Resumo: Trata dos aspectos processuais da emenda constitucional 45, que realizou a Reforma do Judiciário. Aborda o contexto da reforma constitucional, apresentando diretrizes exegéticas para sua interpretação. Trata das principais conseqüências processuais da reforma, com especial destaque para: introdução do princípio da razoável duração dos processos; adoção do critério de proporcionalidade do número de juízes em relação à população e à demanda judicial; distribuição imediata dos processos; atividade ininterrupta do Judiciário; extinção dos Tribunais de Alçada; ampliação da competência da Justiça do Trabalho; competência do STJ para homologação da sentença estrangeira e para concessão de exequatur às cartas rogatórias; inovações no recurso extraordinário e a introdução da súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro. Ao final, conclui de maneira circunstanciada, realizando uma análise crítica das alterações.
Palavras-chave: Processo - EC45 - Inovações
1 INTRÓITO
Os conflitos entre as pessoas existem desde que o homem passou a viver em sociedade. Nos primórdios, os conflitos intersubjetivos eram solucionados pelas próprias pessoas envolvidas no estorvo, preponderando o chamado regime da autotutela. Este regime caracterizou-se pela imposição da decisão de uma das partes à outra.
Contudo, em determinado momento histórico, o Estado avocou para si a atividade de solução dos conflitos. Estabeleceu-se, então, o monopólio da resolução dos conflitos no ente soberano. Desde então, o Estado passou a solucionar as lides [01], com vistas à obtenção da almejada paz social.
Desenvolveu-se, para esse desiderato, uma função peculiar, denominada de jurisdicional. A jurisdição é a atividade desenvolvida pelo Estado, que, substituindo as partes, tem por finalidade apresentar uma solução para o conflito. A jurisdição é prestada, precipuamente, pelo Poder Judiciário [02].
O Poder Judiciário sofreu profundas transformações ao longo da sua existência. Um grande passo foi dado, por exemplo, com a Constituição Federal de 1988, que democratizou sobremaneira o nosso país, sendo tal diploma normativo, inclusive, rotulado de constituição cidadã.
Mas a atividade desenvolvida por parte do Judiciário não tem atendido aos anseios da sociedade. Após algumas reformas realizadas no bojo da legislação processual, entendeu-se necessário reformar também o próprio texto constitucional, em particular os dispositivos relacionados ao Judiciário. Foi promulgada, então, a emenda constitucional 45, no ano de 2004, para reformar o Poder Judiciário. Pretende-se, neste ensejo, analisar os aspectos processuais dessa reforma.
2 CONTEXTO DAS REFORMAS PROCESSUAIS: ONDAS RENOVATÓRIAS DO ACESSO À JUSTIÇA
Antes de analisar os aspectos processuais da emenda constitucional 45, é necessário primeiramente compreender o contexto em que essa reforma foi realizada. Na verdade, essa compreensão permitirá aos operadores do direito, em especial, aos advogados, aos juízes e aos promotores, adotarem premissas hermenêuticas e metodológicas para interpretação do texto constitucional.
Na busca pelo acesso à justiça, a doutrina, influenciada especialmente por Mauro Cappelletti e Bryant Garth [03], localizou, basicamente, três grandes fases de elaboração científica. Essas fases ficaram conhecidas como as "três ondas do acesso à justiça".
2.1 PRIMEIRA ONDA: OS ÓBICES ECONÔMICOS
Num primeiro momento, a dogmática, mormente a processual, preocupou-se com os óbices econômicos de acesso ao Judiciário, que praticamente impediam os carentes de recursos de buscar essa atividade para obter a solução de seus conflitos. De fato, pretendia-se que todas as pessoas, ainda que sem condições de custear as despesas do um processo, pudessem ter acesso ao Judiciário.
Deve-se afirmar que, nesse aspecto, o direito brasileiro já avançou sobremaneira. A lei 1060/50, por exemplo, garante aos economicamente necessitados a possibilidade de litigar, independentemente do pagamento de despesas processuais [04].
2.2 SEGUNDA ONDA: OS ÓBICES EM RELAÇÃO À TUTELA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS
Construídos os mecanismos para superar eventuais óbices de natureza econômica para a busca do Judiciário, verificou-se, num segundo momento, que nem todos os interesses e posições jurídicas de vantagens eram passíveis de proteção por meio da atividade jurisdicional.
