O COAF E UM CASO CONCRETO
Rogério Tadeu Romano
I – O FATO
Colho texto do jornal O Globo, em sua edição no dia 5 de janeiro do corrente ano:
“Em sua primeira entrevista como presidente da República, exibida pelo SBT, Jair Bolsonaro afirmou que o ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz teve seu sigilo bancário quebrado sem autorização judicial. O projeto “Fato ou Fake” checou a afirmação, que não é verdadeira. Queiroz, que até outubro trabalhava no gabinete do deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), foi citado em um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ) por ter movimentado R$ 1,2 milhão durante um ano, valor considerado atípico pelas autoridades financeiras. —Falando aqui claro. Quebraram o sigilo bancário dele sem autorização judicial, cometeram um erro gravíssimo —afirmou o presidente. Não houve quebra de sigilo bancário sem autorização judicial do ex-assessor Fabrício Queiroz. O banco no qual Queiroz tinha uma conta comunicou transações suspeitas realizadas entre os anos de 2016 e 2017 ao Coaf, de acordo com o Relatório de Inteligência Financeira do órgão. O relatório sigiloso foi enviado ao Ministério Público do Rio e anexado ao inquérito da Operação Furna da Onça, um desdobramento da Lava-Jato no Rio. O documento do Coaf também aponta movimentações financeiras suspeitas de outros 21 funcionários da Alerj.”
Autos do procedimento de investigação criminal aos quais o Estado de São Paulo, consoante edição de 19 de janeiro do corrente ano, teve acesso mostram que a investigação sobre a movimentação financeira de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), foi iniciada há seis meses e tem como foco de apuração a suspeita de prática de lavagem de dinheiro ou “ocultação de bens, direitos e valores” no gabinete do então deputado estadual – hoje senador eleito –
Os promotores investigavam as movimentações financeiras atípicas, descritas em um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), do policial militar da reserva Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar de Flávio e amigo de Jair Bolsonaro desde 1984. Entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, a conta bancária do funcionário - que atuava como motorista e segurança de Flávio na Alerj - movimentou R$ 1,2 milhão.
Queiroz, como se sabe, foi identificado em relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) como responsável por movimentações financeiras no valor de R$ 1,2 milhão —incompatível com seu patrimônio e ocupação profissional no ano analisado.
Foram 176 saques em espécie de sua conta (cinco deles no mesmo dia) num total de mais de R$ 300 mil. Houve repasses de oito funcionários ou ex-funcionários ligados ao gabinete do então deputado estadual. A mulher e duas filhas do ex-assessor são citadas no relatório, que registra, ainda, depósito de R$ 24 mil em favor da atual primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
Uma das filhas, Nathalia, trabalhou para Flávio antes de ser contratada pelo gabinete de Jair Bolsonaro, na época deputado federal pelo PSC. Como revelou o jornal a Folha ela atuava como personal trainer no mesmo período.
Segundo o site do jornal O Globo, em reclamação(writ constitucional onde se procura, dentre outras causas, anular decisão que afronte competência de tribunal superior) feita ao Supremo Tribunal Federal(STF), o deputado estadual e senador eleito Flavio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, pediu a anulação das provas obtidas até agora pelo Ministério Público do Rio de Janeiro nas investigações sobre movimentações financeiras suspeitas de Fabrício Queiroz, seu ex-assessor. O ministro Luiz Fux deixou essa questão para ser decidida pelo relator do caso, ministro Marco Aurélio, a partir de fevereiro, quando termina o recesso na Corte.
O ministro Fux afirmou que o Ministério Público do Rio de Janeiro “teria solicitado informações ao Coaf acerca de dados bancários de natureza sigilosa” de Flávio, “abrangendo período posterior à confirmação de sua eleição para o cargo de senador da República, sem submissão a controle jurisdicional”.
O vice-presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, atendeu a um pedido da defesa do ainda Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e determinou a suspensão da investigação sobre movimentações financeiras atípicas do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz. A decisão de Fux paralisa a apuração e vale até o ministro Marco Aurélio Mello, relator do processo no Supremo, analisar o caso depois que o tribunal retomar as suas atividades, em 1.º de fevereiro.
Ao STF, Flávio argumentou que possui foro privilegiado, uma vez que foi eleito senador nas últimas eleições.
Recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizam o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) a repassar informações bancárias a autoridades com poderes de investigação, mesmo sem uma decisão judicial prévia. Além disso, a lei que criou o Coaf determina que o órgão, hoje ligado ao Ministério da Justiça, encaminhe dados de movimentações financeiras suspeitas a autoridades, também sem a quebra judicial do sigilo. Portanto, em tese, não é ilegal o Ministério Público do Rio de Janeiro ter acesso aos dados financeiros do ex-deputado estadual Flávio Bolsonaro, que será empossado senador em fevereiro.
Flávio argumentou também que "depois de confirmada sua eleição para o cargo de senador, o Ministério Público requereu ao Coaf informações sobre dados sigilosos de sua titularidade” e que as informações do procedimento investigatório foram obtidas de forma ilegal, sem consultar a Justiça.
A primeira turma do STF, no entanto, tomou ao menos duas decisões de validar que o Ministério Público obtenha informações do Coaf sem autorização judicial.
Não é a primeira vez que que se requer anulação de provas e pelo princípio da causalidade de toda a investigação que se baseia em provas coletadas pelo COAF.
Mas, alerte-se que os fatos são anteriores, por óbvio, a um exercício do senador eleito no seu mandato. Daí será provável que o Supremo Tribunal Federal se declare incompetente para instruir e julgar o caso.
O caso envolve o que chamam de “rachadinha”, algo espúrio, que se amolda ao crime de peculato, previsto no artigo 312 do CP. Os vencimentos dos servidores envolvidos, à disposição de um parlamentar, são altíssimos, e são objeto de remanejamento pelos políticos que os nomeiam.
O feito poderá traçar responsabilidades pelo crime de peculato, lavagem de dinheiro e ainda organização criminosa.
II – LEI DA LAVAGEM DE DINHEIRO
Reforça a nova Lei do crime de Lavagem de Dinheiro, Lei 12.683/12, a importância do Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas na lei, sem prejuízo da competência de instituições como o Banco Central (autoridade bancária) e a Receita Federal do Brasil, em assuntos tributários, que conservará os dados fiscais dos contribuintes pelo prazo mínimo de 5 (cinco) anos, contado a partir do início do exercício seguinte ao da declaração da renda respectiva ou ao do pagamento do tributo, levando em conta o conceito de decadência tributária.
Mais razoável o texto da lei, pois o projeto, no artigo 17 – E, determinava que a Receita Federal conservasse os dados fiscais de todos os contribuintes brasileiros pelo prazo mínimo de 20 (vinte) anos, bem além dos prazos delineados no Código Tributário Nacional, lei materialmente complementar, contados a partir do início do exercício seguinte ao da apresentação da declaração de renda "ou do pagamento do tributo".
O artigo 16 da Lei determina a composição do órgão por servidores públicos de reputação ilibada e reconhecida competência, designados pelo Ministro da Fazenda, abrangendo agentes públicos do Banco Central do Brasil, da Comissão de Valores Mobiliários, da Superintendência de Seguros Privados, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, da Secretaria da Receita Federal, de órgão de inteligência do Poder Executivo do Departamento de Polícia Federal, do Ministério das Relações Exteriores e da Controladoria-Geral da União, atendendo à indicação dos respectivos Ministros de Estado.
Caberá, ainda, ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) coordenar e propor mecanismos de cooperação e de troca de informações que viabilizem ações rápidas e eficientes no combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores.
Para isso o COAF poderá requerer aos órgãos da Administração Pública as informações cadastrais bancárias e financeiras de pessoas envolvidas em atividades suspeitas e, ainda, comunicar às autoridades competentes tais fatos, visando a instauração de procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos em lei. Não se trata de quebra de sigilo bancário, mas de formação de banco de dados de pessoas envolvidas em operações suspeitas, matéria que exige aplicação de discricionariedade administrativa, onde, na hipótese de oportunidade e conveniência, a Administração, sem fugir dos limites legais e na devida proporcionalidade, agirá a bem do interesse da sociedade. Na palavra da Ministra Ellen Gracie, como consta de voto no RE 389808, julgado em 24 de novembro de 2010, necessário fazer distinção entre quebra de sigilo e transferência de sigilo, que passa dos bancos ao Conselho. O dados, até então protegidos pelo sigilo bancário, prosseguem ainda protegidos pelo sigilo a ser mantido pelo COAF.
