VI. Poder Judiciário versus Soberania Popular
Conforme asseverou o Ministro Gilmar Mendes, seja por ocasião (i) do Acórdão n.º 608, envolvendo o Governador Ronaldo Lessa e o ex-presidente Fernando Collor, ou (ii) do recente Acórdão n.º 24.793, importa adotar e observar, em discussões judiciais que visam a uma revisão de um processo eleitoral majoritário, uma linha caracterizada pela prudência. Precaução, prudência e, também, pode-se dizer, consistência, tornam-se imprescindíveis em situações desse jaez em virtude da tensão sempre presente entre o princípio democrático e o papel do Poder Judiciário.
Neste sentido, estreitando os laços entre democracia e realização de eleições, Jorge Miranda leciona que "Democracia exige exercício do poder pelo povo, pelos cidadãos com direitos políticos, em conjunto com os governantes; e esse exercício deve ser actual, e não potencial, deve traduzir a capacidade dos cidadãos de formarem uma vontade política autônoma perante os governantes. Democracia significa que a vontade do povo, quando manifestada nas formas constitucionais, deve ser o critério de ação dos governantes. (...) Por outro lado, na democracia representativa — a democracia directa, mera fórmula teórica, não interessa — o modo por excelência de o povo formar e manifestar a sua vontade (e, portanto, o modo mais característico de participação política) consiste na eleição. O exercício do sufrágio não é aqui algo de secundário, nem fica (a despeito de o ponto ser duvidoso) fora do Estado; o sufrágio, a eleição, é a forma por que os cidadãos exercem o poder político, a acrescer àquelas por que o exercem os governantes." [80]
Destarte, a propósito, não se olvide que, embora consagrem a democracia e o princípio da soberania popular, as Constituições modernas – compromissórias - estabelecem a forma que deve ser observada para a manifestação da vontade majoritária, bem como os conteúdos mínimos que devem ser respeitados pelos órgãos representativos dessa vontade, sem, no entanto, suprimi-la. Cotejando a democracia com um jogo, poder-se-ia dizer, assim, que a Constituição seria o manual de regras e, os jogadores, os agentes políticos representantes do povo, cabendo à jurisdição constitucional ser o árbitro do jogo democrático [81].
De outra parte, registre-se que, desde a origem da jurisdição constitucional, a legitimidade dos órgãos jurisdicionais para invalidar regras produzidas pelo legislativo tem sido questionada, principalmente em virtude do princípio democrático, eis que ressalta o paradoxo entre a legitimidade conferida pelo povo, durante o processo eleitoral, aos órgãos legislativos, e a "ilegitimidade" dos órgãos judiciários e cortes constitucionais cujos membros não são eleitos pelo povo.
Nesse sentido, Roberto Gargarella [82] sustenta, após realizar duas indagações - (i) como os juízes, não eleitos democraticamente, podem anular uma lei aprovada pelos representantes do povo, prevalecendo sobre a vontade popular?; (ii) o poder judicial está capacitado para decidir definitivamente sobre a validade de normas? -, que grande parte dos constitucionalistas e cientistas políticos reconhecem a existência de tensão entre a organização democrática da sociedade e a função judicial de revisão das leis, denominam-na dificuldade contra-majoritária, isto é, a dificuldade que surge quando o órgão com menor legitimidade democrática, dentro da divisão de poderes, impõe sua autoridade sobre os restantes.
Buscando conciliar democracia e jurisdição constitucional, a doutrina jurídica estabelece um âmbito próprio de atuação para as Cortes Constitucionais e define "limites que possam, com a objetividade possível, apartá-lo do campo a ser preenchido por programas políticos escolhidos pela vontade majoritária dos cidadãos." [83]
Nessa esteira, Sérgio Fernando Moro [84], recorrendo ao que denominou de reserva da consistência, propõe [85] que a atuação da jurisdição constitucional não se limite a casos de deficiente funcionamento da democracia, mas sim que se realize de modo incisivo quando for possível invocar, consistentemente, argumentos democráticos favoráveis à sua atuação.
