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Da (im)possibilidade de o inimputável figurar como sujeito passivo no crime de calúnia

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Busca-se uma resposta à problemática posta em análise acerca da possibilidade ou não de o inimputável figurar com sujeito passivo do crime de calúnia.

Resumo: A presente pesquisa tem por objetivo o estudo sobre o alcance da tutela penal protetiva ao inimputável, especificamente no tocante ao crime de calúnia. Inicialmente, faz-se uma análise dos aspectos constitucionais que têm relação com o tema. Em seguida, faz-se uma análise do crime de calúnia no ordenamento jurídico pátrio e do instituto jurídico da inimputabilidade penal, conceituando-se seus principais elementos. Por fim, abordando o tema central, apresenta-se uma resposta à problemática posta em análise levando-se em consideração as duas possíveis teorias do crime adotadas pelo legislador no Código Penal brasileiro, de maneira que se conclui se a condição jurídica do inimputável é capaz de impedi-lo de ocupar o polo passivo do crime de calúnia ou se independentemente dessa condição, esse sujeito deve ter sua honra protegida.

Palavras-chave: Inimputável, (im)possibilidade, figurar, polo passivo, crime de calúnia.


1 INTRODUÇÃO

O tema do presente trabalho traz à baila o questionamento sobre a (im)possibilidade de o inimputável figurar no polo passivo do crime de calúnia, de acordo com o que prevê o ordenamento jurídico pátrio. Esse tema está localizado, juridicamente, no âmbito do direito penal, não obstante encontra relação com o direito constitucional.

Há de se destacar que na seara jurídica brasileira, principalmente no campo doutrinário, existe significativa discussão sobre o assunto, o que acaba por gerar certa instabilidade jurídica acerca do alcance da tutela penal protetiva prevista no artigo 138 do Código Penal, ao inimputável. A partir dessa consideração é que se expende a necessidade de abordar esse tema, visando a uma consolidação da solução apresentada neste trabalho.

Desse modo, iniciar-se-á a abordagem do tema tratando dos aspectos constitucionais que o rodeiam, explorando princípios e direitos previstos na Constituição pátria, afetos à problemática posta em discussão, bem como se tais princípios e direitos serão lesados ou efetivados dependendo da resposta ao questionamento realizado.

Na sequência, far-se-á uma análise dos principais aspectos do crime de calúnia previstos no ordenamento jurídico brasileiro e uma abordagem da inimputabilidade penal, de maneira que se permita compreender a resposta dada ao questionamento feito através do tema, que se faz de forma argumentativa justamente no capítulo seguinte e, de forma mais objetiva, na conclusão do trabalho.

Entretanto, antes da apresentação da resposta à pergunta do trabalho, mas no capítulo em que ela é feita, faz-se uma demonstração de diversos fatores referentes ao tema, como a inexistente pacificidade na doutrina, a aplicação prática do entendimento majoritário existente e da relevância da teoria do crime, adotada no Código Penal brasileiro.

A propósito, nesse ponto, é importante destacar a existência de dois dos principais entendimentos doutrinários sobre o tema, os quais são, em verdade, o fator que alimenta a discussão, objeto deste trabalho, justamente por serem divergentes, embora haja disparidade da aplicação de ambos, definindo-se em entendimentos majoritário e minoritário.

Desse modo, far-se-á uma análise dos entendimentos supramencionados, apresentando seus argumentos e demonstrando a inexistência de pacificidade sobre o tema, bem como qual deles pode ser indicado como dominante.

A partir desses entendimentos, apresentar-se-ão soluções para a problemática em análise, as quais dependerão da teoria do delito adotada no Código Penal brasileiro, questão a ser abordada de forma minuciosa. Essas soluções fundamentam-se tanto em argumentos legais e constitucionais, como em argumentos morais e de política criminal.

Feitas as considerações necessárias, apresentar-se-á uma resposta sobre a possibilidade ou não de que o inimputável figure no polo passivo do crime de calúnia.