Na verdade, direitos que extrapolavam a esfera individual não contemplavam mecanismos para a sua respectiva tutela jurisdicional. De fato, os direitos transindividuais (coletivos e difusos - cuja conceituação encontra-se prevista no parágrafo único do art. 81 da Lei 8078/90 [05]), não contavam com instrumentos na legislação que permitissem a sua plena defesa.
Contudo, em relação a esses entraves, o direito brasileiro também avançou significativamente. Câmara [06], por exemplo, chega a sustentar que, nesse campo, o Brasil exerce notória posição de liderança e destaque.
Na verdade, alguns instrumentos normativos, como a lei 4717/65 (lei de ação popular), a lei 7347/85 (lei de ação civil pública), assim como a lei 8078/90 (código de defesa do consumidor), asseguram a tutela dos direitos ou interesses transindividuais.
2.3 TERCEIRA ONDA: A SATISFAÇÃO DO USUÁRIO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL
Vencidos os óbices econômicos e os referentes à tutela dos direitos transindividuais, a grande questão que se coloca, atualmente, refere-se à satisfação daquele que se utiliza da prestação jurisdicional [07]. Nesse terceiro momento, pelo qual estamos perpassando, cumpre avaliar qual o grau de satisfação do usuário da atividade jurisdicional.
E a insatisfação dos jurisdicionados, quanto ao processo judicial é ostensiva. A morosidade dos processos, que chegam ao lapso temporal de 5, 10, 15 anos, implica verdadeira denegação da justiça. É nesse contexto, portanto, que devem ser buscadas as premissas hermenêuticas da emenda da reforma do Judiciário.
3 A CRISE DO JUDICIÁRIO, AS REFORMAS PROCESSUAIS E A EMENDA CONSTITUCIONAL 45
O Judiciário, como é público e notório, passa por um momento de crise quanto à sua verdadeira legitimidade. A jurisdição moderna está em crise. A lentidão dos processos, a morosidade da Justiça e a ineficácia de muitos provimentos judiciais estão conduzindo os jurisdicionados a uma verdadeira descrença no Poder Judiciário [08].
A partir disso, várias alterações foram realizadas na legislação processual, podendo-se citar as realizadas pelas leis 9494/97 (que generalizou a antecipação de tutela), 10352/01 (reforma do sistema recursal), 10358/01 (alterou preceptivos do processo do conhecimento) e 10444/02 (que alterou substancialmente o processo de execução).
Percebeu-se, contudo, dada a disparidade existente entre a estrutura do Judiciário e os avanços sociais, a necessidade de ser realizada uma mudança mais abrupta, com a reforma não apenas da legislação infraconstitucional, mas do próprio texto constitucional. Tal tarefa foi realizada pelo constituinte derivado que elaborou a emenda constitucional 45 [09], a qual foi promulgada em 08.12.2004.
4 PRINCIPAIS ASPECTOS PROCESSUAIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL 45
Inúmeras alterações foram realizadas na estrutura do Judiciário, assim como nos postulados delimitadores da sua forma de atuar. Pretende-se, aqui, conceder especial enfoque para os aspectos processuais da emenda constitucional 45.
4.1 PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DOS PROCESSOS
Uma das mais relevantes alterações da emenda 45 refere-se à inserção no art. 5º do texto constitucional de um inciso, o LXXVIII, contemplando o princípio da razoável duração dos processos [10]. O citado preceptivo reza o seguinte: "A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".
A necessidade de o processo ser célere já vinha sendo destacada pela doutrina [11]. De fato, não se pode mesmo admitir que o Poder Judiciário demore 10 ou 15 anos para prestar a tutela jurisdicional. É inconcebível que o jurisdicionado não consiga obter para o seu conflito uma decisão rápida e célere por parte do Estado. Não basta garantir-se ao jurisdicionado o acesso ao Judiciário. Mais do que isso é necessário garantir a possibilidade de obter uma decisão justa, célere e eficaz.
Surge, desde já, um questionamento prévio: o que vem a ser a razoável duração de um processo? Imagine-se, por exemplo, quanto tempo seria necessário, ou seja, razoável, para obtenção de uma sentença de divórcio? E para uma obtenção de uma tutela de urgência? [12] Não tenho dúvidas em afirmar que o conceito de "razoável duração de um processo" deverá ser regulamentado por parte do legislador infraconstitucional.
