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Como são tratadas pelos tribunais as questões que envolvem o choque dos dois direitos fundamentais: a liberdade religiosa e o direito à vida?

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Do paciente menor e incapaz

Em uma eventual necessidade de transfusão sanguínea em pacientes menores, tal decisão recai na maioria das vezes sobre os pais ou responsáveis, na determinação da realização ou não do tratamento de transfusão de sangue. E tanto é, que temos decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região nesse sentido:

DIREITO À VIDA. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. [...] LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA E DIREITO À VIDA. IMPOSSIBILIDADE DE RECUSA DE TRATAMENTO MÉDICO QUANDO HÁ RISCO DE VIDA DE MENOR. VONTADE DOS PAIS SUBSTITUÍDA PELA MANIFESTAÇÃO JUDICIAL. [...] Conflito no caso concreto dois princípios fundamentais consagrados em nosso ordenamento jurídico-constitucional: de um lado o direito à vida e de outro, a liberdade de crença religiosa. A liberdade de crença abrange não apenas a liberdade de cultos, mas também a possibilidade de o indivíduo orientar-se segundo posições religiosas estabelecidas. No caso concreto, a menor autora não detém capacidade civil para expressar sua vontade. A menor não possui consciência suficiente das implicações e da gravidade da situação para decidir conforme sua vontade. Esta é substituída pela de seus pais que recusam o tratamento consistente em transfusões de sangue. Os pais podem ter sua vontade substituída em prol de interesses maiores, principalmente em se tratando do próprio direito à vida [...]. (BRASIL, 2006, grifo nosso).

Como os menores não possuem plena capacidade civil e por não possuírem condições para expressar a sua vontade devido a pouca idade, aos pais são delegadas as funções para tomarem as decisões em relação aos seus filhos. Ainda na análise da decisão, percebemos que a vontade dos pais pode ser substituída atendendo a interesses maiores, como o direito à vida.

No Brasil os jovens que possuem 16 anos de idade já podem votar, influenciando na vida política do país. E portanto pode-se concluir que os maiores de 16 anos de idade devem ser considerados como amadurecidos, podendo inclusive fazer uso da objeção de consciência na recusa de tratamento médico, mesmo com a oposição dos pais.

Deve ser levada em conta na recusa de tratamento por menores, a teoria do menor amadurecido, que é aquele que não atingiu a maioridade civil, mas é capaz de tomar decisões de forma independente, compreendendo a natureza do tratamento e as suas consequências, de forma à aceitá-lo ou não.


Da responsabilidade médico-hospitalar

O médico tem a intenção e função de salvar a vida das pessoas, e portanto com relação aos seguidores da religião Testemunha de Jeová, cabe ao médico em conjunto com o exercício regular da medicina e nas convicções religiosas do paciente, executar a profissão da melhor forma possível e atendendo aos melhores interesses do indivíduo.

Não cabe ao Poder Judiciário determinar a realização ou não de transfusão sanguínea, mas cabe sim ao médico, que possui conhecimentos para o exercício da profissão e que também está de encontro com paciente Testemunha de Jeová. Segue decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acerca do tema pertinente:

APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. [...] Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento do paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. (BRASIL, 2007, grifo nosso).

Fica claro e evidente portanto que o hospital não precisa buscar por meios judiciais amparo para a realização de tratamentos que necessitam de transfusão de sangue. É lógico que sobretudo deve ser respeitado a convicção religiosa do paciente, mas em caso de grave perigo à vida, o hospital pode aplicar tratamento diverso daquele pretendido pelo paciente.

Um caso bastante curioso foi a não realização do procedimento de transfusão de sangue por médico seguidor da religião Testemunha de Jeová a paciente também seguidor da mesma religião. O médico por convicção religiosa e por respeito também a religião seguida pelos pacientes e familiares, deixou de realizar o procedimento de transfusão sanguínea.

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Segue abaixo um breve relato do caso narrado no Habeas Corpus nº 26459 impetrado pelos pais da garota:

Foi submetida a exames clínicos, onde se constatou uma baixíssima quantidade de componentes hemáceos, o que exigia, com urgência, uma transfusão sanguínea. Este diagnóstico foi apresentado aos pais da vítima, que apesar de todos os esclarecimentos feitos por médicos do Hospital, recusavam-se a permitir a transfusão de sangue na paciente, invocando preceitos religiosos da seita Testemunha de Jeová, do qual eram adeptos. O quadro da paciente agravava-se cada vez mais e uma das médicas do Hospital estava prestes a conseguir a autorização do pai da adolescente, Hélio, para que se fizesse o procedimento. Ocorre que a genitora da vítima, Ildelir, comunicou o fato a José Augusto, médico e adepto da mesma seita, em busca de orientação como proceder. Este compareceu ao Hospital e ostentado a condição de membro da “Comissão de Ligação com Hospitais da Testemunhas de Jeová”, influenciou os genitores da vítima a não concordar com a transfusão e intimidou os médicos presentes, ameaçando processá-los judicialmente caso efetuassem-na contra a vontade dos pais da paciente. (BRASIL, 2014, grifo nosso).

