Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Jurisdição estatal e arbitragem

Agenda 01/09/2005 às 00:00

Não se ignoram as diferenças existentes entre o poder estatal e o arbitral. Enquanto a natureza do primeiro decorre do monopólio do Estado de impor regras aos particulares, através da autoridade, do poder e da soberania, o segundo é conseqüência da própria vontade das contratantes. Enquanto a jurisdição estatal se investe contra todos, a arbitragem apenas pode ser acionada pela vontade das partes. Embora ambivalentes, jurisdição estatal e arbitral possuem natureza, mecanismos e formas de atuar diversas, cujas relações podem causar estranheza e perplexidade ao operador do Direito.

Tais relações serão forçosas, pois, ainda que admitida a natureza jurisdicional da arbitragem1, a sentença arbitral resulta de atividade jurisdicional privada (natureza contratual), fazendo-se indispensável a sua introdução no ordenamento estatal antes que seus efeitos possam ser reconhecidos ou apoiados pelo Poder Judiciário2.

Para alcançar tal finalidade, adota-se um regime próprio às sentenças arbitrais estrangeiras, sujeitas à chancela do Supremo Tribunal de Justiça, dispensando-se tal controle homologatório das sentenças arbitrais proferidas em território pátrio, já equiparadas, quanto aos seus efeitos, aos títulos executivos de origem judicial3.

Embora a sentença arbitral doméstica dispense um controle estatal homologatório, o controle judiciário também se fará necessário para garantir-lhe a execução compulsória, não podendo as partes, no curso do procedimento, deixar de lado determinados requisitos legais da sentença arbitral, garantidores de sua plena eficácia junto ao poder estatal.

Da mesma forma, não obstante já se tenha dito que a arbitragem ideal é aquela transcorrida sem a interferência do Juiz togado, tendo o legislador se esforçado ao máximo para afastar a jurisdição estatal no procedimento arbitral4, em inúmeros casos a cooperação do Poder Judiciário se faz imprescindível ao árbitro, carente da coertio e da executio, exclusivos do poder de império, sem os quais não consegue tornar efetiva a sua tutela.

Assim, existirão ainda outras situações, nas quais se fará necessário o apoio do Juiz no curso do procedimento arbitral, como é o caso, v.g,, da execução específica da convenção de arbitragem (art. 7º da Lei de Arbitragem e art. 639. do CPC), da solicitação das medidas coercitivas e cautelares pelo árbitro (art. 22. da Lei de Arbitragem), da condução das testemunhas renitentes (art. 22, § 4º, da mesma Lei), da sobrevinda no curso da arbitragem de controvérsia acerca de direitos indisponíveis da qual dependa o julgamento do mérito (art. 25. da mesma Lei), e outras.

Previu o legislador, ainda, outra hipótese na qual será obrigatória a interferência estatal, desta vez após a conclusão dos procedimentos arbitrais. Trata-se da ação declaratória anulatória da sentença arbitral (art. 33. da Lei de Arbitragem) ― que poderá dar lugar à ação de embargos de devedor (art. 33, § 3º da mesma Lei) quando se tratar de sentença condenatória ― a ser ajuizada perante órgão do Poder Judiciário.

Como se viu, em apertada síntese, muitos são os pontos de contato entre esses dois mundos, o judicial e o arbitral, que por sua vez despertam a atenção dos estudiosos da arbitragem, na tentativa de responder satisfatoriamente à indagação de LA CHINA: "… sono, questi due mondi in contrasto tra loro, ed in tal caso quale deve prevalere sull´altro, o possono coesistere, e come ed a che condiozioni?" 5

Tendo como guarida o princípio da autonomia da vontade, os entusiastas da arbitragem têm defendido uma ampla liberdade arbitral, que não apenas propugna a extensão e a delegação dos poderes jurisdicionais do Estado ao árbitro6, mas que também relega institutos, conceitos e procedimentos cuidadosamente amadurecidos ao longo de mais de um século pelo Direito Processual Civil na jurisdição estatal. Assim, procura-se deixar o Direito Processual Civil unicamente para o Poder Estatal e, ao contrário, livre a arbitragem para os seus contratantes.

