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Corte de energia elétrica por falta de pagamento.

Prática abusiva. Código do Consumidor

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Agenda 01/02/2001 às 00:00

Sumário: 1. O fornecimento de energia elétrica como serviço essencial. 2. A qualidade do serviço público e o atendimento ao consumidor. 3. A teoria da lesão e o direito do consumidor a reparação por danos praticados pelo fornecedor. 4.Da abusividade das práticas comerciais nas relações de consumo. 5. O corte de energia e o constrangimento do consumidor. 6. A antinomia entre a norma do consumidor e outra norma jurídica. 7. O direito fundamental do consumidor e o princípio da proibição de retrocesso. 8. A prática abusiva do corte de serviço essencial. 9. Conclusão.


1. O fornecimento de energia elétrica como serviço essencial

Os serviços de energia elétrica são, sem dúvida, relações de consumo, considerado fornecedor a empresa de energia elétrica, na forma do art. 3º do CDC. e os usuários são consumidores na forma do art. 2 e parágrafo único da norma consumerista.

O serviço de energia é serviço público essencial, subordinado ao princípio da continuidade, na forma do art. 22 do Código do Consumidor, da mesma forma que o serviço de telefonia e água.(1)

Enuncia o art.22 e seu parágrafo único do CDC , que " Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais contínuos"

Cumpre registrar que a Portaria nº 03/99 da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (publicada em 19/0399), reconheceu como serviço essencial o fornecimento de água energia elétrica e telefonia.(2)


2. A qualidade do serviço público e o atendimento ao consumidor.

Verifica-se em muitos casos que o consumidor não efetua o pagamento não porque não quer, mas porque há situações imprevisíveis que foge a esfera de sua vontade, tais como o atraso no salário, problemas de saúde, etc...inviabilizando o pagamento da conta de energia elétrica.

Arrimado a este fato existem hipóteses de débitos indevidos praticados pelo fornecedor, que com a ameaça de desligamento, impossibilita o direito de revisão.

O art. 6, X do CDC. consigna que é direito básico do consumidor "a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral".

O art. 4º do CDC. estabelece a política nacional das relações de consumo, cujo objetivo é atender as necessidades dos consumidores, respeitando à sua dignidade, saúde e segurança, providenciando a melhoria de sua qualidade de vida.

Prescreve ainda a legislação consumerista, a ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor, garantindo que os produtos e serviços possuam padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.(art.4, II, d); devendo o Estado ainda providenciar a "harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (artigo 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;"(art.4.III).

O art. 175, parágrafo único, inciso IV da Constituição Federal estabelece:

"Art. 175 - Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único - A lei disporá sobre:

IV - a obrigação de manter serviço adequado."

A lei 8.987/95 que dispõe sobre o regime de concessão e permissão de serviços públicos, estabelece no art. 6, que "Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários", afirmando no § 1º o conceito de serviço adequado como sendo "o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.(3)

Por fim registra-se que o art. 4, VII do CDC. imputa ao Estado o dever da melhoria dos serviços públicos.


3. A teoria da lesão e o direito do consumidor a reparação por danos praticados pelo fornecedor.

O Código do Consumidor assegura ao consumidor, o direito de reparação pelos danos sofridos. Estabelece o art. 6, VI do CDC:

Art. 6º - São direitos básicos do consumidor:

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

No mesmo sentido estabelece o art. 22, parágrafo único do CDC,:

"Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados na forma prevista neste Código" .

Antônio Herman Benjamin conclui ao comentar o parágrafo único do art.22 do CDC. que: "Uma vez que a Administração não esteja cumprindo as quatro obrigações básicas enumeradas pelo caput do art.22 (adequação, eficiência, segurança e continuidade), o consumidor é legitimado para, em juízo, exigir que sejam as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las. Mas não é o bastante para satisfazer o consumidor, uma vez que a Administração é coagida a cumprir os seus deveres apenas a partir de decisão, ou seja, para o futuro, por isso mesmo, impõe o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelos consumidores".(4)

Diante dos conflitos de consumo, que surgem a cada dia entre o fornecedor e o consumidor, verifica-se o desequilíbrio entre as partes, em face de uma prática comercial abusiva ditada pela parte mais forte, demonstrando a manifesta vantagem excessiva. Surge assim a necessidade do intervencionismo estatal, permitindo inclusive a revisão das cláusulas contratuais pactuadas em razão do abuso, que implica lesão ao direito do consumidor.

Demonstrado está que as práticas abusivas ocasionam um desequilíbrio na relação de consumo, podendo ocasionar uma lesão à parte mais desfavorecida.

