3. O AGENTE INFILTRADO
3.1. CONCEITO DE AGENTE INFILTRADO
A infiltração policial como meio extraordinário de obtenção de prova em uma organização criminosa, é um instrumento de extrema importância nos dias atuais, pelo fato de o crime organizado estar cada vez mais astuto e de difícil comprovação. Desta forma, faz-se necessário inicialmente conceituar o que vem a ser o agente infiltrado, também chamado de agente encoberto e undercover agent [62].
Pacheco[63] ao conceituar agente infiltrado é categórico ao afirmar que “agente infiltrado é um funcionário da polícia que, falseando sua identidade, penetra no âmago da organização criminosa para obter informações e, dessa forma, desmantelá-la”.
Segundo Santamaria apud Pacheco[64] infiltrado é aquele policial ou, no caso argentino, membro das forças armadas que faz uma investigação dentro de uma organização criminosa, muitas vezes ocultando sua verdadeira identidade, com fim de obter conhecimento sobre o cometimento de delitos, sua preparação e informar sobre tais circunstâncias para, assim, proceder a seu descobrimento, e em alguns casos, encontra-se autorizado também a participar de crimes.
Com o intuito de conceituar o instituto da infiltração policial, Carlos[65], disciplina da seguinte maneira:
[...] tratar-se de uma técnica especial de investigação através da qual um agente policial, devidamente selecionado e treinado para a tarefa, ocultando a verdadeira identidade, e utilizando outra a ser fornecida pelo Estado, é introduzido no âmbito de uma organização criminosa e conquistada a confiança dos verdadeiros membros, passa a atuar com o fim de obter provas a respeito das atividades delituosas praticadas, objetivando, com isso, desmantelá-la.
Por fim, Greco Filho[66] conceitua o agente infiltrado como sendo “um membro do corpo policial que, para desbaratar a atividade de grupos criminosos, ingressa no grupo e participa de suas atividades até a colheita de elementos probatórios suficientes para a persecução penal”.
Carlos[67] salienta ainda que o desmantelamento da organização criminosa de um modo geral deve compreender, pelo menos, alguns aspectos relevantes, ele os enumera da seguinte maneira:
- Identificação e prisão dos criminosos, inclusive de eventuais agentes públicos participantes do esquema delituoso;
- Identificação das fontes de renda da máquina criminosa;
- Identificação de eventuais pessoas jurídicas utilizadas para encobrir atividades delituosas perpetradas pela organização;
- Identificação da estrutura estabelecida para proceder à lavagem de capital;
- Identificação (e posterior apreensão) dos bens provenientes, direta ou indiretamente, da prática dos delitos cometidos pela organização;
- Recuperação de eventuais bens públicos desviados pela organização criminosa, dentre outros aspectos.
Assim, podemos conceituar agente infiltrado como sendo aquele agente de polícia que oculta sua verdadeira identidade e integra como membro de uma organização criminosa, com o fim de obter provas da atuação delituosa desta organização, além de identificar o líder para que desta forma se possa dissolver o grupo criminoso organizado.
Destarte é possível perceber que o agente infiltrado, ou undercover agent, é aquele policial, civil ou federal, que fazendo uso de uma autorização judicial, prévia e sigilosa, adentra em uma organização criminosa simulando ser parte desta, para que fazendo uso de sua identidade falsa de criminoso possa colher provas exclusivas para a persecução penal, compreendendo um dos aspectos supracitados.
3.2. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA SOBRE INFILTRAÇÃO POLICIAL
A figura do agente infiltrado em organizações criminosas foi levantada pela primeira vez no Brasil pela já revogada Lei nº 9.034/95, onde se previa em seu artigo 2º, inciso I, a infiltração de agentes de polícia especializada em quadrilhas ou bandos, vedada qualquer coparticipação delituosa, exceção feita ao disposto do artigo 288 do Código Penal, de cuja ação se pré-excluía, no caso, a antijuridicidade. Este dispositivo restou-se vetado pelo então Presidente da República da época, Fernando Henrique Cardoso, pelo fato de a infiltração policial não ser condicionada a uma prévia autorização judicial, como se pode verificar nas razões do Veto[68]:
O inciso I do art. 2º, nos termos em que foi aprovado, contraria o interesse público, uma vez que permite que o agente policial, independentemente de autorização do Poder Judiciário, se infiltre em quadrilhas ou bandos para a investigação de crime organizado.