Destaca Souza [13] que, por ser o art. 5º, inc. LXXVIII, da CF/88, uma cláusula aberta pouco efeito prático produziria. De qualquer modo, considerando que os direitos e garantias fundamentais, nos termos do art. 5º, §. 2, da CF/88, tem aplicação imediata, é necessário apresentar uma exegese que, independentemente de lei infraconstitucional, conceda efeitos práticos ao preceptivo em exame.
Parece-me, então, que a primeira conseqüência do dispositivo, independentemente de publicação de lei regulamentando-o, será a possibilidade de o jurisdicionado obter do Estado uma indenização pela demora na tramitação do seu processo. Um processo, por exemplo, que tramita por 15 anos, gera um dano de monta - tanto de ordem material, como extrapatrimonial - para o jurisdicionado, que deverá ser reparado pelo Estado.
Um segundo efeito que deve ser concedido ao preceito refere-se ao fato de que o mesmo reafirma o caráter instrumental do processo e a necessidade de uma postura menos formalista por parte dos integrantes do Judiciário. Nesse sentido:
O princípio da celeridade processual, ora expresso na Constituição Federal, revela a postura teleológica do processo, que deve ser assumido como um instrumento ou meio com objetivos claros que, ao serem cumpridos, o legitimam diante da sociedade. Para isso devem evitar-se as formalidades supérfulas, que impedem o cumprimento de seus escopos precípuos [14].
É necessário, portanto, que o magistrado conduza o processo com vistas ao alcance de seus objetivos. Na verdade, o processo não deixa de ser apenas um mero instrumento para realização do direito material. Muito a propósito, nesse particular, são as palavras do prof. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira no sentido de que "a mais grave miopia de que pode padecer o processualista é ver o processo como medida de todas as coisas" [15].
4.2 PROPORCIONALIDADE DE JUÍZES EM RELAÇÃO À POPULAÇÃO E À DEMANDA JUDICIAL
Outra alteração propiciada pela EC 45 refere-se ao critério de proporcionalidade do número de juízes em relação à população e à demanda judicial, previsto, agora, no art. 93, XIII, do texto constitucional, in verbis: "o número de juízes na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população".
Trata-se de iniciativa louvável que tem por escopo manter um número proporcional de juízes para cada Estado brasileiro. Na verdade, esse preceito tem a finalidade, em última análise, de imprimir maior celeridade à atividade desenvolvida pelo Judiciário
O constituinte derivado, no particular, foi bastante feliz por considerar como critério para a proporcionalidade não apenas a população do local, mas também a efetiva demanda judicial. De fato, é possível que a população de um local seja numerosa, mas o número de ações ajuizadas seja pequeno. Da mesma forma, é possível que em um local com pequena população, o número de demandas seja alto.
De qualquer modo, a eficácia do dispositivo dependerá de uma boa administração dos dados por parte dos órgãos competentes, em especial por parte do Conselho Nacional de Justiça, o qual, nos termos do art. 103-B, §. 4, inc. VII, da CF/88, tem, dentre outras competências, a de apresentar relatório anual sobre a situação do Judiciário no país, propondo as providências que entender cabíveis.
4.3 DISTRIBUIÇÃO IMEDIATA DOS PROCESSOS
Mais uma inovação da emenda constitucional 45 é a distribuição imediata dos processos em todos os graus de jurisdição. De fato, o art. 93, inc. VX, da CF, tem a seguinte redação: "a distribuição dos processos será imediata, em todos os graus de jurisdição".
Visa-se, com esse preceito, propiciar a imediata definição do juiz natural para apreciação da lide submetida ao Judiciário. Em alguns Estados da Federação, em especial nos seus Tribunais, era comum a prática de não distribuir imediatamente a ação ou o recurso. O pedido ficava submetido a uma espécie de "fila de espera", aguardando a definição do órgão jurisdicional que iria apreciá-lo.
No Estado de São Paulo, por exemplo, o Tribunal de Justiça demorava aproximadamente quatro anos apenas para distribuir o recurso. Com a nova previsão no texto constitucional, todos os recursos que estiverem "represados" deverão ser imediatamente distribuídos.