Deveras, diante da tensão [86] com a democracia, "a legitimidade da jurisdição constitucional dependerá de sua capacidade de agir em sintonia com o ideal democrático" [87].
Assim, ressaltando existir situações que demandam ativismo judicial e outras que exigem auto-contenção, Sérgio Moro preconiza que "a legitimidade da atuação da jurisdição constitucional demanda a demonstração da consistência de sua atividade" [88].
Vale dizer, se as objeções ao exercício da jurisdição esteiam-se na necessidade de resguardar não só a competência do legislador democrático, bem como, hipótese analisada no presente estudo, a vontade manifestada soberanamente em pleito eleitoral, elas perdem força "quando a atuação da jurisdição constitucional pode ser justificada com base em argumentos que apelem para o próprio regime democrático, como quando ela contribui para o aprofundamento da democracia ou quando intervém em caso de mau funcionamento." [89]
Pois bem, na situação sob análise, a tensão entre democracia e Poder Judiciário apresenta, concomitantemente, suas duas facetas, vez que se trata de questão na qual o reconhecimento da inconstitucionalidade de dispositivo legal tem o condão de assegurar, normalmente, a observância do resultado do processo eleitoral majoritário.
Com efeito, propõe-se hipótese hermenêutica de invalidação de regra produzida pelos representantes eleitos. No entanto isso permitirá manter hígido, como sucede correntemente, o resultado de eleição, isto é, o resultado do exercício direto, pelo próprio povo, de sua soberania, sem a intermediação de representante, razão pela qual, nessa atividade de reconhecimento da inconstitucionalidade formal, não há que se cogitar da existência de dificuldade contra-majoritária.
Como se vê, o caso em tela contempla a possibilidade de utilização de argumentos que apelam em favor do próprio regime democrático, no sentido de reconhecimento da inconstitucionalidade do previsto na alínea b, do inciso VI, do artigo 73, na medida em que restará, de tal sorte, resguardado, como se disse, na maioria dos casos, o exercício da soberania popular.
Nessa esteir,a Adilson de Abreu Dallari ressalta "que, em qualquer situação, com ou sem a edição de normas adequadas, com ou sem estabilidade normativa, com ou sem um bom repositório jurisprudencial, sempre será necessário solucionar as questões de direito político e eleitoral à luz do princípio democrático, afirmado no primeiro artigo do texto constitucional e necessariamente inerente à idéia de República." [90]
Não se olvide, ainda, que o discurso normativo-constitucional erige a soberania como um dos fundamentos da República Federativa e princípio nuclear do regime democrático, prevendo, na seqüência, que tal soberania se traduz na aceitação do povo como fonte de todo poder (inciso I, e parágrafo único, do art. 1º), bem como elucida que o povo tem a alternativa de exercer o poder diretamente ou "por meio de representantes eleitos", e, mais que isto, eleitos nos termos da própria Constituição (parte final do referido parágrafo).
A realização de eleições consubstancia a efetivação de uma verdadeira democracia representativa. No entanto, para conferir efetiva legitimidade aos eleitos, é imprescindível assegurar uma paridade de condições entre os candidatos.
Nesta linha, a ausência de análise da potencialidade de influência no pleito, nas hipóteses de veiculação de publicidade institucional, enseja a impossibilidade de aferir a efetiva afetação da igualdade entre os candidatos (justamente o objeto visado pela vedação da conduta), de modo a permitir, paradoxalmente, a cassação de diploma de candidato eleito em situações nas quais não houve, de fato, tal desequilíbrio, não houve afronta à isonomia. Vale dizer, a aplicação de uma presunção de desequilíbrio, que, mediante a análise das circunstâncias fáticas, pode facilmente ser elidida, prevalece em face da vontade popular e do princípio democrático.