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Assim, o poderio econômico da parte mais forte faz evoluir o desequilíbrio da força contratual, que dita condições, faz prevalecer interesses egoístas, contrata sem combate, mascarando os privilégios e assegurando a eficiência e a rentabilidade.(5)

É cediço que, envolvendo relação de consumo, os princípios contratuais clássicos são mitigados e temperados pelo princípio da onerosidade excessiva, também conhecido pela máxima romana cláusula rebus sic stantibus-imprevisibilidade, (Teoria da imprevisão) e pela Teoria da lesão.(6)

Se existe uma desvantagem exagerada, fica caracterizado para o consumidor uma lesão (laesio), sendo este tema abordado pela doutrina como Teoria da Lesão.

A lesão é vício do negócio jurídico em grau de igualdade do dolo, erro ou vício do negócio jurídico, sendo certo que o fato de a parte contratar não implica que a mesma não possa discutir o contrato, buscando a revisão de cláusulas com onerosidade excessiva.(7)

Por isso, no caso da manifesta vantagem excessiva a doutrina denomina este fato de dolo de aproveitamento,(8) que é vedado pelo Código de Defesa do Consumidor, não prevalecendo em relação à parte mais vulnerável.

A Lei do Consumidor consagrou a Teoria da Lesão, bastando para a sua configuração o fato superveniente arrimado ao fato da onerosidade excessiva, concretizando assim a lesão ao direito do consumidor.

No magistério de Caio Mário, o instituto da lesão continua presente na proteção a parte contratual mais fraca, "e tudo indica que veio para ficar"(9)

Com acerto, o fato do fornecedor efetuar o desligamento de energia elétrica do consumidor inadimplente, ocasiona uma lesão ao direito do consumidor, dificultando o direito de acesso a justiça, para discussão do débito indevido, consolidando em vantagem manifesta excessiva para o fornecedor (autotutela).


4.Da abusividade das práticas comerciais nas relações de consumo

O CDC. consagra a ação governamental de coibição e repressão eficiente de todos os abusos praticados no mercado do consumo(art.4, VI).

Cada dia torna-se mais comum reclamações contra o fornecedor pelos serviços prestados.

Não são raras as vezes que o consumidor/usuário é surpreendido com um débito indevido em sua conta, e a solução outorgada pelo fornecedor consiste na orientação do consumidor pagar a conta indevida para após discutir, sob pena de corte do fornecimento.

Prescreve o art. 39, inciso IV do CDC. que prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços, constitui prática abusiva repudiado pela norma do consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor traz preceito expresso a respeito do Princípio da Boa-fé (art. 4, inciso III da norma do consumidor), concretizando assim o Princípio da Boa-fé Objetiva.

No dizer da doutrinadora Cláudia Lima Marques, "Boa-fé significa aqui um nível mínimo e objetivo de cuidados, de respeito e de tratamento leal com a pessoa do parceiro contratual e seus dependentes. Este patamar de lealdade, cooperação informação e cuidados com o patrimônio e a pessoa do consumidor é imposto por norma legal, tendo em vista a aversão do direito ao abuso e aos atos abusivos praticados pelo contratante mais forte, o fornecedor, com base na liberdade assegurada pelo princípio da autonomia privada"(10)

O Código do Consumidor, presumindo o consumidor como parte contratual mais fraca, impõe aos fornecedores de serviços no mercado um mínimo de atuação conforme `a boa-fé. O princípio da Boa-fé nas relações de consumo, atua limitando o princípio a autonomia da vontade e combatendo os abusos praticados no mercado.

Há práticas comerciais que ocasionam desequilíbrio na relação contratual atentando contra o patamar mínimo de boa-fé nas relações contratuais de consumo, devendo ser declaradas abusivas tais práticas.

O Código do Consumidor prevê no art. 6, IV, como direito básico do consumidor, a proteção contra cláusulas abusivas. Também prevê, como direito básico do consumidor, no mesmo dispositivo legal, a proteção contra práticas abusivas impostas no fornecimento de produtos e serviços.(11)

Há que se observar que o Código de Defesa do Consumidor enumera no art. 39 uma lista de práticas abusivas, sendo certo que a lista não é taxativa, admitindo outras práticas comerciais como sendo abusivas, desde que figure o significativo desequilíbrio entre os direitos consumidor, a manifesta vantagem e a ofensa ao princípio da boa-fé objetiva.

Infere-se que sem boa-fé, princípio que norteia o sistema, a prática é abusiva.