O Presidente do Conselho será nomeado pelo Presidente da República, por indicação do Ministro de Estado da Fazenda.
Das decisões colegiadas proferidas pelo COAF relativas à aplicação de penas administrativas caberá recurso ao Ministro de Estado da Fazenda (artigo 16, § 2º). De suas decisões poderá caber mandado de segurança a ser ajuizado perante o Superior Tribunal de Justiça (artigo 105, I, b, da Constituição Federal), sempre diante de direito líquido e certo e ilegalidade que vier a ser cometida.
Necessário relembrar a chamada operação “boi barrica”, de cunho emblemático, onde se procurou anular provas obtidas pelo COAF.
III – OPERAÇÃO BOI BARRICA
Será primordial nos trabalhos de investigação acentuar o papel do COAF, nesse caso.
Na história do COAF é emblemática a operação “Boi Barrica”.
Era o caso conhecido como Boi Barrica/Faktor(2008) em que o Ministério Público Federal denunciou dezesseis pessoas. Entre os indícios de crime apontados pelo Ministério Público estava um relatório do COAF no qual se mostrava que uma das pessoas sujeitas à investigação havia sacado dois milhões de reais em dinheiro vivo.
Data vênia a decisão não levou em conta que o COAF é um órgão de inteligência que tem, entre outros fins, municiar investigações de crimes financeiros.
Se há indícios da prática de um crime financeiro e havia necessidade de investiga-lo assim como a eventual lavagem de dinheiro, a análise pelo COAF, dentro dos limites legais, era o caminho a encontrar para apuração do crime.
No caso do Brasil, a Lei 9.613/98 criou o COAF(artigos 14 a 17), como unidade de inteligência financeira do sistema nacional de prevenção, estabeleceu regras de adequação para certos sujeitos obrigados, integrantes de setores econômicos relevantes(artigos 9 a 11); instituiu responsabilidade administrativa dos sujeitos obrigados(artigo 12) e, finalmente, criou o cadastro nacional dos clientes do sistema financeiro nacional(artigo 10 – A).
Na Lei 9.613 de 1998, que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens e que criou o Coaf, há uma lista de instituições que são obrigadas legalmente a enviar informações sobre operações financeiras e transações de altos valores ou feitas em dinheiro vivo. Na lista estão bancos, joalherias, seguradoras, imobiliárias, administradoras financeiras, entre outras.
A lei brasileira seguiu o modelo sugerido pelo Grupo de Ação Financeira Internacional(GAFI), criado em 1989, sob os auspícios da OCDE e do G-8. No ano seguinte, o GAFI, Financial Action Task Force, expediu suas 40 recomendações, que servem de baliza para a prevenção e o combate ao crime de lavagem de dinheiro. O GAFI reúne as unidades de inteligência financeira dos vários países chamados cooperantes, inclusive o COAF e tem representações regionais.
O trabalho do COAF é importante, visando a :
- identificação de todos os autores e coautores do crime e a localização dos ativos reciclados, de modo a permitir a condenação dos culpados e o perdimento do proveito, produto e instrumentos do crime.
O Banco Central, como autoridade monetária, à luz da Lei 4595/64, recebe as notícias das instituições financeiras sujeitas à sua fiscalização e as repassa ao COAF. O mesmo padrão é seguido por outras autarquias como a SUSEP e a CVM (Comissão de Valores Mobiliários).
Cite-se, por sua importância, na matéria, a Carta Circular BACEN 2826/01, norma secundária, que se circunscreve ao universo das entidades financeiras, onde se lista uma série de atividades suspeitas que devem ser acompanhadas pelos Bancos e comunicadas ao Banco Central:
- alterações substanciais na rotina bancária;
- grande atividade por wire transfer;
- operações sem sentido econômico;
- uso de várias contas simultaneamente;
- movimentação incompatível com o negócio ou profissão;
- relações com paraísos fiscais;
- estruturação de operações com fracionamento de depósitos ou remessas;
- recusa em informar origem de recursos ou a própria entidade;
- inconsistência documental.