Por fim, vale tecer consideração quanto à metodologia utilizada. Nesse ponto, salienta-se que o trabalho ora apresentado é do tipo bibliográfico e documental, uma vez que suas fontes, fundamentalmente, são constituídas pela literatura jurídica, assim como por documentos legais. Além disso, sua abordagem e técnica de processamento de dados é quantitativa, pois visa à apreensão de significados e valores que emergem dos dados analisados, assim como a totalidade da literatura consultada. Por outro lado, também vale mencionar que se utilizou do método teórico, por meio de jurisprudências, doutrinas e a legislação pertinente.


2 ASPECTOS CONSTITUCIONAIS SOBRE O TEMA

Neste capítulo, serão abordados os princípios e direitos constitucionais afetados pelo tema, bem como da importância desses institutos para o ordenamento jurídico e as consequências negativas relativas aos mesmos que a omissão do Estado, na proteção da honra do inimputável, pode desencadear.

Inicialmente, vale ressaltar que a Constituição da República Federativa do Brasil é a lei maior do ordenamento jurídico pátrio e como tal, tem preponderância sobre todas as normas infraconstitucionais que integram o ordenamento jurídico que está sob sua égide. Nesse sentido, leciona Luís Roberto Barroso: “A Constituição, portanto, é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema e, como consequência, nenhum ato jurídico pode subsistir, validamente, se for com ela incompatível”1.

Nota-se, portanto, que qualquer norma jurídica que integra ou visa a ingressar no ordenamento jurídico pátrio, deve ser compatível com os preceitos previstos na Constituição Federal, não podendo contrariá-la ou limitar direitos por ela garantidos, sem que tenha sua permissão expressa para tanto, sob pena de a aludida norma não ter validade em nosso ordenamento jurídico.

Destarte, é possível afirmar que a Constituição Federal é dotada de supremacia em nosso ordenamento jurídico.

Vale dizer, nesse contexto, que a Constituição Republicana Brasileira estabelece normas jurídicas fundamentais para a constituição, organização e funcionamento de um Estado, circunstâncias estas que garantem, no ordenamento jurídico, o seu protagonismo.

Nesse contexto, salienta-se que os princípios nada mais são que uma espécie de norma jurídica, bem como é regra. Essa se diferencia daquela por diversas características, porém a mais marcante é o modo de aplicação. Enquanto a regra prevê comandos definitivos e de cumprimento obrigatório, o princípio indica uma direção, um caminho a ser seguido diante de determinada situação que afete o mundo jurídico2.

Entretanto, o fato de serem os princípios, um norteador no ordenamento jurídico e não preverem um mandamento específico, como prevê a regra, não significam que são inferiores a esta ou que não tenha aplicação obrigatória. Em verdade, os princípios constitucionais apenas não estabelecem imperativos específicos, porém preveem mandamentos obrigatórios e amplos, alguns aplicados em todo ordenamento jurídico.

Dessa forma, por preverem imperativos basilares e fundamentais no ordenamento jurídico, os princípios, especialmente os constitucionais, possuem caráter preponderante diante das regras, já que visam a garantir a proteção bens jurídicos essenciais para a sociedade, bem como a efetivação de direitos fundamentais.

Aliás, é justamente por esse motivo, que no pensamento jurídico contemporâneo, o princípio é classificado como norma, já que era tido como mera fonte secundária e subsidiária do direito, sem caráter normativo3.

Assim, quanto à sua amplitude, o princípio continua sendo um norteador, já que prevê mandamentos aplicáveis em vários ramos do direito e em diversas situações jurídicas. No entanto, quanto à sua força, deixa de ser um entendimento de aplicação facultativa e passa a se tornar um mandamento, ante sua força normativa. Ressalta-se, que é justamente por essa razão (força normativa e conteúdo basilar dos princípios) que no direito contemporâneo, diante do caso concreto, é possível deixar de lado a regra, que é norma específica e aplicar o princípio, que é norma genérica.

Além disso, a aplicação da regra apenas é permitida e considerada obrigatória porque é específica, bem como porque há uma presunção jurídica de que foi elaborada respeitando os princípios basilares do ordenamento jurídico, em especial, os constitucionais.