Paradoxalmente, não raro, os sujeitos do procedimento arbitral se ressentem de uma maior segurança jurídica, indagando quais institutos valeriam a pena importar do Direito Processual Civil, que não apenas aqueles já existentes, decorrentes do due process of law.

Talvez seja por isso que, não obstante o esforço do legislador na redação da Lei de Arbitragem e a abundante doutrina na defesa de sua preservação, "feito o compromisso ou aprovada a cláusula, registra-se uma ampla e intensa tendência a fugir da arbitragem, quase como sujeitos arrependidos de ter ousado tanto."7

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Em outros casos, a mera irresignação com uma sentença arbitral desfavorável leva as partes de volta à jurisdição estatal.

Assim, mesmo após um procedimento arbitral não tão célere quanto imaginam os teóricos da arbitragem, a parte vencida recorre ao Poder Judiciário para pleitear a anulação da sentença arbitral (art. 33. da Lei de Arbitragem), estendendo ainda mais o conflito no tempo, aumentando o custo da tutela, abrindo mão de um julgamento especializado, do sigilo e da confidencialidade8, enfim, abdicando-se de todas as vantagens oferecidas pelo procedimento arbitral.

No Brasil, a mais nobre doutrina já se manifestou contra a liberalização do controle jurisdicional, com as partes se socorrendo do Judiciário a cada sentença arbitral adversa, o que terminaria por suprimir os benefícios do procedimento arbitral9.

Com indisputável autoridade, Cândido Rangel Dinamarco repudia "a facilidade na aceitação pelo poder estatal dos argumentos da parte que vem impugnar uma sentença arbitral, sem a preocupação por um equilíbrio entre o estatal e o convencional e sem valorizar a vontade das partes como fonte da decisão que depois uma delas veio a criticar. A prevalecer essa facilidade para a invalidação de sentenças arbitrais, poder-se-ia perguntar, como perguntou um juiz da Corte d’Apello de Gênova: `mas por que as partes recorrem à arbitragem, se sempre voltam a nós?´" 10

Em países onde o uso da arbitragem é mais avançado, os juízes desempenham admirável papel de cooperação, prestigiando o princípio da autonomia das vontades e da boa-fé, em defesa do instituto da arbitragem (in dubio pró-arbitragem).

Felizmente, por todo o país multiplicam-se os tribunais arbitrais, workshops e cursos especializados sobre o tema, indispensáveis ao desenvolvimento profícuo de uma consciência arbitral, capaz de realizar amplamente os seus propósitos, com a ajuda da jurisdição estatal, se necessária.

Espera-se que árbitros, juízes e partes estejam conscientes do dever de cooperação mútua, sem o qual não será possível a atuação proveitosa dos primeiros. A Jurisdição, enquanto fenômeno de pacificação social, deve unir suas forças para melhor satisfazer os anseios de seus jurisdicionados.


BIBLIOGRAFIA

BAYER, Alex Kalinski. "Arbitragem e Jurisdição", in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 19, São Paulo: Ed. RT, 2003.

BERMUDES, Sergio. "Medidas Coercitivas e Cautelares no processo arbitral", in MARTINS, Pedro A. Batista et GARCEZ, José Maria Rossani. Reflexões sobre arbitragem, São Paulo: Editora LTR., 2000.

CAPACHUZ, Rozane da Rosa. Arbitragem: alguns aspectos do processo e do procedimento na Lei nº 9.307/96, São Paulo: Editora de Direito, 2000.

CAPPELLETTI, Mauro. "Os métodos alternativos de solução de conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça", in Revista Forense, vol. 326, Abr/Mai/Jun, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1994.