De qualquer modo, essa alteração não traz efeitos pragmáticos de relevo. É que o recurso, por exemplo, será imediatamente distribuído, mas demorará mais a ser julgado. Troca-se, na verdade, apenas faticamente o lugar dos recursos: antes da alteração, ficavam na sala do distribuidor; após a alteração da EC 45, os recursos serão imediatamente distribuídos e ficarão na Secretaria do órgão competente ou no Gabinete do magistrado competente. A medida, por si só, é ineficaz. Melhor seria dotar o Poder Judiciário de estrutura apta a realizar julgamentos com celeridade. Nesse sentido:
Assim, também medida extremamente digna de elogios não é suficiente e barra naquela mesma situação anterior, de que é preciso dotar o Poder Judiciário de estrutura moderna, material, servidores e juízes em quantidade apropriada para dar vazão à demanda. Caso contrário, continuará sendo letra morta, que dá uma falsa idéia de agilidade, quando, na verdade, apenas transfere o problema (processo) de um lugar (Sala de Distribuições) para outro (Gabinete do Magistrado), sem, contudo, haver uma decisão rápida [16].
4.4 ATIVIDADE JURISDICIONAL ININTERRUPTA NOS JUÍZOS E TRIBUNAIS DE SEGUNDO GRAU: O FIM DAS FÉRIAS COLETIVAS
A emenda constitucional 45 inseriu no art. 93, da CF/88, o inciso de XII [17], adotando expressa previsão de que a atividade jurisdicional será ininterrupta, vedando-se férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau. A medida, certamente, tem por escopo evitar a solução de continuidade na atividade desenvolvida pelo Judiciário, em especial por parte dos órgãos de segundo grau. A alteração foi elogiada por parte da doutrina, in verbis:
Essa previsão veio em boa hora, já que não se justifica a interrupção dos serviços forenses. Tanto os servidores como os magistrados têm direito às férias sem que isso atrapalhe o andamento dos trabalhos judiciais [18].
Destaque-se, no entanto, que a medida somente tem aplicação aos tribunais de segundo grau. No que concerne aos Tribunais Superiores, dentre eles o STF e o STJ, não se veda a interrupção da atividade no período de férias. Nesse particular, o constituinte derivado foi tímido e perdeu ótima oportunidade para adotar mais uma medida de incremento da celeridade da atividade jurisdicional.
4.5 EXTINÇÃO DOS TRIBUNAIS DE ALÇADA
Os Tribunais de Alçada foram criados há mais de 50 anos. A criação destes tribunais, como noticia a doutrina [20], relacionou-se à necessidade de estabelecimento de uma nova instância, com competência para causas mais singelas e de menor valor, de sorte a desafogar o acúmulo de serviço dos Tribunais de Apelação. A criação dos Tribunais de Alçada, inclusive, recebeu encômios por parte do Ministro Nelson Hungria [21].
Alguns Estados da Federação chegaram a criar tribunais desse naipe, como foi o caso do Estado do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, os quais mais tarde os extinguiram. Nem todos os Estados da Federação, contudo, os adotaram. Antes da Emenda Constitucional de n. 45, apenas dois Estados da Federação tinham Tribunais de Alçada: São Paulo e Paraná.
Por força do disposto no art. 4º da EC 45, os Tribunais de Alçada foram extintos, passando os seus membros a integrar os Tribunais de Justiça dos respectivos Estados. Destaque-se que, embora os Tribunais de Alçada tenham sido criados com o fito de desafogar a atividade dos Tribunais de Justiça, as vantagens da extinção desses tribunais são preponderantes.
Primeiramente, evitar-se-á as inúmeras dúvidas sobre a competência de um Tribunal e de outro, o que, de certa forma, simplifica o processo judicial e facilita o acesso à justiça. E em segundo lugar, como destaca a doutrina:
cumpre ressaltar ainda um aspecto de conveniência política na reunião dos Tribunais de Justiça e de Alçada para contenção de gastos excessivos resultantes da coexistência de tribunais autônomos para o exercício de atribuição única [22].