Sobre a influência dos princípios constitucionais como normas basilares no ordenamento jurídico, leciona Gilmar Mendes:

Valendo‐se de outro ângulo, a separação entre regras e princípios é sugerida como sendo devedora do critério da importância da norma para o conjunto do ordenamento jurídico, especialmente sob o aspecto de ser a norma o fundamento de outras normas, quando então integraria a modalidade do princípio4.

Portanto, vê-se que os princípios constitucionais são normas jurídicas amplas e dotadas de conteúdos jurídicos de grande valor no ordenamento jurídico pátrio, que norteiam a aplicação do direito e que gozam de aplicação obrigatória.

Por conseguinte, demonstrada a importância dos princípios constitucionais no ordenamento jurídico pátrio, vale citar quais são afetos ao tema.

Nesse contexto, inicialmente, cita-se o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o qual tem alta valoração em nosso ordenamento jurídico.

A dignidade da pessoa humana é princípio de natureza constitucional, tratado no ordenamento jurídico pátrio com essencialidade, conforme salienta Walber de Moura Agra:

Ela é a base do ordenamento jurídico, seu elemento central, como dispõe a Constituição alemã de 1949 ao afirmar que a dignidade da pessoa humana se configura inviolável. Dessa centralidade advém que nenhuma norma jurídica pode denegrir seu conteúdo essencial, o homem é considerado como o valor mais importante do ordenamento jurídico, tornando-o vetor paradigmático para a interpretação das demais normas e valores constitucionais5.

Vê-se, então, que se trata de princípio basilar do ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista a importância de seu conteúdo. Além disso, é possível notar que a dignidade humana, enquanto princípio constitucional, tem ampla abrangência e aplicação generalizada, eis que atua em todas as áreas do direito, visando a garantir-se a todo ser humano.

À prova dessa importância, o poder constituinte originário deu à dignidade humana o status de fundamento do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, conforme previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.

Essa alta valoração dada à dignidade humana, na Constituição Federal Brasileira, foi influenciada por um movimento ocidental, que, em decorrência da infeliz experiência experimentada durante a Segunda Guerra Mundial, consolidou tal valor (dignidade humana) como consenso no mundo ocidental6.

A conceituação desse princípio pode se diferenciar de acordo com a doutrina constitucionalista consultada, entretanto, tem-se de maneira quase unânime entre os constitucionalistas, que a dignidade humana é uma qualidade intrínseca inerente a todo e qualquer ser humano (inclusive aos inimputáveis), o que significa dizer que “[...] o ser humano é dotado de dignidade pelo simples fato de ser humano, sem necessitar de pertencer a algum grupo social, raça ou religião”7, conforme defendia Kant.

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Dessa forma, é possível afirmar que a dignidade da pessoa humana é um atributo valorativo do qual todo ser humano é titular, que expressa: ser o homem (ser humano) o objeto e o fundamento da atividade pública; que define que o Estado existe para o ser humano e não o contrário; que garante a proteção estatal de bens jurídicos e direitos considerados como essenciais para uma vida de qualidade, ou melhor dizendo, para uma vida digna8. A título de exemplo, vale citar os bens jurídicos da vida e da saúde, aos quais a proteção estatal é tida como essencial no ordenamento jurídico pátrio, bem como o direito ao lazer, à educação, ao trabalho e à cultura, como direitos essenciais englobados pelo princípio da dignidade da pessoa humana9.

O direito à honra, igualmente, não é deixado de lado pelo princípio da dignidade humana. É, também, um dos diversos direitos garantidos no ordenamento jurídico brasileiro ao homem (ser humano), englobado no conceito e na proteção constitucional da norma jurídica representada por esse princípio, conforme explica Najibi Slaibi Filho: “O princípio da dignidade é reafirmado no art. 5º, incisos III (ninguém será́ submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante) e X (inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas) [...]”10.

Dessa forma, sendo a honra valor abrangido pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a ofensa àquela, por consequência, também ofende tal princípio.

Pois bem. É nesse momento que se depreende que a não proteção da honra do inimputável, pelo Estado, ofende a dignidade desse sujeito.