Deveras, a aceitação do afastamento do resultado eleitoral mediante cassação de registro ou de diploma, que consiste em grave restrição ao exercício pleno da cidadania, está condicionada à efetiva comprovação do desequilíbrio de oportunidades entre os candidatos, desigualdade essa que ensejaria, por sua vez, mácula à normalidade, à lisura e à legitimidade do pleito eleitoral. É dizer, tão grave sanção somente se justificaria na hipótese de efetiva (não meramente presumida) inidoneidade do processo eleitoral. Do contrário, verificar-se-ia situação em que a intervenção do Poder Judiciário substanciaria ilegítimo controle da soberania popular.
Tais considerações, por evidente, não importam em negação do papel do Judiciário no controle e guarda do próprio Estado Democrático de Direito. O que se pretende ponderar é que, em situações limites como a do presente estudo, que envolvem tensão entre a vontade eleitoral majoritária e a preservação substancial de certos valores constitucionais, há que se privilegiar, especificamente, aquela, mormente porque existe interpretação que torna possível o respeito à vontade popular sem prejuízo da igualdade no pleito (preservação das regras procedimentais para a formação da vontade majoritária), desde que, como se demonstrou, compreenda-se que a infração ao art. 73, VI, "b", da Lei n.º 9.504/97, somente se configura com a exigência da demonstração de responsabilidade subjetiva, da influência no resultado do pleito, da sua normalidade e legitimidade e com proporcionalidade na aplicação da sanção, isso, evidentemente, caso se supere a questão da inconstitucionalidade formal.
Destarte, por uma via, reconhecendo-se a inconstitucionalidade formal do art. 73, VI, "b", da Lei nº 9.504/97, com a cominação de penalidade equivalente à declaração de inelegibilidade através de lei ordinária, preserva-se a vontade das urnas. De outra sorte, reitere-se, superada, eventualmente, referida questão de inconstitucionalidade formal, a harmonização entre os interesses majoritários e a preservação de outros bens constitucionais (igualdade no pleito) pode ser resguardada mediante interpretação conforme a Constituição, como será demonstrado.
Por fim, recorrendo ao voto do Ministro Gilmar Mendes no Acórdão n.º 24.739/TSE, embora seja de se reconhecer não ser correta a divinização do poder popular (o que levaria ao reconhecimento de um absoluto procedimentalismo constitucional), é de se acentuar que tampouco é correta a idéia de que a eventual relativização do princípio majoritário, após a realização de pleito eleitoral, possa ser tomada como algo ordinário. Nesse caso, seguindo a linha de raciocínio de Zagrebelsky [91], estaríamos consagrando um tipo eventualmente danoso de autocracia, ou seja, o governo de uma parte sobre a outra.
VII. Interpretação conforme e salvamento material do dispositivo
De tudo o que se expôs, num primeiro plano, tem-se a verificação de inconstitucionalidade formal do art. 73, VI, "b", da Lei nº 9.504/97, em vista de criar, embora de forma mascarada, verdadeira hipótese de inelegibilidade, o que apenas seria permitido, de acordo com o texto constitucional, mediante o manejo de lei complementar (reserva de lei complementar). Além disso, em diversa perspectiva, o dispositivo, ao menos de acordo com a interpretação contida no Acórdão 27439 do E. TSE, também se encontra eivado de inconstitucionalidade substancial por afronta ao princípio da proporcionalidade, do devido processo legal em sentido formal e material, dos princípios da cidadania, da regra geral da elegibilidade, republicano, da soberania popular, democrático, da publicidade e controle dos atos públicos e da impessoalidade, dentre outros, na esteira do que foi anteriormente demonstrado de forma exaustiva.
A questão da inconstitucionalidade material apontada, por certo, decorre principalmente do fato de que, nos moldes em que vem sendo interpretado, o dispositivo sob comento simplesmente anula, esvazia, esgota inúmeros bens e valores constitucionalmente protegidos, bem como direitos, liberdades e garantias fundamentais.
Nada obstante, não é possível olvidar que, no caso em tela, a inconstitucionalidade material decorre, em verdade, não do dispositivo (enunciado) propriamente dito mas, sim, de determinada interpretação que dele se vem fazendo.