4.6 AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
De acordo com a emenda constitucional 45, a competência da Justiça do Trabalho foi substancialmente aumentada. Na verdade, a justiça especial que, na redação originária do texto constitucional, era competente mormente para os julgamentos dos conflitos resultantes da relação de emprego, passou a ser, com a reforma, competente para o julgamento dos conflitos resultantes da relação de trabalho. De fato, o inc. I do art. 114, do texto constitucional, dispõe que:
Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
Os limites da competência da Justiça laboral deverão ser balizados pela jurisprudência. É que o conceito de relação de trabalho é demasiado amplo. Apenas para se ter uma noção, a relação existente entre o advogado e seu o cliente é uma relação de trabalho.
Destaco, aqui, que, antes da reforma, o quadro que se tinha em relação às situações em que a Administração Pública era a empregadora consistia no seguinte: se se tratasse o autor da ação de servidor público investido em emprego público (celetista) [23], a competência para apreciação de eventual conflito seria da Justiça Laboral; por outro lado, se se tratasse de servidor público investido em cargo público (estatutário), a competência para processo e julgamento de eventual conflito seria da Justiça Comum, estadual ou federal [24]. Com a nova redação do art. 114, inc. I, da Constituição Federal, contudo, ambas as situações deverão ser apreciadas pela Justiça do Trabalho [25].
Outro aspecto digno de nota, ainda no que concerne à competência da Justiça do Trabalho, refere-se ao inciso VI acrescentado ao art. 114 da CF. O preceptivo mencionado reza o seguinte: "Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: VI - as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho".
Com a redação desse novo dispositivo fica claro que a Justiça Laboral é a competente para as ações reparadoras de danos que decorram da relação de trabalho [26]. Destaque-se que as ações previdenciárias continuam sendo da competência da Justiça Federal (art. 109,I) ou, excepcionalmente, da Estadual (art. 109, § 3º), e as acidentárias, da Justiça Estadual Comum.
4.7 COMPETÊNCIA DO STJ PARA HOMOLOGAÇÃO DAS SENTENÇAS ESTRANGEIRAS E PARA CONCESSÃO DE EXEQUATUR ÀS CARTAS ROGATÓRIAS
A competência para homologação da sentença estrangeira e para concessão de exequatur às cartas rogatórias pertencia ao Supremo Tribunal Federal. A Reforma do Judiciário, com vistas a reduzir as atribuições de somenos importância da Corte Constitucional, de sorte a liberá-la para outras de maior relevo, transferiu a competência para homologação da sentença estrangeira e para concessão de exequatur às cartas rogatórias para o Superior Tribunal de Justiça. É o que se intruje do novel art. 105, inc. I, alínea "i", da CF.
4.8 RECURSO EXTRAORDINÁRIO
O recurso extraordinário sofreu importantes alterações com a emenda 45. Basicamente, duas foram as alterações: ampliação das hipóteses de seu cabimento e necessidade de demonstração da repercussão geral.
4.8.1 Ampliação das hipóteses de cabimento
Foi inserida uma alínea no inc. III do art. 102, da CF, que aumentou as hipóteses de cabimento do recurso extremo. A nova hipótese de cabimento refere-se aqueles casos em que a decisão recorrida "julgar válida lei local contestada em face da lei federal".
A hipótese merece destaque, pois, para os menos avisados, a alteração, em última análise, estaria em contradição com os casos de competência do STF, a quem compete, nos termos do art. 102, caput, da lex fundamentalis, precipuamente a guarda da Constituição Federal. Por outras palavras: todas as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, antes da reforma, relacionavam-se com a violação do texto constitucional (art. 102, inc. III, alíneas "a", "b" e "c", CF), enquanto, após a reforma, a nova hipótese estaria relacionada à violação da lei federal (art. 102, inc. III, alínea "d", CF).
Mas, uma análise meticulosa do novo preceptivo permite esclarecer a questão. É que, quando a lei local contestada é julgada válida em face da lei federal, tem-se a possibilidade de ocorrência de um conflito de competência. Não há, de fato, hierarquia entre a lei local e a federal. Na verdade, o que é passível de ocorrência é um conflito de competência legislativa entre o legislador local e o federal. E esse tipo de conflito, sem dúvidas, em última análise, representa um conflito de constitucionalidade, já que a delimitação das competências está alinhavada na Constituição. Nesse sentido:
Muito se questionou sobre essa previsão. Observa-se que ela está correta já que, no fundo, quando se questiona a aplicação de lei, acima de tudo, tem-se conflito de constitucionalidade já que é a CF que fixa as regras sobre competência legislativa federativa [27].