Nesse contexto, vale dizer que a honra tem status de direito fundamental no ordenamento jurídico pátrio e está prevista no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, que estabelece claramente que se trata de um bem jurídico inviolável. Assim, sendo a honra um direito fundamental inviolável, abrangido pelo valor normativo da dignidade humana previsto na Constituição Federal, por qual razão a sua violação não deve ser reprovada pelo direito penal quando o titular desse direito se tratar de um inimputável?

Faz-se tal questionamento, justamente porque entre as duas correntes doutrinárias que cercam o tema desse trabalho, uma delas defende não ser possível a proteção da honra do inimputável quando esse for sujeito passivo do crime de calúnia, conforme será demonstrado em momento oportuno.

Obviamente, direito algum no ordenamento jurídico pátrio é absoluto, sendo possível a flexibilização de um direito quando conflitar com outro que, perante os preceitos basilares da Constituição Federal, tenha maior importância no ordenamento jurídico ou quando a proteção de um direito em detrimento de outro seja de maior conveniência em determinada situação jurídica.

Entretanto, no crime de calúnia não é possível identificar qualquer uma dessas circunstâncias. O que se nota, em verdade, é que o entendimento pelo qual o inimputável não deve ter sua honra protegida no crime de calúnia surge de uma interpretação equivocada do dispositivo legal que prevê a conduta incriminadora, interpretação que cria uma restrição que não foi prevista pelo legislador. Vê-se, então, que tal restrição inibe a efetivação de um direito fundamental (honra), sem apresentar qualquer justificativa idônea. Portanto, não compatível com o que prevê o princípio da dignidade da pessoa humana. Logo, se o aludido entendimento não é compatível com o referido princípio, não deve ser capaz de restringir a proteção da honra do inimputável.

Ou por outra, vale dizer que mesmo que se fosse claro o aludido dispositivo legal no sentido de não ser possível a proteção da honra do inimputável pelo motivo trazido pela corrente doutrinária apontada ou por qualquer outro motivo meramente formal, criado com base em interpretações e conceitos jurídicos que inibam o direito do inimputável de ter sua honra protegida, essa norma, notadamente, seria incompatível com o que prevê o princípio da dignidade humana e, igualmente, deveria ser cassada.

Isso porque, de nada adianta dar valor de norma à dignidade humana e permitir que meras interpretações errôneas e equivocadas, que introduzem restrições para o alcance da tutela penal a determinado sujeito que a própria lei pertinente não criou, retire a eficácia desse valor constitucional. O mesmo entendimento se aplicaria, vale dizer, se o artigo 138 do Código Penal previsse (expressa ou implicitamente) a não abrangência do inimputável à tutela penal, vez que as normas infraconstitucionais não podem criar restrições à direitos fundamentais constitucionalmente garantidos (honra), principalmente quando esses estão sob o crivo de um princípio basilar no ordenamento jurídico pátrio, como é a dignidade da pessoa humana.

Logo, havendo entendimento de exclusão do inimputável da proteção penal de sua honra quando se encontrar no polo passivo do crime de calúnia, seja por mero entendimento equivocado derivado do texto do artigo 138 do Código Penal ou por previsão expressa de tal discriminação, mesmo diante disso, deverá o inimputável ter sua honra protegida quando for caluniado, pela força normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, já que tal discriminação é incompatível com tal princípio e, por consequência, é inconstitucional.

Vale ressaltar, também, que a não efetivação da proteção honra do inimputável no crime de calúnia, por adoção do mencionado entendimento doutrinário ofende o Princípio da Legalidade, previsto no artigo 5º, inciso XX, da Constituição Federal.

Conforme se pode notar, menciona-se o Princípio da Legalidade aplicado de forma ampla, em todo o ordenamento jurídico pátrio, não se confundindo esse com o princípio da legalidade específico do direito penal (art. 5º, XXXIX, CF), já que a ofensa se dá ao princípio geral.

Ressalta-se, entretanto, que a ofensa ao Princípio da Legalidade é identificada por uma interpretação analógica, vez que o texto legal permite tal interpretação, porém não a estabelece de forma expressa.