Essa redação, como se pode observar, difere da original, fruto dos estudos elaborados por uma subcomissão, presidida pelo deputado Miro Teixeira, que tinha como relator o deputado Michel Temer, criada no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e Redação, que, de forma mais apropriada, condicionava a infiltração de agentes de polícia especializada em organização criminosa à prévia autorização judicial.
Além do mais, deve-se salientar que o dispositivo em exame concede expressa autorização legal para que o agente infiltrado cometa crime, preexcluída, no caso, a antijuridicidade, o que afronta os princípios adotados pela sistemática do Código Penal.
Em assim sendo, parece-nos que o inciso I do art. 2º deve merecer o veto do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, nos termos do art. 66, § 1º, da Constituição Federal, ressaltando, contudo, que este Ministério, posteriormente, encaminhará proposta regulamentando a matéria constante do dispositivo acima mencionado.
De fato o Projeto de Lei nº 3.516/89 apresentado pelo então deputado Michel Temer continha em seu artigo 8º à previsão de uma autorização judicial antecedente à infiltração policial, onde se dizia que:
Art. 8º. A infiltração de agentes de polícia especializada em organização criminosa, para investigação do crime organizado, será solicitada pela autoridade policial ao juiz competente, que autorizará desde que haja suficientes indícios da prática ou da tentativa das infrações penais presentes nesta Lei e a providência for absolutamente indispensável à apuração ou a assecuração das provas, dando ciência ao Ministério Público.
Importante salientar a problemática que o veto presidencial também sanou de imediato, qual seja a responsabilidade penal do agente infiltrado no caso de cometimento de delitos, sendo tal ação causa de antijuridicidade. Desta forma a Lei 9.034/95 foi sancionada sem previsão da infiltração policial.
Somente em 2001, com intuito de se fazer uso da figura do agente infiltrado, é que foi publicada a Lei nº 10.217/01 a qual inseriu no artigo 2º da Lei 9.034 o inciso V, onde estava previsto ser possível à infiltração de agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante autorização judicial estritamente sigilosa, enquanto durasse a infiltração. O novo disposto legislativo sobre o agente infiltrado no Brasil tratou de sanar os motivos que levaram o veto presidencial do artigo 2º, inciso I, da Lei 9.034, ou seja, positivou a prévia autorização judicial como condicionante para a infiltração em organização criminosa, estabelecendo que esta fosse sigilosa enquanto durasse a infiltração.
Entretanto, este dispositivo trouxe consigo várias problemáticas jurídicas, sendo a principal, o fato de autorizar agentes de inteligência se infiltrar, ferindo a Constituição Federal, pois esta dita em seu art. 144, que a atividade de investigação é exercida pela polícia judiciária, ou seja, pelas polícias civil e federal, além do fato de que se deixou uma lacuna legislativa, no sentido de que não se regularizou como seria feita a infiltração. Desta forma o legislador pátrio não apaziguou a brecha legal sobre o tema, uma vez que a norma somente cuidou de tratar quem poderia se infiltrar e quem poderia autorizar esta infiltração.
A figura do agente infiltrado foi tratada também pela Lei nº 10.409 de 11 de janeiro de 2002, onde continha em seu artigo 33, inciso I que era possível a “infiltração de policiais em quadrilhas, grupos, organizações ou bandos, com o objetivo de colher informações sobre operações ilícitas desenvolvidas no âmbito dessas associações”. Esta Lei acabou sendo revogada pela Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006 (Lei de Tóxicos), onde também fez menção à infiltração policial em seu artigo 53, inciso I, que estabelecia:
Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
I – a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes;
Desta forma é possível perceber um aspecto comum em todos os dispositivos legais acerca da figura do agente infiltrado: em todos eles não houve qualquer apontamento sobre o procedimento inerente à infiltração policial[69].