De qualquer modo, o constituinte derivado não foi feliz ao deixar de contemplar expressamente como hipótese de cabimento do recurso extraordinário aqueles casos em que for considerada inválida lei local contestada em face da lei federal, ou seja, em que esta, se analisada perante aquela, for considerada válida. É que não havendo hierarquia entre as leis locais e as federais, ambas as hipóteses deveriam ter sido contempladas pelo constituinte reformador [28]. Nesse sentido, pode-se colacionar o seguinte:
Seguindo a mesma lógica que norteou a introdução dessa nova hipótese de recurso extraordinário, poderia ter sido contemplada também a hipótese de decisão que julga válida lei federal contestada em face de lei local, pois também nesses casos poderá ter havido equívoco da decisão, sendo igualmente um problema constitucional de divisão de competências. [...] A forma como está redigida a nova hipótese não se coaduna com o modelo federativo brasileiro, que não deve dar tratamento privilegiado a nenhuma das entidades federativas (ou suas leis). Assim, nada justifica a primazia da legislação federal ou a presunção de que esta seja mais válida do que a lei local a ponto de desconfiar-se quando esta é aplicada em detrimento daquela. O legislador federal pode cometer tantos abusos quanto o local [29].
4.8.2 Repercussão geral da questão
Ainda no que concerne ao recurso extraordinário, outra inovação digna de nota refere-se à introdução de um novo pressuposto de admissibilidade recursal relacionado à regularidade formal. Trata-se da necessidade de, no recurso extraordinário, demonstrar-se a repercussão geral da questão constitucional impugnada, o que deverá ser feito nos termos da lei. O §. 3º do art. 102, da CF, reza o seguinte:
No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.
Na verdade, em sua essência, o preceito ressuscita, entre nós, a antiga argüição de relevância, prevista expressamente na Emenda Constitucional n. 7, de 1977 [30], com uma nova nomenclatura: repercussão geral da questão constitucional.
A primeira questão que deve ser ventilada é que a repercussão geral da questão constitucional deverá ser disciplinada em lei, ou seja, há necessidade de edição de um diploma normativo para esclarecimento e balizamento da repercussão geral. Não se espere, contudo, do legislador uma definição fechada desse conceito, pois isso inviabilizaria, certamente, a sua utilidade. Provavelmente, será editada uma lei contemplando um conceito aberto e flexível de repercussão geral. É nessa senda que trilha o direito comparado [31].
A intenção do constituinte derivado reformador foi, indubitavelmente, reduzir o constante aumento do número de recursos extraordinários, envolvendo questões de somenos importância, que tem assomado à Corte Constitucional. Apenas a título de ilustração, em 1989, o STF recebeu aproximadamente quatorze mil novos processos, enquanto no ano de 2002, foram recebidos cento e sessenta mil.
Ressalto, apenas, que esse desiderato do constituinte reformador, a despeito de louvável, ficará prejudicado pela sua própria obra. Na verdade, a parte final do novel §. 3º do art. 102, da CF, exige quorum de dois terços dos integrantes do STF, ou seja, pelo menos o voto de oito Ministros, para que o recurso extraordinário não seja conhecido por ausência de demonstração da repercussão geral da questão constitucional.
Tal exigência, certamente, criará um enorme grau de dificuldade para o não conhecimento do recurso extraordinário por ausência de demonstração da repercussão geral da questão constitucional e inviabilizará a finalidade do instituto. O relator e as Turmas, por exemplo, não poderão reconhecer a falta de demonstração da repercussão geral no recurso extraordinário. Concentrou-se, no órgão Plenário, pela redação dada ao art. 102, §. 3º, a atribuição do não conhecimento do recurso por ausência de demonstração da repercussão geral. Sobre o exposto, pode-se citar o seguinte:
A exigência de que haja manifestação por esse quorum, tão qualificado no Supremo Tribunal Federal, como o é o de oito ministros (só exigível para a denominada manipulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade que modifique a "normalidade" ex tunc), pode tornar excessivamente onerosa a rejeição do recurso extraordinário que não contenha qualquer repercussão geral [32].
4.9 SÚMULA VINCULANTE
Uma das inovações mais polêmicas da emenda constitucional 45 refere-se à inserção da súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro. Na verdade, o debate sobre essa modalidade de súmula espraiou-se por toda a comunidade jurídica - magistrados, promotores, advogados e juristas - além de contar também com a manifestação de vários segmentos sociais.