5. O corte de energia e o constrangimento do consumidor

Conforme leciona Hélio Gama, a "Constituição Federal traz dispositivo de proteção da honra da pessoa, enquanto o Código Penal comina crime ao ato de exacerbação no exercício arbitrário das próprias razões." Assevera Hélio Gama, que "era comum submeter-se os devedores à execração pública ou constrange-lo até pagarem os seus débitos"; afiançando que certos credores se aproveitam dos mecanismos de cobrança, "para aviltar as dignidades dos seus devedores".(12)

O Código de Defesa do Consumidor contudo, veda a prática do constrangimento na cobrança de dívidas, determinando que o consumidor não pode ser submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça e nem exposto a ridículo, pela cobrança de dívida.

Consagra o art. 42 do CDC.:

"Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça."

Com se sabe, a lei do Consumidor repudiou a cobrança vexatória a tal ponto de tipificar como criminosa a conduta que expõe o consumidor a constrangimento em razão de dívida.

Estabelece o art. 71 do CDC.:

"Art. 71 - Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer:

Pena - Detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa."

Vale transcrever as lições do Prof. Hélio `a respeito do conceito de constrangimento, sustentando in verbis:

Ao nosso ver, o constrangimento de que fala o CDC é aquela imposição de situações que venham a atormentar o devedor, fazendo com que as agruras da cobrança que sofra se transformem em condenação adicional ou acessória.(13)

Seria o caso de indagarmos: Será que a cobrança do fornecedor de energia elétrica que ameaça de interromper o serviço público essencial do usuário/consumidor inadimplente, não configura para o consumidor um constrangimento ? Será que esta cobrança não dificulta o acesso a Justiça ?

O fornecimento de energia é serviço essencial. A sua interrupção acarreta o direito de o consumidor postular em juízo, buscando que se condene a Administração a fornecê-la. Importa assinalar que tal medida judicial tem em mira a defesa de um direito básico do consumidor, a ser observado, quando do fornecimento de produtos e serviços (relação de consumo), a teor do art.6º, VI, X e art. 22 do Código de Defesa do Consumidor:


6. A antinomia entre a norma do consumidor e outra norma jurídica.

Cumpre registrar a priori que a relação de consumo é prevista no Código do Consumidor como norma jurídica especial, que trata dos mecanismos de equilíbrio no mercado de consumo.

A bem da verdade, o Código do Consumidor não é uma simples norma jurídica e sim um sistema jurídico, contendo várias normas de direito material civil e penal, além do direito instrumental.

No magistério de Maria Helena Diniz, "sistema jurídico é o resultado de uma atividade instauradora que congrega os elementos do direito", estabelecendo as relações entre eles, projetando-se numa dimensão significativa. "O sistema jurídico não é, portanto, uma construção arbitrária"(14)

Nesse sentido surge a ponderação: Como entender a norma prevista no art. 22 do CDC que estabelece que os serviços públicos essenciais deverão ser prestados de forma contínua e a norma posterior que autoriza o corte do fornecimento do serviço essencial por falta de pagamento?

Estabelece o art. 22 do CDC:

"Art. 22 - Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos."

A lei nº 8987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos estabelece no art. 6, § 3º:

"Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade".

A Portaria nº 466 de 12 de novembro de 1997 do DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, atual Agência Nacional de Energia Elétrica), estabelece diversas situações em que o concessionário poderá suspender o fornecimento de energia elétrica, com destaque para o inciso I - art.76- " por atraso no pagamento da conta após o decurso de 15(quinze) dias de seu vencimento mediante prévia comunicação do consumidor".

Da análise dos textos legais seria o caso de interpretarmos que a lei 8.987/95 derrogou a lei 8.078/90(Código do Consumidor) no sentido que o serviço essencial pode ser interrompido ? Seria o caso de aplicarmos o critério cronológico de resolução de conflitos de normas: lex posteriori revoga legis a priori ?

Salvo melhor juízo, o critério para resolução deste possível conflito não traduz neste critério cronológico. É certo que ambas as normas jurídicas pertencem a mesma hierarquia e, que a lei da concessão do serviço público é posterior a lei do consumidor. Também é certo que a lei das concessões foi criada atendendo o dispositivo normativo constitucional previsto no art. 175 que prescreve:

"Art. 175 - Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único - A lei disporá sobre:

I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II - os direitos dos usuários;

III - política tarifária;

IV - a obrigação de manter serviço adequado."

Não vislumbramos no texto constitucional autorização as empresas concessionárias e permissionárias para efetuar o desligamento do serviço essencial. Ao contrário, a Carta Magna prescreve que a lei deverá dispor sobre os direitos dos usuários e a obrigação de manter os serviços adequados, fato este não verificado na atualidade.

