasil, há um agravante ainda mais perverso, decorrente do endividamento do Estado. Trata-se do pagamento de juros e amortização do principal, os quais comprometem sobremaneira as receitas arrecadadas. Em 2004 a arrecadação do país foi de aproximadamente R$ 634 bilhões[38], entretanto, a previsão dos gastos com pagamento da dívida pública, somente do Governo Federal representou R$ 170 bilhões[39]. Segundo o mesmo relatório, os gastos previstos em educação são da ordem de R$ 13,8 bilhões, na saúde, R$ 33 bilhões, na habitação, R$ 568 milhões, na segurança pública, R$ 2,7 bilhões, e em saneamento, R$ 184 milhões.
Cabe ainda analisar se o princípio da dignidade da pessoa humana é absoluto ou podem ser estabelecidas limitações a ela. Desde já surge o problema do conflito de dignidades entre pessoas, em que se necessita saber se é possível, com o escopo de proteger a dignidade de alguém ou de uma coletividade, afetar a dignidade do ofensor, que, pela sua condição humana, é igualmente digno, mas que, ao menos naquela circunstância, agiu de modo indigno e violou a dignidade de semelhantes. Como exemplo, cita-se o caso extremo de um assassino cruel, preso numa cadeia com superlotação e sem as mínimas condições de abrigar detentos. Nesta situação, certamente não se justifica sua soltura com base no princípio da dignidade da pessoa, pela inexistência de condições dignas de cumprir a pena, mas isto não retira o direito do apenado cumprir a sanção em ambiente digno. Por outro lado, é elementar a inadmissibilidade da utilização da tortura para a obtenção de confissão do acusado, ainda que as provas demonstrem fortes indícios da prática do crime.
Nesta mesma linha, observa-se que a dignidade da pessoa, por não possuir conceito fechado, fica inevitavelmente sujeita a interpretações relativizadas, seja do juiz, do administrador ou mesmo do particular. Se a dignidade sofre as influências históricas e culturais, fazendo com que possua diferentes conotações de acordo com o lugar e o tempo em que é avaliada, o seu entendimento passa a ser diverso de acordo com estas variáveis.[40]
O mesmo ocorre quando se faz uma contraposição entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à vida, tomando-se como exemplo um doente em fase terminal, vítima de sofrimentos atrozes e sem qualquer esperança de sobrevivência, onde, de um lado, se busca justificar a manutenção da vida e, de outro, eliminar o sofrimento indigno e desumano com a morte consentida. Nesse conflito, prevalece o direito à vida ou o princípio da dignidade da pessoa?
Se não há ainda solução para questões como esta, extrai-se a conclusão da evidência de que o princípio da dignidade da pessoa, como qualquer outro, sempre haverá de ter uma necessária relativização, apesar da sua prevalência no confronto com outros princípios e regras constitucionais. Mas, esta relativização aparenta menos ter o sentido de contraposição a absoluto e mais a flexibilização do seu conteúdo. É que, ainda que se possa reconhecer a possibilidade de relativização da dignidade da pessoa, e até algumas restrições a ela, há que se respeitar e preservar um núcleo intocável da dignidade, o qual pode ser entendido na visão Kantiana como a negação de transformar o ser humano em objeto. Portanto, toda vez que se ultrapassa este limite, há uma afronta à dignidade do ser humano.
Diante dessas considerações, é possível compreender que a dignidade humana não se coaduna como um conceito vazio ou abstrato, mas sim como um conceito valorativo, o qual determina um valor constitucional como o centro do ordenamento jurídico. Esse conceito define, ao mesmo tempo, uma norma constitucional e um direito fundamental, o que remete a uma visão na qual o ser humano deve ser considerado a base na interpretação das demais normas.[41]