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Vedação de propaganda institucional em período eleitoral

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V. Inconstitucionalidade diante do princípio do devido processo legal em sentido formal

            A Constituição da República de 1988 consagrou, expressamente, no disposto no artigo 5º, inciso LIV, o princípio do devido processo legal, ao prever que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal", cuja análise torna-se salutar, no presente estudo, na medida em que envolve questão concernente à imposição de restrições à liberdade política.

            Deveras, também há incidência da cláusula do devido processo legal quando se trata de restrição à liberdade política. As restrições a direitos políticos, embora não substanciem pena privativa de liberdade, privam, tolhem o gozo de uma liberdade política (e.g, candidatar-se a cargos públicos ou a cargos eletivos e poder concorrer ao pleito em condições de igualdade etc., afetando consideravelmente a cidadania).

            Muito embora tanto o conteúdo quanto os efeitos no ordenamento brasileiro não sejam idênticos aos dos ordenamentos alienígenas - mesmo porque a mera transplantação, a par de inaceitável, é inadequada -, é pertinente explanar sobre a compreensão conferida ao devido processo legal nos EUA.

            Com raízes remotas na Inglaterra do século XIII [58], inicialmente, o princípio do devido processo legal apresentava nítidos contornos processuais, formais, substanciando mecanismo de proteção objetiva a direitos subjetivos.

            No entanto, paulatinamente, mercê de sua incorporação ao texto das V [59] e XIV Emendas à Constituição norte-americana [60], logrou alcançar, tal garantia, intensa expressividade, não havendo, todavia, unanimidade em relação à sua exata definição, talvez porque, conforme afirmou o Juiz da Corte Suprema Felix Frankfurter, ela "não pode ser aprisionada dentro dos limites traiçoeiros de nenhuma fórmula".

            Pois bem, construiu-se, na jurisprudência da Suprema Corte, a teoria do devido processo legal que contempla duas perspectivas indissociáveis [61]: substantive due process – projeção na seara do direito material, mediante controle de conteúdo [62] - e procedural due process – garantia na esfera processual -, visando a proteger o trinômio vida-liberdade-propriedade. Nesse sentido, o standard hodierno da cláusula protege todos os direitos fundamentais (enumerados e não-enumerados) em face de invasões do poder público [63].

            Nesta linha, percebe-se que a jurisprudência da Suprema Corte dos EUA foi responsável pela ampliação do conteúdo semântico do devido processo legal, de sorte a não apenas controlar a justa observância do processo estabelecido em leis, mas também controlar o conteúdo, a substância do ato em teste.

            No direito brasileiro, Carlos Roberto Siqueira Castro, ao estabelecer liame entre o devido processo legal e razoabilidade e racionalidade das leis, sinaliza que a cláusula substancia "postulado genérico de legalidade a exigir que os atos do Poder Público se compatibilizem com a noção de um direito justo, isto é, consentâneo com o conjunto de valores incorporados à ordem jurídica democrática segundo a evolução do sentimento constitucional quanto à organização do convívio social" [64], sendo que se entende por norma "razoável" e "racional" aquela que não é "arbitrária, implausível e caprichosa", todavia consiste em "meio idôneo, hábil e necessário ao atingimento de finalidades constitucionalmente válidas." [65]

            Lucia Valle Figueiredo, por seu turno, salienta, como requisito do devido processo legal, a necessidade de compatibilização entre lei e Constituição [66], bem como conclui que o seu conteúdo no ordenamento jurídico brasileiro abriga a igualdade substancial e formal [67], sendo que a verificação quanto à sua observância ocorrerá "somente no caso concreto - em face da lei concreta ou da aplicação concreta que um juiz ou administrador faça, em procedimentos ou processos administrativos ou judiciais, é que veremos se foi cumprido o due process of law, que dependerá das circunstâncias, como dizia o grande Holmes" [68].

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            Com efeito, conferem-se, no Brasil, ao princípio do devido processo legal, contornos amplos, de modo que não se contenta com a mera obediência à Constituição e à lei em um sentido formal ou literal, bem pelo contrário exige a observância substancial principalmente das normas constitucionais de direitos fundamentais, atrelando-se ao princípio da razoabilidade [69] e da proporcionalidade. Princípios esses que são de fundamental relevância no controle, desenvolvimento e concretização de normas restritivas de direitos [70], normas sancionadoras, na medida em que permitem não só aferir eventuais discrepâncias entre o meio eleito – v.g. pelo legislador – e o fim almejado, bem como realizar (i) adequação típica das condutas às normas, (ii) atenuação necessária dos rigores sancionatórios abstratos, mediante correção de intoleráveis distorções legislativas. Logo, nesta sede, está-se diante da situação em que o princípio do devido processo legal, por sua dimensão material, tangencia o princípio da proporcionalidade, anteriormente analisado.