Diante da clara omissão legislativa sobre o tema o Congresso Nacional editou por meio do Projeto de Lei nº 6.578/09, e o Presidente da República sancionou a Lei nº 12.850/13, a qual tem por objeto a definição de organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal.
A Lei 12.850/13 inovou a ordem jurídica no que diz respeito à figura do agente infiltrado, uma vez que esta definiu em seção própria como seria o procedimento a ser adotado na infiltração, estabelecendo prazos para atuação do agente infiltrado, limite da infiltração, além dos direitos inerentes ao agente infiltrado. Carlos[70] diz que a Lei 12.850/13 finalmente “aclarou o panorama referente à infiltração policial, cuja imprecisão, como relatado alhures, possibilitava toda uma sorte de interpretações, pondo em risco, até mesmo, o princípio da segurança pública”.
3.3. INFILTRAÇÃO POLICIAL NA LEI 12.850/13
3.3.1. Requisitos Legais e Procedimentos
A Lei 12.850/13 com o fim de finalmente regularizar o instituto da infiltração policial como meio especial de obtenção de prova, positivou em seu artigo 10 e 11 os Requisitos Legais e os Procedimentos a serem adotados. Vale ressaltar que o Projeto de Lei do Senado nº 150/06 não previa a figura do agente infiltrado, tendo o então Senador Aloízio Mercadante, relator, apresentou em parecer os motivos da iniciativa de se regular tal instituto, como se pode verificar em:
A inclusão de disciplina sobre infiltração não estava prevista nem na redação original, por opção da Autora, nem no texto consolidado que apresentei, embora esta técnica tenha sido por mim arrolada no art. 3º da versão coligida. Mas, diante da importância da matéria decidi, após a audiência pública, dedicar-lhe uma seção específica, conforme já adiantara. A infiltração de agentes apresenta-se como medida fundamental no combate ao crime organizado. Por meio de tal instituto, será possível acompanhar todo o inter criminis da organização criminosa, bem como descobrir o seu modus operandi, resultados estes não alcançados por outras técnicas previstas em nossa legislação. Não custa repetir que esta medida de investigação é uma das mais invasivas e arriscadas; põe em risco a vida ou a integridade física do agente infiltrado e pode dar motivo à responsabilização civil do Estado, tanto pelo agente vir a ser vítima, como pelo fato de o agente poder gerar dano a outrem.
Desta forma, logo no caput do artigo 10 da Lei de Organizações Criminosas já se encontra um requisito antes não abordado, onde se diz que “A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada pelo Delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público”. Verifica-se que a Lei trouxe uma elevada importância à manifestação técnico-operacional apresentada pelo Delegado de Polícia, requisito antes não tratado pela Lei 9.034/95 para se instaurar uma infiltração policial, concedendo desta forma uma participação maior deste. A Lei deixa claro também, que representado o Delegado pela autorização de se fazer uso de uma infiltração, o Magistrado terá que ouvir o parquet.
Outro requisito, também no caput do artigo 10, diz respeito à manifestação técnica do delegado de polícia quando solicitada no curso da persecução penal. Salienta-se ainda que o Magistrado em decisão prévia, sigilosa, motivada e circunstanciada irá estabelecer os limites da infiltração. O critério da infiltração é eminentemente policial, dentro das técnicas de investigação e levará em conta de primordial a segurança do agente infiltrado, desta forma se justifica a autorização que estabelece os limites de atuação ser acompanhada de manifestação técnica do delegado de polícia [71].
A Lei que regula a infiltração policial no Brasil enfatiza em seu § 2º que “será admitida a infiltração se houver indícios de infração penal de que trata o art. 1º e se a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis” o que se pode interpretar que a infiltração é uma medida extremamente excepcional, uma vez que o dispositivo deixa claro que o meio especial de prova será utilizado no âmbito de infrações cometidas por organizações criminosas e sendo imprescindível que não se consiga prova por outro meio. A imprescindibilidade, enquanto requisito legal decorre, em última análise, do fato de ser a medida em tela extremamente invasiva da intimidade do indivíduo[72].