A investigação que culminou com a “Operação Boi Barrica” teve início em 2006 quando a COAF (Conselho de Controle das Atividades Financeiras), que é a unidade de inteligência financeira do Brasil, comunicou à Polícia Federal uma movimentação financeira “atípica” no valor de dois milhões de reais, nas contas correntes de algumas pessoas físicas e jurídicas, entre elas Fernando José Macieira Sarney e Teresa Cristina Murad Sarney.
No voto proferido no julgamento pela sexta Turma do STJ, o ministro Sebastião Reis Junior destacou que o próprio relatório do COAF considerou a movimentação “atípica”, mas não “ilícita”. E que baseado apenas nessas informações o Ministério Público Federal requereu a quebra dos sigilos bancários dos investigados. O pedido no entanto foi deferido pelo juiz nos mesmos termos do requerimento do Ministério Público Federal.
Os fundamentos, do pedido e da decisão, foram, exclusivamente, as informações do COAF e a simples referência a dispositivos legais, além da conclusão totalmente subjetiva e desacompanhada de qualquer elemento concreto de que as movimentações financeiras atípicas deveriam ser investigadas por terem ocorrido em período pré-eleitoral”, afirmou o relator.
Posteriormente, foi instaurado um novo inquérito policial e novamente, sem quaisquer outras investigações preliminares, a autoridade policial pediu e obteve a quebra de sigilo fiscal (de 2002 a 2006) e a interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas.
O relator no entanto resumiu o seu entendimento da seguinte forma:
“A regra, volto a dizer, é o sigilo; a quebra é a exceção”. E advertiu que o juiz, o Ministério Público e a polícia devem se “ater à ordem jurídica limitadora e garantidora dos interesses pessoais do indivíduo para, assim, sem ultrapassar essas garantias, colaborar para o processo de uma forma legal”, fornecendo “provas sem vícios legais e válidas para o processo criminal”.
O ministro Sebastião Reis Júnior então concluiu o seu voto: “Posto isso, concedo a ordem para declarar nulas a quebra de sigilo bancário, a de sigilo fiscal e a de dados telefônicos, porquanto autorizadas em desconformidade com os ditames legais e, por consequência, declarar igualmente nulas as provas em razão delas produzidas, cabendo, ainda, ao juiz do caso a análise de tal extensão em relação a outras, já que nesta sede, de via estreita, não se afigura possível averiguá-las; sem prejuízo, no entanto, da tramitação do inquérito policial, cuja conclusão dependerá da produção de novas provas independentes”.
O argumento central levantado pela defesa de João Odilon Soares, funcionário do grupo Mirante de Comunicação, que pertence à família Sarney, e aceito pelo STJ, foi de que o pedido de quebra de sigilo teve como base apenas um relatório do Conselho de Controle de Atividade Financeira (Coaf).
O documento, que deu início ao inquérito, revelou dois saques de R$ 1 milhão cada feitos por Fernando Sarney na véspera da eleição de 2006, quando sua irmã Roseana Sarney foi candidata ao governo do Maranhão. O Coaf classificou as transações como atípicas e encaminhou o relatório à PF.
Como revelou o jornal Estado de São Paulo, em 10 de novembro do corrente ano, o material colhido nas interceptações serviu de base para a abertura de cinco inquéritos e apontou indícios de tráfico de influência, quadrilha, desvio e lavagem de dinheiro praticados por Fernando Sarney e pessoas ligadas a ele. O filho de Sarney chegou a ser indiciado pela PF mas, com a anulação, o Ministério Público não teve tempo para oferecer denúncia.
Além dos inquéritos, uma cooperação internacional com a Suíça ficou comprometida após a anulação das provas pelo STJ. Os suíços haviam bloqueado US$ 13 milhões em uma conta em nome de Fernando Sarney.
Ao longo do caso, Fernando Sarney negou irregularidades e apontou "vazamento criminoso" da PF.
A decisão historiada, com o devido respeito, negou vigência à lei, anulando toda uma operação e estabelecendo jurisprudência contrária a melhor interpretação do sistema processual penal. Negou ainda vigência a normas internacionais na matéria.
A jurisprudência em discussão termina por exigir uma verdadeira prova diabólica, pois se a única pista veio do relatório do COAF, cuja confidencialidade é absoluta, não há outro meio de prova que possa inspirar qualquer providência, que não as aventadas na quebra proibida.