            Importa, agora, contudo, abordar a questão da afronta ao devido processo legal em seu sentido formal, processual, que demanda a observância e respeito de garantias insculpidas na Constituição Federal.

            Nesta ocasião, ingressa o debate acerca da inconstitucionalidade da alínea b, inciso VI, do art. 73, da Lei n.º 9.504/97, combinada com a sanção do § 5º (cassação do registro ou diploma), em face da violação às garantias de ampla defesa, individualização e personalização das penas, genericamente consideradas.

            Todavia, antes de se analisar o problema posto à luz de tais princípios, urge, ainda que perfunctoriamente, traçar considerações sobre o princípio da culpabilidade e da responsabilização subjetiva.

            Na seara do direito sancionatório, isto é, da imposição de restrições à liberdade, a par de considerar a própria norma sancionadora no que concerne à sua aplicabilidade, ao seu alcance e, mormente, aos princípios que permeiam o seu surgimento (válido/constitucional ou não), insta tecer considerações em relação à responsabilidade daquele que viola a norma repressiva.

            No presente estudo, pode-se dizer ser imprescindível análise desse jaez na medida em que a interpretação conferida pelo posicionamento predominante na Justiça Eleitoral ensejou a adoção de uma espécie de responsabilidade objetiva, uma vez que a configuração da infração, segundo esse entendimento, não dependeria da demonstração de potencialidade de o ato influir no resultado do pleito, e tampouco da comprovação do prévio conhecimento do beneficiário ou da intimação para a retirada da publicidade. Isto é, ainda que, por exemplo, o candidato desconhecesse a existência de publicidade institucional e, por conseguinte, não tivesse atuado no sentido de obter tal publicidade, estaria caracterizada a ilicitude.

            Mencione-se, desde logo, que as condutas vedadas previstas no art.73, da Lei n.º 9.504/97, constituem infrações administrativas [71].

            Pois bem, princípio elementar, com esteio constitucional, em matéria de responsabilidade do agente em razão de infrações administrativas, é a culpabilidade, o qual substancia verdadeiro pressuposto de responsabilidade das pessoas físicas, condicionando a aplicação da sanção à necessidade do agente revelar-se culpável.

            Na medida em que, não bastasse o fato de arrimar-se na dignidade da pessoa humana (art. 1.°, III, da Lei Fundamental de 1988), o Estado Democrático de Direito brasileiro assegura os princípios da pessoalidade (art. 5.°, XLV, CF/88) [72] e da individualização da pena (art. 5.°, XLVI, CF/88), bem como o devido processo legal (art. 5.°, LIll, CF/88) e outros direitos e liberdades fundamentais, ex vi do § 2º, do art. 5º, decorrentes do direito internacional e do sistema constitucional propriamente dito, ainda que não expressamente previstos, de modo que é inegável a existência de um princípio da culpabilidade, o qual, por ter origem constitucional, não resta adstrito à seara penal, aplicando-se de forma genérica e visando, mormente, a limitar a atividade punitiva do Estado (na qualidade de garantia dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana) [73].

            Deveras, cumpre, portanto, no direito brasileiro, exigir o princípio da culpabilidade na aplicação das infrações administrativas, visto que o exercício da atividade punitiva estatal há de estar devidamente adstrita ao devido processo legal formal e substancial, revestido das garantias de plenitude de defesa e contraditório, além das inafastáveis pessoalização e individualização da pena. Garantias essas que seriam meramente ilusórias caso não houvesse a exigência de culpabilidade como fundamento para imposição de sanções administrativas.

            Como se vê, então, a culpabilidade é uma exigência inafastável para a responsabilização das pessoas físicas, decorrente da fórmula substancial do devido processo legal e da necessária proporcionalidade das infrações e das sanções, resultando imprescindível a análise da subjetividade do autor do fato ilícito quando se trate de pessoa humana.

            Nesse aspecto, preconiza Alejandro Nieto [74] ser pacífica a exigência de culpabilidade para a imposição de sanções. Ao menos tem sido assim na Espanha, Itália e Alemanha, em legislações recentes e em jurisprudência e manifestações doutrinárias.

            Nesse sentido salienta, ainda, que a Corte Constitucional espanhola assentou a necessidade de constatação da culpabilidade para imposição de uma sanção administrativa, extraindo a exigência de culpabilidade não do Direito Penal, e sim diretamente da Constituição espanhola de 1978 [75].

            A propósito Franck Moderne [76] destaca, outrossim, ao analisar a aceitação do princípio da culpabilidade em textos de várias legislações européias, especialmente o direito francês, que o Conselho Constitucional, sem embargo seja, em um primeiro momento, discreto na transposição da culpabilidade penal ao direito administrativo repressivo, a regra é que a repressão administrativa atenda ao princípio da culpabilidade, vale dizer, as sanções administrativas não podem ser impostas sem que haja um comportamento pessoal do autor da infração, uma falta, que pode ser fruto da intenção do agente ou de sua negligência.