O caput do artigo 10 da Lei 12.850/13 deixa claro também que a infiltração será exercida por “agente de polícia em atividade de investigação” encerrando de vez o debate jurídico travado na antiga Lei de Organizações Criminosas sobre a constitucionalidade de se autorizar agentes de inteligência se infiltrar, uma vez que a Nova Lei somente fez menção a agente de polícia, compreendendo desta forma as civis e a federal.
A infiltração policial será de seis meses podendo ser prorrogada, se demonstrar necessidade, é o que dita o § 3º da Lei 12.850/13. A Lei é omissa no sentido de quantas renovações o magistrado pode homologar. Não obstante o silêncio legislativo, o Juiz deverá ao analisar ter cautela com eventuais pedidos de prorrogação, no sentido de se manter a segurança jurídica[73].
Destarte, é possível enumerar os seguintes requisitos legais e procedimentais para se utilizar o meio excepcional probatório, quais sejam[74]: a) agente policial (federal ou estadual); b) tarefa de investigação; c) autorização judicial motivada; d) indícios de materialidade; e) subsidiariedade; f) prazo máximo de 6 (seis) meses, podendo ser prorrogado; g) relatório circunstanciado; h) momento oportuno para a infiltração policial (durante o inquérito policial ou a instrução criminal).
3.3.2. Sigilo acerca das informações
Consta no artigo 12 da Lei 12.850/13 que “o pedido de infiltração será sigilosamente distribuído, de forma a não conter informações que possam indicar a operação a ser efetivada ou identificar o agente que será infiltrado”, além de constar no § 2º do mesmo artigo que “os autos contendo as informações da operação de infiltração acompanharão a denúncia do Ministério Público, quando serão disponibilizados à defesa, assegurando-se a preservação do agente”. Estas normas tem um caráter dúplice, na medida em que resguarda o sucesso da infiltração e concomitantemente protege o agente infiltrado.
É importante que aja uma ação conjunta entre o Delegado de Polícia, o Ministério Público e o Magistrado, no sentido de preservar o caráter sigiloso da infiltração, para tanto o Delegado deverá reduzir, ao máximo, o conhecimento acerca da operação a ser desencadeada. Destarte, somente os agentes que efetivamente forem empregados na missão poderão tomar conhecimento da infiltração e da representação junto ao Poder Judiciário. Desta forma, a Instituição Policial deverá criar normas internas no sentido de objetivar o devido sigilo da operação[75].
Nesse sentido, o membro do parquet também deverá reduzir, no âmbito da atuação institucional, o conhecimento acerca da operação policial que será feita, deixando somente membros a serem utilizados cientes da infiltração. No tramite do requerimento de infiltração policial, somente o servidor que será empregado na missão é que poderá ter acesso às peças sigilosas[76].
Ademais, o Poder Judiciário, também deverá criar mecanismos internamente com o fim de evitar que se vazem informações acerca da operação policial, e desta forma se efetive da melhor forma possível à infiltração.
3.3.3. Direitos do Agente Infiltrado
A Lei 12.850/13, que regulamenta procedimentos para se utilizar do instituto da infiltração policial em organizações criminosas, também tratou dos direitos do agente infiltrado tanto no curso da infiltração, como após a operação. Os direitos do agente infiltrado estão dispostos no artigo 14 da Lei de Organizações Criminosas, que dispõe:
Art. 14. São direitos do agente:
I - recusar ou fazer cessar a atuação infiltrada;
II - ter sua identidade alterada, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 9o da Lei no 9.807, de 13 de julho de 1999, bem como usufruir das medidas de proteção a testemunhas;
III - ter seu nome, sua qualificação, sua imagem, sua voz e demais informações pessoais preservadas durante a investigação e o processo criminal, salvo se houver decisão judicial em contrário;
IV - não ter sua identidade revelada, nem ser fotografado ou filmado pelos meios de comunicação, sem sua prévia autorização por escrito.