Destarte, em caso de antinomia entre o critério de especialidade(Código do Consumidor) e o cronológico(lei das concessão do serviço público) não aplica-se o critério lex posteriori revoga legis a priori, e sim o critério lex posterior generalis non derrogat priori speciali".

Há que se atentar que a norma do consumidor como norma especial, contém o sistema jurídico do equilíbrio da relação de consumo, não podendo ser revogada por norma posterior que regula a concessão e permissão do serviço público, e não o direito do usuário/consumidor.


7. O direito fundamental do consumidor e o princípio da proibição de retrocesso

É cediço que o Código do Consumidor surgiu atendendo a um comando constitucional, estabelecendo um sistema de defesa do consumidor. Conforme já registrado anteriormente, se há relação de consumo, os direitos dos usuários/consumidores são regulados e tutelados pelo Código do Consumidor.

O art. 1 do CDC. é bem claro ao dispor que o presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos artigos 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal, e artigo 48 de suas Disposições Transitórias, atendendo assim a política nacional de relação de consumo, que tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de consumo.(art.4 caput).

Com conhecimento jurídico sólido sobre o assunto, o jurista Marcos Maselli Gouvêa afirma que "a defesa do consumidor é uma garantia fundamental prevista no art. 5º, XXXII, e um princípio da ordem econômica, previsto no art. 170, V. "(15)

A Constituição Federal estabelece como princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana como um fundamento básico (art. 1, III da C.F.) No art. 170, V da C.F. estabelece:

"Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

V - defesa do consumidor;

No mesmo sentido, o direito do consumidor está elencado entre os direitos fundamentais da Constituição.

José Geraldo Brito Filomeno esclarece à respeito do art. 1 do CDC, que sua promulgação se deve a "mandamento constitucional expresso. Assim a começar pelo inc. XXXII do art. 5º da mesma Constituição, impõe-se ao Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor."(16)

O 40º Congresso do Consumidor, realizado em Gramado concluiu que o direito de proteção ao consumidor é cláusula pétrea da Constituição Federal (art. 5, XXXII CF/88).(17)

Conforme demonstrado, o Código do Consumidor erigiu do comando Constitucional, estabelecendo expressamente no art. 1 do CDC. a despeito da norma Constitucional.

Nesse sentido, é correto a premissa, que qualquer norma infra constitucional que ofender os direitos consagrados pelo Código do Consumidor estará ferindo a Constituição e, mutatis mutandis deverá ser declarada como inconstitucional.

Nesta direção estabelece Arruda Alvim:

Garantia constitucional desta magnitude, possui, no mínimo, como efeito imediato e emergente, irradiado da sua condição de princípio geral da atividade econômica do país, conforme erigido em nossa Carta Magna, o condão de inquinar de inconstitucionalidade qualquer norma que possa consistir em óbice à defesa desta figura fundamental das relações de consumo, que é o consumidor.(18)

Sem embargo destas considerações, faz necessário comentar o princípio da proibição do retrocesso em face das garantias fundamentais.

Com efeito o direito do consumidor possui o status de direito constitucional e, com tal, não pode o legislador ordinário fazer regredir o "grau de garantia fundamental" conforme leciona Marcos Gouvêa.(19)

A lei da concessão do serviço público(lei nº 8.987/95) ao afirmar que não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção "por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade"(art.6, §3º, II), na realidade está praticando o autêntico retrocesso ao direito do consumidor, haja vista que o art. 22 do CDC afirma que os fornecedores de serviço essencial são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e "contínuos".

Arrimado a este fato acrescente-se que o direito do consumidor possui garantia fundamental na Constituição e que, a interrupção do fornecimento além de causar uma lesão, afeta diretamente a sua dignidade, sem embargo da dificuldade de acesso a Justiça que o dispositivo apresenta, consolidando assim na autotutela do direito do fornecedor.

Admitir a possibilidade do corte de energia elétrica implica em flagrante retrocesso ao direito do consumidor, consagrado a nível constitucional. Por isso o princípio de retrocesso veda que lei posterior possa desconstituir qualquer garantia constitucional. Ainda que lex posteriori estabeleça nesse sentido, a norma deverá ser considerada inconstitucional.

Por tais razões é manifesto a inconstitucionalidade do dispositivo legal previsto no art.6, §3º,II da lei 8.987/95 que autoriza a interrupção de serviço essencial, em razão do princípio da proibição de retrocesso.

Sobre o autor
Plínio Lacerda Martins

promotor de Justiça em Juiz de Fora (MG), professor de Direito do Consumidor da FGV e UGF, mestre em direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Plínio Lacerda. Corte de energia elétrica por falta de pagamento.: Prática abusiva. Código do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/711. Acesso em: 18 nov. 2024.

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