CARMONA, Carlos Alberto. "A Arbitragem no Brasil no terceiro ano de vigência da Lei nº 9.307/96", in PUCCI, Adriana Noemi. Aspectos atuais da arbitragem, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001.

____________. "A experiência sem estatísticas", in Aspectos atuais da Arbitragem, Rio de Janeiro: Forense, 2001.

____________. "Arbitragem em Juizados especiais: uma miragem?", in Aspectos fundamentais da Lei de Arbitragem, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999.

____________. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9.307/96, São Paulo: Malheiros Editores.

____________. "Das boas relações entre os juízes e os árbitros", in Revista de Processo nº 87/88.

CASELLA, Paulo B. Arbitragem – lei brasileira e praxe internacional, 2ª ed., revista e ampliada, São Paulo: Ed. LTR.

DINAMARCO, Candido Rangel. "Limites da Sentença Arbitral e de seu Controle Jurisdicional", in Reflexões sobre arbitragem, São Paulo, 2000.

____________. A instrumentalidade do processo, 3ª ed., revista e atualizada, São Paulo: Malheiros Editores, 1993.

FERREIRA NETTO, Cássio Telles. "Arbitragem: uma tecnologia de ponta", in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem nº 22, São Paulo: Editora RT, 2003.

FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem, jurisdição e execução, 2ª ed., São Paulo: RT, 1999.

FOUCHARD, Phillipe; GAILLARD, Emmanuel e GOLDMAN, Berthold. "On international arbitration", in Kluwer Law International, 1999.

GARCEZ, José Maria Rossani. "Homologação de sentenças arbitrais estrangeiras – Direito brasileiro e comparado", in Reflexões sobre arbitragem, São Paulo: Editora LTR, 2000.

GRAU, Eros Roberto. "Da arbitrariedade de litígios envolvendo sociedades de economia mista e da interpretação de cláusula compromissória", in Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem nº 18, São Paulo: Editora RT, Out-Dez/2002.

KROETZ, Tarcísio Araújo. Arbitragem: Alguns aspectos do processo e do procedimento na Lei nº 9.307/96, São Paulo: Ed. RT, 1997.

LA CHINA, Sergio. L´´Arbitrato, Milano: Dott A. Giuffri Editori, 1995.

LEMES, Selma M. Ferreira. "Os princípios jurídicos da lei de arbitragem", in Aspectos fundamentais da lei de arbitragem, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999.

LOBO, Carlos Augusto da Silveira. "Arbitragem interna e internacional" in ALMEIDA, Ricardo Ramalho (org.) Uma Introdução à Arbitragem Com. Int., 1ª ed., Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003.

____________ e NEY, Rafael de Moura Rangel. "Revogação de medida liminar judicial pelo juízo arbitral, in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 12, Ano 4, ABR-JUN/01, São Paulo: Revista dos Tribunais.

MARTINS, Pedro A. Batista. "O Poder Judiciário e a arbitragem. Quatro anos da Lei 9.307/96", in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 9, São Paulo: Editora RT, 2000.

____________. "A recepção nacional às sentenças arbitrais prolatadas no exterior", in Aspectos fundamentais da lei de arbitragem, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999.

____________. "O Poder Judiciário e a arbitragem. Quatro anos da Lei 9.307/96", in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 10, São Paulo: Editora RT, 2000.

____________. "O Poder Judiciário e a arbitragem. Quatro anos da Lei 9.307/96", in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 12, São Paulo: Editora RT, 2001.

____________. "O Poder Judiciário e a arbitragem. Quatro anos da Lei 9.307/96", in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 13, São Paulo: Editora RT, 2001.

____________. "Da ausência de poderes coercitivos e cautelares do árbitro", in Aspectos fundamentais da Lei de Arbitragem, Rio de Janeiro: Forense, 1999.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. "La nuova legge brasiliana sull´´ arbittrato´´, in Rivista dell´´Arbitrato, fasc. 1, 1997.