Com efeito, uma vez admitida, no quadro do neoconstitucionalismo, a distinção entre dispositivo normativo e norma e consistindo essa no produto de interpretação daquele em face de dado caso concreto, em todo o seu contexto lingüístico e fático [92], não é estranhável, e nem raro, que em face de determinada questão específica seja possível obter diversas normas como fruto de interpretação de uma única regra. Este fenômeno, aliás, é bastante normal em face da estrutura polissêmica e aberta da linguagem jurídica e, ainda, por conta da intervenção da esfera de pré-compreensão dos operadores jurídicos na determinação/construção das normas.
Neste contexto, é certo que dentre as diversas normas plausíveis de construção, algumas delas sejam constitucionais e outras inconstitucionais. Diante dessa situação, impõe-se a utilização da chamada interpretação conforme a Constituição [93].
Consiste, a interpretação conforme a Constituição, segundo sustenta Jorge Miranda, não propriamente uma regra de interpretação, "mas um método de fiscalização da constitucionalidade." [94] Através dela afirma-se que, diante de múltiplas interpretações possíveis de um preceito infraconstitucional, deve-se optar por aquela que seja mais conforme à Constituição, aquela que atribua maior eficácia aos valores e bens constitucionais, afastando-se as interpretações inconstitucionais. Hesse, por sua vez, enuncia que pela interpretação conforme a Constituição, uma lei não deve ser declarada nula quando seja passível de uma receber uma interpretação que a coloque em plena sintonia com o conjunto normativo-constitucional [95]. Desta forma, leciona Luís Roberto Barroso que "o papel da interpretação conforme a Constituição é, precisamente, o de ensejar, por via de interpretação extensiva ou restritiva, conforme o caso, uma alternativa legítima para o conteúdo de uma norma que se apresenta suspeita", substanciando, assim, verdadeira técnica de salvamento de atos normativos infraconstitucionais [96].
Jorge Miranda fundamenta a utilização desta técnica "em nome de um princípio de economia do ordenamento ou de máximo aproveitamento de actos jurídicos" [97]. Contudo, a grande maioria dos autores sustenta que a sua justificativa dá-se em função (i) do princípio da presunção de legitimidade dos atos estatais e (ii) do princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição. Neste aspecto, na doutrina nacional, tem prevalecido certa preferência à idéia de unidade do ordenamento. Vale lembrar, exemplificativamente, a abalizada lição de Luís Roberto Barroso: "(...) o princípio guarda suas conexões com a unidade do ordenamento jurídico e, dentro desta, com a supremacia da Constituição. Disso resulta que as leis editadas na vigência da Constituição, assim como as que procedam de momento anterior, devem curvar-se aos comandos da Lei Fundamental e ser interpretadas em conformidade com ela." [98]
Segundo Canotilho, ainda, o princípio da interpretação
conforme comporta várias dimensões: "(1) O princípio da prevalência da
constituição impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só
deve escolher-se a interpretação que não seja contrária ao texto e programa da
norma ou normas constitucionais; (2) o princípio da conservação das normas
afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados
os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a Constituição;
(3) o princípio da exclusão da interpretação conforme a constituição, mas
Esta última dimensão citada por Canotilho aponta, já, para os limites da interpretação conforme. Deveras, reconhecem a doutrina e a jurisprudência [100] que a interpretação conforme a Constituição possui limites (i) no sentido literal da lei e (ii) no objetivo que o legislador perseguiu inequivocamente com a sua regulamentação. Afinal, a inobservância desses limites representaria verdadeira usurpação do princípio democrático e da separação dos poderes [101].
No plano da práxis, a interpretação conforme a Constituição manifesta-se no juízo de controle de constitucionalidade das leis, em que o Judiciário poderá declarar a inconstitucionalidade de uma interpretação – de uma norma -, mantendo hígido o texto do dispositivo. Assim, manifesta-se tecnicamente e de forma predominante, inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal, seja em sede de fiscalização abstrata como concreta, por meio da chamada declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto [102].