            A fim de não restar dúvida quanto à exigência da culpabilidade no que atine às infrações administrativas, indague-se, por oportuno, qual seria a efetividade da previsão de ampla defesa, segurança jurídica, legalidade, devido processo legal, sem falar, mediatamente, na dignidade da pessoa humana, se não houvesse exigência da culpabilidade para as pessoas físicas, no direito brasileiro?

            Com efeito, o conjunto dessas cláusulas garantistas impõe a exigência da culpabilidade, eis que se trata de evitar e impedir atuações arbitrárias do Estado. A perspectiva de uma responsabilidade objetiva ou de uma falta de culpabilidade traduziria intolerável arbitrariedade dos Poderes Públicos em relação à pessoa humana, em total afronta ao mencionado conjunto de normas constitucionais, principalmente no caso em tela, em que a supressão da responsabilidade subjetiva e a não exigência da culpa prestam-se, como se demonstrou, a restringir a importante liberdade fundamental consistente no exercício da cidadania ativa, qual seja, o direito de concorrer ao pleito eleitoral.

            Não bastasse isso, em inegável projeção do princípio da culpabilidade, a Constituição da República de 1988 prevê que agentes públicos somente podem ser responsabilizados, por dolo ou culpa, ao cuidar do direito de regresso do Estado lesado, ao ser obrigado a indenizar particulares por faltas de seus funcionários. Como corolário lógico do princípio da culpabilidade [77], vislumbra-se a vedação a qualquer pretensão estatal de aplicação de responsabilidade objetiva às pessoas físicas.

            Neste aspecto, Luigi Ferrajoli, ao tecer considerações sobre os modelos arcaicos de responsabilidade objetiva e as vicissitudes do princípio da culpabilidade, leciona: "la tercera condición sustancial requerida por el modelo penal garantista como justificación del ‘cuando’ y del ‘que’ prohibir es la de la culpabilidad. En el sistema SC queda manifiesto en el axioma nulla actio sine culpa y en la tesis que de él se derivan: nulla poena, nullum crimen, nulla lex poenalis, nulla iniura sine culpa. Por exigirlo dicha condición, que corresponde al llamado ‘elemento subjetivo’ o ‘psicológico’ del delito, ningún hecho o comportamiento humano es valorado como acción si no es fruto de uma decisión; consiguientemente, no puede ser castigado, y ni siquiera prohibido, si no es intencional, esto es, realizado com consciência y voluntad por una persona capaz de comprender y de querer." [78]

            Vale dizer, constata-se, na Constituição da República de 1988, ao se consagrar não só o princípio da culpabilidade no que concerne às infrações administrativas, mas também os princípios de pessoalidade (Art. 5°, XLV) e da individualização da pena (Art. 5°, XLVI), ambos inscritos como direitos fundamentais da pessoa humana, a existência de vedação absoluta a qualquer pretensão estatal de responsabilidade penal objetiva e também responsabilidade política ou administrativa que venha a atingir direitos fundamentais da pessoa humana, ou seja, outras modalidades de atividades sancionadoras.

            Como se vê, é certo que a exigência de culpabilidade, como princípio amplamente limitador da atividade sancionatória estatal, impede que pessoas sejam responsabilizadas com imputações que vulnerem seus direitos políticos, suas liberdades públicas, de forma meramente objetiva [79], erigindo, de tal sorte, exigência de responsabilidade subjetiva.

            Destarte, neste contexto, o entendimento predominante na Justiça Eleitoral, quanto à interpretação do art. 73, VI, b, da Lei n.º 9.504/97, de uma só vez, afronta aos princípios do devido processo legal, eis que inobserva a exigência da verificação da culpabilidade, da pessoalidade da sanção, da individualização da pena, da proporcionalidade, da razoabilidade.

Sobre os autores
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Paulo Ricardo Schier

advogado militante, doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná, professor de Fundamentos de Direito Público e Direito Constitucional na Escola de Direito e Relações Internacionais das Faculdades do Brasil (UniBrasil) e do Instituto de Pós-Graduação em Direito Romeu Felipe Bacellar, membro honorário da Academia Brasileira de Direito Constitucional

Melina Breckenfeld Reck

advogada integrante do escritório Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados, mestre em Direito Constitucional pela UFPR, professora de Direito Econômico nas Faculdades Integradas do Brasil (UniBrasil)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin; SCHIER, Paulo Ricardo et al. Vedação de propaganda institucional em período eleitoral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 783, 25 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7193. Acesso em: 22 dez. 2024.

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