Na doutrina, André Ramos Tavares, Alfredo Buzaid, Cândido Rangel Dinamarco, Carreira Alvim, Caio Mario da Silva Pereira, Ives Gandra da Silva Martins, Miguel Reale, Sepúlveda Pertence, Teresa Arruda Alvim Wambier, dentre outros, opinam favoravelmente à súmula vinculante. De outro vértice, Dalmo Dallari, Lênio Streck, Djanira Maria Sá e outros, opinam contrariamente à súmula [33].
Não obstante as divergências de opiniões, foi inserido, pela EC 45, o art. 103-A, no texto constitucional, prevendo expressamente a súmula vinculante. O caput do citado artigo reza o seguinte:
O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços de seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
Destaco, inicialmente, que, a rigor, o instituto não é uma grande inovação entre nós, pois a vinculação das decisões já existia, mesmo antes da reforma, para as decisões definitivas de mérito proferidas pelo STF em sede de ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, § 2º, da CF).
Sustentam alguns críticos da súmula vinculante que ela "engessará" o Judiciário, evitando, desse modo, a adequação das decisões dos juízes aos fenômenos sociais. Parece, nesse particular, que isso não ocorrerá, já que a súmula vinculante, por força do texto constitucional, não vinculará o seu próprio editor - o STF, que poderá, ex officio ou por provocação dos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, da CF) - como o Conselho Federal da OAB, o Procurador-Geral da República, o Presidente da República, partido político com representação no Congresso Nacional e outros - rever ou mesmo cancelar o enunciado. É o que se infere do art. 103-A, §. 2º, da CF.
Outra objeção que tem sido levantada quanto à súmula vinculante refere-se ao fato de que esse mecanismo violaria a liberdade dos juízes. Tal argumento, da mesma forma que o anterior, não deve prosperar. A atuação do magistrado, de fato, encontra limites no próprio ordenamento jurídico. Na verdade, não há direitos que sejam absolutos. O próprio direito à vida - um dos mais relevantes direitos do homem -, por exemplo, encontra limitações no texto constitucional e na própria legislação infraconstitucional [34].
Ademais, como destacou Evandro Lins e Silva [35], a Constituição é aquilo que o Supremo Tribunal Federal diz que ela é. Não pode, assim, um magistrado de instância inferior discordar da decisão prolatada pelo STF. E isso se dá por uma razão muito simples: trata-se de uma decisão da instância máxima do Poder Judiciário de nosso país, a qual, por força do disposto no art. 102, caput, da CF, compete precipuamente a guarda da constituição.
Critica-se, ainda, a súmula vinculante pela sua suposta violação das funções estatais, ou seja, da divisão dos "poderes". O STF, de acordo com essa tese, ao editar uma súmula - por ter ela caráter geral e aplicar-se a todos - estaria, em última análise, criando uma lei, o que é função do Legislativo.
Registre-se, no entanto, que a própria Constituição autoriza, em certos casos, o Executivo a legislar: é o que ocorre quando o Presidente da República edita uma medida provisória. Do mesmo modo, o texto constitucional autoriza o Legislativo a julgar o Presidente da República nos casos dos crimes de responsabilidade. Assim, não se pode vislumbrar qualquer relevância no argumento de que a súmula vinculante violaria a divisão das funções estatais. De fato, nada impediria, em situações excepcionais, que o Judiciário legislasse.
Ademais, não há óbice quanto à edição de uma lei que seja contrária à eventual súmula vinculante editada pelo STF. A vinculação das súmulas não existe em relação ao próprio STF e nem tampouco em relação ao Legislativo. Nesse caso, sim, haveria violação da independência das funções estatais. Sobre o exposto, pode-se colacionar o seguinte:
Parece oportuno, finalmente, anotar que as súmulas vinculantes não interferirão na atividade legislativa. Nem poderia ser de forma contrária, diante do princípio da independência entre as funções clássicas do Estado [36].
Por fim, consigne-se que a inobservância por parte das Instâncias inferiores do Judiciário, ou mesmo do Poder Executivo, das súmulas vinculantes do STF, autorizarão a utilização da reclamação perante aquele Tribunal, nos termos do art. 103-A, §. 3º, CF, in verbis:
Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.