O médico no exercício de sua profissão pode se abster da realização de atos médicos, se estes forem contra os ditames de sua consciência. Mas acontece que no caso em questão, o médico não se encontrava no hospital e foi comunicado pela mãe da garota sobre o estado da mesma. Sabendo do fato o mesmo também seguidor da religião Testemunha de Jeová não realizou a tranfusão e impediu que outros médicos a fizessesm.

No Código de Ética Médica está garantido no exercício da profissão pelo médico a recusa de atos médicos por motivos de consciência. Assim determina o Código, em seu capítulo II, Direito dos Médicos: “ É direito do médico: IX – recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2010).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, decidiu esperar pelo pronunciamento do médico no que concerne a sua profissão, pois em virtude religiosa deixou de realizar a transfusão na paciente, e a mesma veio a falecer 2 dias após a internação:

Homicídio. Sentença de pronúncia. Pais que, segundo consta, impedem ou retardam transfusão de sangue na filha, por motivos religiosos, provocando-lhe a morte. Médico da mesma religião que também segundo consta, os incentiva a tanto e ameça de processo os médicos que assistiam a paciente, caso realizem a intervenção sem o consentimento dos pais. Ciência da inevitável consequência do não tratamento. Circunstâncias, que, em tese, caracterizam o dolo eventual, e não deixam de ser levadas à apreciação do júri. Recursos não providos. (BRASIL, 2010, grifo nosso).

Como a vítima era menor coube aos pais decidirem qual o procedimento a ser adequado no tratamento. E como integrantes da religião Testemunhas de Jeová optaram juntamente com o médico, responsável pelo paciente, em não realizar o procedimento da transfusão, que em consequência veio a ocasionar a morte da paciente.

A 6ª Turma do STJ julgou esse caso no início do ano e portanto isentou a responsabilidade dos pais de Juliana Bonfim da Silva (13 anos), que alegaram motivos religiosos para a não realização da transfusão de sangue. Ainda mais, o STJ entendeu a responsabilidade exclusivamente dos médicos pelo trágico fim ocasionado a paciente.

O ministro Sebastião Reis Júnior apresentou o seguinte posicionamento:

a oposição dos pais à transfusão não deveria ser levada em consideração pelos médicos, que deveriam ter feito o procedimento -mesmo que contra a vontade da família. Assim, a conduta dos pais não constituiu assassinato, já que não causou a morte da menina. (NAÇÃO JURÍDICA, 2018, grifo nosso).

Com base no posicionamento do ministro fica claro que os médicos deveriam ter agido e tentado salvar a vida da adolescente, independentemente da vontade da paciente ou de seus pais. E por fim os médicos desrespeitaram o Código de Ética Médica, conforme demonstrado a seguir:

É vedado ao médico:

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2010).

Nesse julgamento é perceptível a obrigação que o médico tem com a vida, e portanto a decisão do STJ tem muito mais a ver com a primazia do direito à vida sobre os demais direitos, do que da afirmação de uma liberdade religiosa, conforme demonstrado pela rejeição e condenação da omissão por parte da equipe médica.

De outro lado, em apelação proferida também pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi indeferido pedido de indenização à paciente Testemunha de Jeová que foi acometida sem o seu consentimento a realização de transfusão sanguínea, tendo em vista que não foi comprovada a sua recusa:

Indenizatória – Reparação de danos – Testemunha de Jeová – Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação – Convicções religiosas que não podem, prevalecer perante o bem maior tutelado pela Constituição Federal que é a vida – Conduta dos médicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e ética profissional, posto que somente efetuaram as transfusões sanguíneas após esgotados todos os tratamentos alternativos Inexistência, ademais, de recusa expressa a receber transfusão de sangue quando da internação da autora – Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuados com exames médicos, entre outras, que não merece acolhido, posto não terem sido os valores despendidos pela apelante – Recurso improvido. (BRASIL, 2002).

Foi realizado o procedimento da transfusão pelos médicos, pois haviam se esgotados todos os outros meios alternativos que pudessem salvar a vida da paciente. Como não havia recusa do tratamento da transfusão de sangue no momento da internação da paciente, o direito à vida deve prevalecer sobre às convicções religiosas, tendo em vista que o direito à vida é o bem maior tutelado pela Constituição Federal de 1988. E por fim, foi negado ressarcimento das despesas porque as mesmas não foram custeadas pela paciente.

Há decisões fundamentando a importância da preservação dos dois direitos fundamentais, e, portanto é preciso balancear o conflito entre esses direitos. De um lado, temos os médicos que possuem a função de preservar a vida das pessoas, e de outro temos os Testemunhas de Jeová, que não entendem o por quê da não aceitação de sua religião sobre o direito de dispor de suas vidas.

Sobre as autoras
Camila Zago

Graduanda em Direito pela Faculdade Santa Rita de Cássia.

Bianca Vieira da Silva

Graduada na Faculdade Santa Rita de Cássia na cidade de Itumbiara - Goiás.

Sarah Corrêa Cardoso

Graduada na Faculdade Santa Rita de Cássia na cidade de Itumbiara - Goiás.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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