Assim, portanto, retomando-se a seqüência da questão sob debate, não se olvide da inconstitucionalidade material da interpretação (norma) construída pelo Tribunal Superior Eleitoral, pelas inúmeras razões já apontadas. Nada obstante, é plenamente possível a construção de diversa norma em que se admita um sentido constitucional (conforme a Constituição) do art. 73, VI, "b", da Lei n.º 9.504/97, assim como de seu § 5º. E, por certo, sem se ferir a literalidade do dispositivo ou o inequívoco sentido que lhe quis emprestar o legislador. Para isso, bastariam pequenos ajustes hermenêuticos, a seguir indicados [103].
Em primeiro lugar, em vista do princípio da impessoalidade, da publicidade, da cidadania (dimensão de participação e controle do poder), não será possível admitir que a proibição prevista no art. 73, VI, "b", da Lei n.º 9.504/97, seja uma infração de mera conduta, independente do resultado causado, o que implicaria, no período dos 3 (três) meses que antecedem as eleições, verdadeira suspensão de norma constitucional (art. 37, caput – impessoalidade e publicidade -, e respectivo § 1º - regra constitucional do conteúdo mínimo publicitário autorizado, da Constituição de 1988).
Logo, o tipo da infração descrita, em homenagem à literalidade do texto, há de manter a idéia de vedação da publicidade institucional no período referido, porém, não de forma absoluta. O que se encontra vedado é tal publicidade que venha acarretar específicos resultados: (i) benefício de determinado candidato com a respectiva quebra concreta da isonomia no pleito (em homenagem à isonomia nas eleições, prevista no caput do art. 73, da Lei n.º 9.504/97, como densificação do princípio constitucional geral da isonomia) e/ou (ii) afetação no resultado do pleito, quebra da normalidade e legitimidade das eleições (em homenagem ao art. 14, § 9º, da Lei Fundamental).
Assim, está-se contemplando a possibilidade de realização do dever de publicidade e impessoalidade concomitantemente com a isonomia, normalidade e legitimidade das eleições mediante a devida e proporcional "compressão" daquele primeiro em situações especiais. Logo, não se veda por vedar, pura e simplesmente, a publicidade institucional no período previsto no art. 73, VI, "b", da Lei n.º 9.504/97, mas sim, na interpretação proposta, veda-se porque o legislador ordinário buscou densificar aspectos da isonomia e bens constitucionalmente protegidos definidos no art. 14, § 9º, da Constituição de 1988. Esse seria o sentido da proibição. E, se assim não for, o dispositivo será inconstitucional pois estará, pura e simplesmente, restringindo o direito fundamental à participação popular e à cidadania (manifestadas na possibilidade de participação no pleito) sem fundamento ou autorização constitucional proporcional e razoável.
Não fosse por isso, enquanto regra densificadora de princípios e regras de matiz constitucional, e como de costume se exige de toda a legislação infraconstitucional, o dispositivo sob estudo apenas se justifica em vista de parâmetros constitucionais que lhe dêem supedâneo. No caso, o bem jurídico protegido e concretizado no plano legislativo ordinário é a normalidade e legitimidade das eleições, repise-se, enunciadas no art. 14, § 9º, da Lei Fundamental. Então, uma vez não afetados os bens protegidos, não há que se admitir a infração. A tipificação da conduta vedada, logo, demandará a afetação do resultado do pleito, com a respectiva demanda da prova desta interferência.
Ademais, a própria literalidade do dispositivo impõe tal compreensão, eis que, no § 5º, do art. 73, há utilização inequívoca da expressão "candidato beneficiado", para fim da aplicação da sanção. Logo, mais uma vez, há que se verificar o resultado, qual seja, o efetivo benefício. Sem ele, reitere-se, não há que se cogitar da infração. Até porque não é incomum que a veiculação de propaganda institucional, longe de substanciar benefício, possa, em verdade, causar prejuízo. Ela pode ser veiculada mediante autorização de funcionário com o exato fito de buscar a caracterização da infração estudada, com o fim, portanto, de prejudicar o candidato. Da mesma forma pode-se admitir a possibilidade da publicidade institucional oficial vir a veicular notícias impopulares, não sendo razoável, neste caso, imaginar que a Justiça Eleitoral punirá com a cassação do registro ou diploma por decorrência de publicação desse jaez. É neste contexto que se percebe como o resultado é relevante. Por fim, no que tange a este aspecto, há que se considerar, ainda, a seguinte hipótese-questão: no período dos 3 (três) meses que antecedem pleito de âmbito nacional alguém cogitaria em cassar o registro de eventual candidato à reeleição presidencial em face da transmissão da "Voz do Brasil" nas rádios - noticiário, como se sabe, oficial, em que se dá publicidade de obras e realizações governamentais? A lógica e a razoabilidade demandam, por certo, resposta negativa.