____________. "Estrutura da sentença arbitral", in MARTINS, Pedro A. Batista et GARCEZ, José Maria Rossani. Reflexões sobre arbitragem, São Paulo: Editora LTR., 2000.

STRENGER, Irineu. "Alternative Dispute Resolution", in Aspectos Atuais da Arbitragem, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2001.

VALENÇA FILHO, Clávio. "Sentença arbitral inexistente", in MARTINS, Pedro A. Batista et GARCEZ, José Maria Rossani. Reflexões sobre arbitragem, São Paulo: Editora LTR., 2000.

WALD, Arnoldo. "Os meios judiciais do controle da sentença arbitral", in Revista de arbitragem e mediação, nº 1, São Paulo: Ed. RT, 2004.

ZANFERDINI, Flavia de Almeida Montingelli. "A crise da justiça e do processo e a garantia do prazo razoável", in Revista de Processo, nº 112, São Paulo: Ed. RT, 2003.


Notas

01 DINAMARCO, Cândido Rangel. Em seu artigo "Limites da Sentença Arbitral e de seu Controle Jurisdicional", in Reflexões sobre arbitragem, São Paulo, 2000.

02 VALENÇA FILHO, Clávio. Em seu artigo "Sentença arbitral inexistente", in MARTINS, Pedro A. Batista et GARCEZ, José Maria Rossani. Reflexões sobre arbitragem, São Paulo: Editora LTR., 2000.

03 Conforme prevê o art. 584, VI, do Código de Processo Civil, com a alteração introduzida pela Lei nº 9.307/96.

04 Sem pretender aqui esgotar todas as hipóteses onde o legislador procurou abolir a intervenção estatal, merece destaque a eliminação da necessidade da homologação do laudo arbitral (art. 18. da Lei de Arbitragem), o fim do pesadelo da exigência da dupla homologação da sentença arbitral estrangeira perante o Supremo Tribunal Federal, a eficácia conferida à cláusula compromissória (e não apenas ao compromisso arbitral) e os poderes conferidos ao árbitro para decidir acerca de sua própria competência, da validade e da eficácia da convenção de arbitragem (art. 8º da Lei de Arbitragem), sem necessidade da intervenção do Poder Judiciário.

05 LA CHINA, Sergio. L´´Arbitrato, Milano: Dott A. Giuffri Editori, 1995, p. 10., primeramente citado entre nós por Cândido Rangel Dinamarca, em seu artigo "Limites da Sentença Arbitral e de seu Controle Jurisdicional", in Reflexões sobre arbitragem, São Paulo, 2000.

06 MARTINS, Pedro, em seu artigo "O Poder Judiciário e a Arbitragem", in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem., p. 317, nº9, RT.

07 DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit., citando "La China", p. 341. "a Chinao "idade"e a tentativa de alargar ilimitadamente a as impugnaçnsores.

08 DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit., pp"a Chinao "idade"e a tentativa de alargar ilimitadamente a as impugnaçnsores.330/331.

09 Apenas para ilustrar, causa espanto decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (agIn 142.683-1 – j.28.06.2003), na qual se concedeu liminar para suspender a eficácia de cláusula arbitral inserida em contrato firmado entre a UEG Araucária Ltda. e a Companhia Paranaense de Energia Elétrica – COPEL. Determinou ainda o acórdão a aplicação de multa no caso da continuação do procedimento arbitral, já instaurado perante a CCI, com sede na França, Paris, em flagrante violação do princípio da competência-competência (art. 8º da Lei) e da capacidade da sociedade de economia mista (COPEL) firmar cláusula arbitral.

10 DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit., p. 341.

Sobre o autor
Rodrigo Tannuri

Advogado do Escritório de Advocacia Sergio Bermudes no Rio de Janeiro/RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TANNURI, Rodrigo. Jurisdição estatal e arbitragem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 792, 1 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7218. Acesso em: 23 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!