O inciso I tem natureza administrativa e significa que o agente policial não terá a obrigatoriedade de aceitar como ordem de superior hierárquico a missão de se infiltrar em uma organização criminosa, não podendo ser punido, direta ou indiretamente, pela recusa. Do mesmo modo este direito garante também ao agente infiltrado interromper sua participação na operação, sem prejuízo dos demais direitos que são arrolados no artigo, ou seja, ainda que haja interrupção por sua vontade, poderá ainda fazer uso da alteração de identidade por exemplo. A recusa ou a desistência não precisarão ser motivadas, tratando-se de ato livre de vontade do agente[77].
Os incisos II e III dizem respeito ao direito do agente infiltrado de ter sua identidade alterada e no, curso da infiltração, ter suas informações pessoais e profissionais preservadas, sendo regularizado pela Lei nº 9.807/99, que estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, dispondo em seu artigo 9º que em casos excepcionais e considerando as características e gravidade da coação ou ameaça, poderá a requerimento da pessoa, o conselho deliberativo encaminhar ao juiz competente para registros públicos o pedido para alteração de nome completo.
Este direito poderá ser estendido ao cônjuge, ascendentes, descendentes e dependentes, como se pode verificar no § 1º do artigo 9º da Lei 9.807/99. Cessada a ameaça ou coação poderá o agente infiltrado solicitar ao Juízo competente o retorno à situação anterior, com alteração para o nome original.
O agente infiltrado terá também o direito de não ter sua identidade revelada, nem ser fotografado ou filmado, sem sua autorização, o que levanta diversos debates jurídicos acerca do limite deste sigilo, no sentido principalmente deste poder ou não recusar atuar como testemunha na fase judicial, o que será analisado de forma mais detalhada em capítulo próprio.
3.3.4. Responsabilidade penal do agente infiltrado
Tema sempre recorrente acerca da infiltração policial é se o agente infiltrado poderá cometer infrações penais no curso da operação, e caso cometa, quais seriam os limites e qual seria a consequência deste ilícito. A problemática que já foi alvo de diversas teses jurídicas é delicada, uma vez que, autorizando o agente infiltrado a praticar ilícitos penais, o Estado estaria em verdadeira contradição, pois este deveria justamente evitar o cometimento destas, ao passo que, coibir, no trânsito da infiltração, o agente de cometer crimes mesmo que seja a atividade fim da organização criminosa, colocaria o policial em gravíssimo risco, uma vez que os membros desta organização desconfiariam do agente do Estado, e este poderia sofrer sérias represálias.
No texto inaugural da Lei 9.034/95 era previsto em seu artigo 2º, inciso I, parte final, a responsabilidade penal do agente infiltrado, dizendo que se este cometesse o delito previsto no artigo 288 do Código Penal seria excluída sua antijuridicidade. Na época o artigo fora vetado pelo fato de no artigo não constar prévia autorização judicial para se instaurar uma infiltração policial e pelo fato de que “o dispositivo em exame concede expressa autorização legal para que o agente infiltrado cometa crime [...], o que afronta os princípios adotados pela sistemática do Código Penal” [78]. Entretanto o Projeto de Lei 3.275/00, que viria a se tornar a Lei 10.217/01, a qual modificava os artigos 1º e 2º da Lei 9.034/95, dispôs no § 1º do inciso V do artigo 2º o mesmo texto que havia sido vetado, ou seja, que seria antijurídico o delito do artigo 288 do Código Penal cometido pelo agente infiltrado.
O legislador havia deixado uma enorme insegurança jurídica ao agente encoberto ao fazer ressalva apenas do crime objeto da infiltração da época, qual seja, o de quadrilha ou bando. Desta forma, o instituto iria ser algo totalmente desvantajoso para o agente infiltrado, pois além do fato de estar correndo constantemente risco de vida, pelo fato de a qualquer momento ser descoberto, ainda correria o risco de responder um processo criminal ao final da infiltração pelo fato de ter cometido eventuais delitos. Por conta disto, a Lei 10.217/01 acabou sendo promulgada sem o disposto do § 1º, do inciso V, do artigo 2º, fazendo com que a matéria na época fosse tratada pela doutrina e jurisprudência.