Portanto, em face do disposto, uma primeira condição para o salvamento da norma é a admissão de que a concretização da infração demanda a ocorrência e prova do resultado danoso à igualdade, da quebra da normalidade e legitimidade das eleições, o que se alcança com a demonstração da ocorrência do benefício, requisito exigido pela própria lei.
Ademais, além do resultado (ou seja, não admissão de tipo de mera conduta), em vista do princípio do devido processo legal e da ampla defesa, é de se exigir a demonstração da culpa. E, assim, não bastaria a pura e simples demonstração da ocorrência do resultado proibido mas, antes, nexo de causalidade estabelecido e deflagrado por uma ação culposa ou dolosa. Do contrário, admitir-se-á a possibilidade de imputação de infração ao candidato em que ele não tenha possibilidade de defesa, o que é incompatível, reitere-se, com o devido processo legal. Ocorreria, nesta linha, por hipótese, determinada imputação ("veiculação de publicidade institucional oficial nos três meses que antecedem as eleições"): ainda que não tivesse sido autorizada pelo candidato, ainda que veiculada sem seu conhecimento, ainda que não lhe trouxesse nenhum benefício (ao contrário, tivesse lhe prejudicado), ainda que não tivesse afetado a igualdade no pleito eleitoral, ou a normalidade e legitimidade das eleições, ainda que os eventuais fatos noticiados fossem verdadeiros, ou ainda que fossem impopulares, ainda que se prestasse a veiculação denunciada ao fim de dar cumprimento ao princípio da publicidade e impessoalidade..., pouco importa, na interpretação predominante no TSE, o candidato haveria de ser punido, mesmo após a manifestação da soberania popular e contra ela. Ora, se assim é, que defesa poderá aduzir o representado? Certamente nenhuma. Como, nesta situação, estaria contemplado o devido processo legal em seu sentido clássico, qual seja, o formal-processual? Não estaria contemplado. Daí por que, como segundo requisito para salvamento da constitucionalidade do dispositivo, haveria que se admitir que, além do resultado, fosse perquirida e comprovada a culpa.
Ademais, demonstrada a conduta, a culpa (em sentido lato), o resultado (agressivo aos bens constitucionalmente protegidos da isonomia, normalidade e legitimidade das eleições) e o nexo de causalidade, razões de proporcionalidade (em sentido estrito, ou seja, quantidade da pena) e individualização da pena haveriam de ser levadas a efeito no momento da aplicação da sanção. Ou seja, fatos de pequenas proporções haverão de demandar a aplicação apenas de multa. Somente os casos de gravíssima repercussão, devidamente previstos em lei complementar (ex vi do §9, do art. 14, da Carta Magna), haverão de sujeitar o infrator à cassação do registro ou da candidatura.
Destarte, sob tais condições, seria admissível o salvamento da constitucionalidade material do preceito sob estudo. Todavia, isto demandaria o rompimento com a norma (interpretação) que foi construída e consolidada pela Justiça Eleitoral brasileira.
Por fim, não se olvide, para que se implemente uma interpretação conforme a Constituição, como proposto neste capítulo, encontrando hermenêutica harmonizadora do disposto no art. 73, VI, "b", da Lei n.º 9.504/97, com o conjunto de bens e valores constitucionalmente protegidos em jogo, o Poder Judiciário haverá de superar, primeiramente e por óbvio, a argüição de inconstitucionalidade formal do enunciado, antes demonstrada, e que não é passível de sujeitar-se a ajustes interpretativos conformadores.