Segundo prevê o inciso XX, do artigo 5º, da Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”11.

Pois bem, embora o referido dispositivo legal expresse que nenhuma pessoa será obrigada a fazer ou deixar de fazer algo, sem que seja obrigada por lei, este enunciado deve ser interpretado de forma extensiva, abrangendo, assim, a proteção de direitos. Nesse sentido, ao tratar do princípio da legalidade, esclarece Nagib Slaibi Filho: “Qualquer comando estatal, para restringir direitos ou impor condutas, só́ vale se tiver apoio nas Constituições e nas leis elaboradas segundo a Constituição”12.

E acrescenta: “O comando constitucional, decorrente do liberalismo político e do individualismo filosófico, significa que a liberdade individual, isto é, o poder de o indivíduo alcançar os espaços necessários para seu desenvolvimento, só́ pode ser limitado por lei”13.

Dessa forma, nota-se que o princípio geral da legalidade não deve ser interpretado de forma literal, mas extensiva, prevendo tão somente o direito de cada cidadão de fazer tudo que a lei não proíbe ou deixar de praticar determinada conduta apenas porque a lei proíbe, mas, também, prevendo o direito de toda pessoa de não ser privada de seus direitos, senão em virtude da lei.

É nesse ponto, pois, que se evidencia a lesão ao princípio da legalidade com a adoção da interpretação dada pela mencionada corrente doutrinária ao previsto no artigo 138 do Código Penal, já que essa corrente defende a privação da proteção da honra do inimputável, mesmo inexistindo qualquer previsão legal nesse sentido e qualquer distinção de tratamento ou exigência quanto ao sujeito passivo no dispositivo legal supramencionado.

Dessa forma, se apenas a lei pode inibir a proteção de um direito, não poderá uma interpretação equivocada fazer o papel da lei.

Vale salientar, ainda, que a ausência de proteção da honra do inimputável também fere o princípio constitucional da Segurança Jurídica, o qual está previsto no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, que estabelece que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”14.

Da dicção do dispositivo legal supracitado, é possível notar que no ordenamento jurídico pátrio, lei alguma pode prejudicar o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido. Além disso, percebe-se que é justamente a proteção desses três elementos que representa o princípio da segurança jurídica.

Não obstante, conforme demonstrar-se-á a seguir, embora o Princípio da Segurança Jurídica comporte três elementos, apenas um deles interessa ao tema desse trabalho, qual seja, o direito adquirido.

Em regra, quando se fala de direito adquirido, diz respeito à aplicação temporal de uma norma que garantia um direito e foi suprimida. Aliás, é nesse sentido que Antônio Fernando Pires, ao conceituar o direito adquirido, diz que ele é “[...] o direito definitivamente incorporado ao patrimônio do titular [...]”15. E exemplifica: “[...] aos 65 anos o homem tem o direito adquirido de se aposentar”16.

No entanto, em relação ao tema em questão, o direito adquirido deve ser interpretado de forma mais abrangente. No exemplo dado por Antônio Fernandes Pires, um homem adquiriu o direito de se aposentar porque alcançou os 65 (sessenta e cinco) anos de idade quando estava em vigência uma lei que lhe garantia esse direito à aposentadoria.

No caso em questão, vê-se que embora lhe fosse garantido o direito de se aposentar, o homem só incorporou ao seu patrimônio esse direito quando preencheu o requisito exigido na lei (idade de 65 anos). A partir desse momento, mesmo entrando em vigor nova lei que altere a lei vigente àquela época, que lhe garantia o direito de se aposentar com 65 (sessenta e cinco) anos de idade, aumentando a idade mínima para a aposentadoria, por exemplo, em virtude do Princípio da Segurança Jurídica e seu elemento do direito adquirido, o sujeito do exemplo citado não poderá ter seu direito à aposentadoria suprimido.