As Leis 10.409/02 e 11.343/06 também foram omissas sobre a possibilidade de o agente infiltrado cometer alguma infração penal e qual a consequência jurídica, caso cometesse. Pacheco[79] diz na época que “Inquestionável e pacífica é a situação: não houve permissão para que o policial eventualmente praticasse crimes. Tal evento permanece sem previsão legal e, ocorrendo, deverá ser submetido à apreciação judicial”.
O problema da lacuna legislativa sobre o tema não acabava neste ponto. Ocorria um enorme debate jurídico acerca da responsabilidade penal do agente infiltrado, pelo fato de que, se viesse a cometer uma infração penal por não haver outra alternativa, questionavam-se os doutrinadores: a conduta seria antijurídica pelo fato de o agente estar abarcado pelo estrito cumprimento do dever legal, causa de exclusão da ilicitude; ou seria inexigível conduta diversa pelo policial, causa de eliminação da culpabilidade?
Bitencourt apud Pacheco[80] diz que “Cremos, sob este aspecto e a depender, evidentemente de cada caso concreto, que, não obstante à conduta típica, estaria-se diante de um estrito cumprimento do dever legal se o ato praticado fosse rigorosamente necessário, a excluir a ilicitude” ao passo que Toledo apud Pacheco[81] afirma que:
[...] a inexigibilidade de conduta diversa é, pois, a primeira e mais importante causa de exclusão de culpabilidade e constitui um verdadeiro princípio de direito penal. Quando aflora em preceitos legislados, é uma causa legal de exclusão. Se não, deve ser reputada causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito.
Somente com a Lei 12.850/13 os debates finalmente restaram-se vencidos, uma vez que em seu artigo 13 disciplina que:
Art. 13. O agente que não guardar, em sua atuação, a devida proporcionalidade com a finalidade da investigação, responderá pelos excessos praticados.
Parágrafo único. Não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa.
Analisando o dispositivo, verifica-se que o legislador acertou ao transferir para a esfera da culpabilidade a conduta do agente infiltrado, visto que, se este agente foi instigado pelos demais membros ao cometimento de um delito e este se encontrasse abarcado pelo estrito cumprimento do dever legal, os demais membros também não poderiam ser punidos pelo fato, uma vez que o Brasil adota no concurso de pessoas a teoria da acessoriedade limitada[82].
Segundo esta teoria o partícipe somente poderá ser punido se o autor tiver cometido um fato típico e antijurídico, sendo desta forma, individualizado a culpabilidade.
Destarte, o agente infiltrado não será punido pelos crimes cometidos quando inexigível conduta diversa, ou seja, o legislador cuidou de afastar a culpabilidade do policial no sentido salvaguardar sua própria segurança, estando aparado pela inexigibilidade de conduta diversa, desde que demonstrado que não agiu com arbitrariedade[83].
Nota-se que o artigo cuidou do tema de forma exemplar, uma vez que o agente infiltrado responde pelos excessos praticados e concomitantemente o protege das arbitrariedades e coações cometidas pelos membros das organizações criminosas como testes para se convencerem de que o agente infiltrado não é um policial disfarçado. Desta forma o Magistrado, quando se tratar de crimes praticados no âmbito da infiltração, deverá analisar o caso concreto para que se possa verificar se o agente infiltrado agiu em excesso ou não.
Outra questão levantada por alguns doutrinadores é se o crime que ora é afastado a culpabilidade, seria o crime contido na Lei 12.850/13, qual seja o de Organização Criminosa, ou seria qualquer crime praticado pela organização. Sanches entende ser qualquer crime do qual seja como atividade fim da organização criminosa. Este entendimento parece ser mais razoável, pelo fato de que seria difícil se imaginar um agente infiltrado em uma organização criminosa da qual tem como atividade ilícita a lavagem de dinheiro e este se recusar a realizar tal delito sem sofrer alguma represália.
3.3.5. Cessação da Infiltração Policial
É importante mencionar o momento da cessação da operação de infiltração policial, pelo fato de o agente infiltrado poder sair desta organização criminosa sem o devido planejamento no âmbito da Instituição Policial, Ministério Público e Judiciário, fazendo com que esse possa sofrer represálias por parte dos membros da organização.
A Lei 12.850/13 infelizmente não tratou do tema, deixando a cargo da doutrina e jurisprudência fazer um estudo mais aprofundado sobre a questão. Nesse sentido Carlos[84] ao tratar do assunto leciona que o agente infiltrado ao sair da organização criminosa, além de ter sua identidade alterada ou protegida, como consta no artigo 14, deveria também ser concedida uma espécie de licença, de modo a justificar o seu desligamento, por mais algum tempo, da unidade de polícia judiciária.
O doutrinador também faz menção há seis tipos diferentes de cessação da operação de infiltração policial, quais sejam[85]:
A) Cessação Voluntária: diz respeito a termino da infiltração policial previsto no artigo 14, I, da Lei 12.850/13, a qual disciplina que o agente poderá, a qualquer tempo, fazer cessar a operação, independentemente de haver algum perigo mediato ou imediato à sua vida. Carlos faz menção que neste caso, deverá o Delegado de Polícia dar imediata ciência ao parquet e à autoridade judiciária competente, registrando, no relatório circunstanciado os motivos apontados pelo agente infiltrado para sua retirada.
Salienta-se que no PLS 150/06, em parecer proferido pelo então senador Aloizio Mercadante, destaca-se o entendimento de que a continuidade ou não da infiltração policial deverá ser, em ultima análise, do agente infiltrado, como se verifica em: ”Considerando que o agente infiltrado é o responsável direto pela execução da medida, entendo que ninguém melhor que ele para avaliar os riscos da continuidade da ação ou sua implementação” [86].
Entretanto para Carlos[87], a decisão do policial de fazer cessar a infiltração deverá ter alguma justificativa plausível, não podendo ser desarrazoada. Ademais caso seja motivada por razões inescrupulosas, o agente infiltrado não estará isento de eventual responsabilidade penal.
B) Cessação Urgente: Prevista no artigo 12, § 3º, da Lei 12.850/13, diz respeito ao caso de haver grande perigo iminente ao agente infiltrado, onde neste caso a operação será sustada mediante requisição do Ministério Público ou por representação do Delegado de Polícia, dando-se ciência ao parquet.
O disposto tem como objetivo resguardar a vida e a integridade física do agente infiltrado, para tanto a cessação é caracterizada como urgente, onde poderá fazer uso até mesmo de equipe tática de proteção e resgate[88].
C) Cessação por quebra de sigilo: Também previsto no art. 12, §3º, da Lei 12.850/13, onde na hipótese de o agente infiltrado vir a ser descoberto torna-se ainda maior o perigo enfrentado por este, e, por conseguinte, rebaixando o nível de eficácia da operação, desta forma não sendo razoável prosseguir com a infiltração.
D) Cessação por êxito operacional: Conceituado por Carlos, onde o doutrinador entende que, de forma lógica, obtendo o êxito na infiltração, ainda que antes do prazo máximo fixado na Lei, deverá resultar na imediata cessação da operação, uma vez que esta não se fará mais necessária.
Para tanto Carlos[89] salienta que “nada mais justificaria a permanência do agente infiltrado no âmbito da organização criminosa, posto que alcançada a finalidade do instituto”.
E) Cessação por expiração de prazo: Nos termos do art. 10, § 3º, da Lei 12.850/13, diz respeito ao fato de findar o prazo de seis meses previsto no dispositivo legal, sem prejuízo de eventuais renovações, desde que comprovada a necessidade. Desta forma, acabando-se o prazo estipulado pelo magistrado, a operação deverá ser cessada, o que, como leciona Carlos, deverá exigir algum planejamento por parte do delegado de polícia, de modo a preservar a identidade do agente infiltrado.
F) Cessação por atuação desproporcional: Segundo o art. 13, caput, da Lei 12.850/13, o agente deverá, em sua atuação, guardar a devida proporcionalidade com o fim da investigação, sob pena de responder pelos excessos praticados.
Desta forma, caso o agente infiltrado não se vincular ao dever de pautar sua conduta de acordo com o princípio da proporcionalidade, atuando com excessos durante a operação, poderá ensejar a cessação desta.