No caso do presente trabalho, o direito em pauta é o direito à honra do inimputável. Esse direito, em sua amplitude (não só em relação ao inimputável, mas a todas pessoas humanas), tem status de direito fundamental, que é gênero dos direitos de maior importância previstos na Constituição Federal e que tem como espécies os direitos e deveres individuais e coletivos, direitos sociais e direitos políticos17. Além de ser direito fundamental18, está abrangido também pelo rol de direitos individuais19 e como tais, não pode ser suprimido da Constituição Federal, já que é tido no ordenamento jurídico pátrio como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, inciso IV, da CF)20.

Dessa maneira, por se tratar a honra de um direito fundamental, inerente à pessoa humana, não só a garantia desse direito como também a incorporação definitiva ao patrimônio de direitos do indivíduo deve acontecer a partir do nascimento deste, vez que é a partir desse momento que ele adquire personalidade jurídica e começa a viver em sociedade, necessitando, portanto, da proteção de seus direitos fundamentais, justamente pelo caráter essencial que eles possuem.

Nesse sentido, leciona Antônio Fernando Pires:

Os Direitos Fundamentais, realmente, têm vinculação com as qualidades inerentes do ser humano. Não importam as riquezas do homem, mas seus atributos enquanto ser (ontologia). Seus direitos são respeitados apenas e tão somente porque é homem. Homem sexuado ou assexuado. Homem pardo ou não. Homem ou mulher21.

Portanto, é possível dizer que os direitos fundamentais nascem com o ser humano e, por esse motivo, é nesse momento que são incorporados ao patrimônio de direitos juridicamente protegidos do indivíduo. Logo, a partir desse entendimento, é possível afirmar que o direito à honra do inimputável (como o de qualquer outro cidadão), é por ele adquirido com o seu nascimento.

Esclarecida a peculiaridade do direito adquirido em relação aos direitos fundamentais, passa-se a demonstrar sua interferência no que toca ao tema desse trabalho.

Nessa toada, vale ressaltar também, que o direito adquirido traz consigo dois aspectos afetos ao tema, sendo um exprimido da literalidade do termo “direito adquirido” e outro identificado através de uma interpretação lógica e analógica do mesmo termo. Esses aspectos são o elo que demonstram que a ausência de proteção à honra do inimputável no crime de calúnia vai em desencontro com o Princípio da Segurança Jurídica. Os mencionados aspectos são os seguintes: proibição constitucional ao legislador infraconstitucional de criar lei que prejudique um direito constitucionalmente garantido; por analogia, proibição constitucional a qualquer interpretação da lei infraconstitucional que prejudique um direito constitucionalmente garantido.

Em corroboração com o primeiro aspecto, vale citar o ensinamento de Clever Vasconcelos:

Trata-se de uma regra destinada ao legislador ordinário, conforme podemos perceber com a leitura da expressão: “a lei não prejudicará”. O comando constitucional veicula de forma abrangente a proibição da retroação da lei (retroeficácia da lei), preservando, deste modo, o princípio da segurança das relações jurídicas para que haja a consolidação de direitos22.

Dessa forma, nota-se que qualquer lei infraconstitucional deve respeitar os direitos constitucionalmente garantidos, uma vez que a mera existência dessa garantia de caráter constitucional já dá, aos aludidos, direitos à qualidade de direito adquirido. Em outras palavras, levando em consideração que a Constituição Federal é a norma basilar do ordenamento jurídico pátrio, pode-se dizer que todo direito por ela garantido é considerado um direito adquirido, não podendo ser suprimido ou diminuído sem que tal supressão ou exclusão seja feita através de norma constitucional.

Assim sendo, percebe-se que mesmo se a interpretação dada pela corrente doutrinária que defende a impossibilidade de proteção da honra do inimputável no crime de calúnia fosse literal e, por conseguinte, expressasse cópia fiel do texto legal, tal interpretação não poderia ser aceita no ordenamento jurídico, vez que desrespeitaria o direito adquirido. Consequentemente, também desrespeitaria o Princípio da Segurança Jurídica, o que lhe daria qualidade, portanto, de interpretação inconstitucional. Nesse caso, vale ressaltar que não só a interpretação seria inconstitucional, mas também o próprio art. 138 do Código Penal.

Nesse caso, se o próprio art. 138 do Código Penal e sua interpretação literal seriam inconstitucionais na hipótese em que estabelecessem uma restrição ao direito do inimputável de ter sua honra protegida, a interpretação que estabelece tal restrição sem que essa sequer seja estabelecida pelo dispositivo legal interpretado, por óbvio, também desrespeita o Princípio da Segurança Jurídica (porque estaria em desacordo com o direito adquirido) e, por conseguinte, deve ser considerada inconstitucional.

Em outras palavras, salienta-se que tanto a interpretação que restringe o inimputável de ter sua honra protegida, sem que haja previsão legal no dispositivo interpretado para tanto (como é o caso da corrente doutrinária anteriormente mencionada), quanto essa mesma interpretação na hipótese em que houvesse permissão legal para tal restrição (na situação hipotética em que a aludida corrente doutrinária tivesse amparo na lei), haveria desrespeito ao Princípio da Segurança Jurídica, já que fere o direito já adquirido pelo inimputável, qual seja, a honra.

Além disso, vale ressaltar que a aplicação da citada corrente doutrinária retira toda a credibilidade que tem lei no ordenamento jurídico, ferindo também, nesse sentido, o Princípio da Segurança Jurídica, uma vez que se põe acima da lei, criando uma restrição a um direito que ela mesma não criou e ao mesmo tempo, limitando um direito que ela mesma efetivou (o direito de proteção à honra, garantido na Constituição Federal). Isso sendo, gera instabilidade e insegurança em um ordenamento jurídico já que um simples entendimento doutrinário pode “revogar” uma lei e simplesmente “substituí-la”.

Por fim, finalizada a demonstração de lesão ao princípio da Segurança Jurídica, cita-se a lesão que a ausência de proteção da honra do inimputável no crime de calúnia causa ao Princípio Constitucional da Igualdade, o qual também é chamado de Princípio da Isonomia. Esse princípio deriva do mandamento constitucional previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, que assim estabelece: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”23.

Vale dizer que é a supracitada previsão constitucional, também, garante à toda pessoa humana o Direito à Igualdade (ou ao tratamento isonômico). Isso posto, nota-se que tanto o princípio quanto o direito à igualdade estão intimamente ligados entre si, o que permite dizer que toda lesão ao princípio também afetará o direito.

Consistindo, portanto, a igualdade prevista na Constituição Federal, o conteúdo jurídico e normativo do princípio e do direito que a têm como objeto, sua conceituação abrange ambos, havendo diferença apenas em relação à forma com que ela ocupará a cada, quando foi invocada como princípio ou como direito.

Dessa forma, é importante ressaltar que o Direito à Igualdade se determina no ordenamento jurídico pátrio como direito constitucional, fundamental e individual do ser humano24, enquanto o princípio figura com direito constitucional, fundamental, podendo ser invocado de forma coletiva ou individual.

A igualdade, em seu sentido amplo, pode ser definida como o direito que todos os cidadãos têm “[...] de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico”25. Esses critérios utilizados como parâmetros para aplicabilidade da igualdade (como direito e princípio) são divididos em dois aspectos pela doutrina, os quais alguns doutrinadores denominam de igualdade formal (ou jurídica) e material (ou real)26.

Assim sendo, vale dizer que embora o art. 5º, caput, da Constituição Federal estabeleça a igualdade perante a lei “sem distinção de qualquer natureza”27, esse dispositivo constitucional não é interpretado de forma literal. A igualdade prevista na Constituição Brasileira, levando em consideração seu aspecto formal, é aquela que garante o tratamento homogêneo a todas as pessoas que se encontram em situações semelhantes28.

Por sua vez, a igualdade sob seu aspecto material, consiste na possibilidade de tratamento desigual de pessoas que se encontram em situações desiguais, na medida que se desigualam29.

Segundo Alexandre de Moraes, esse tratamento desigual

[...] é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito [...]30.

Desse modo, para ele, “[...] o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas [...]”31.

Na mesma linha de raciocínio que Alexandre de Moraes, Ingo Wolfgang Sarlet defende que embora a justiça não se esgote nem se confunda com a igualdade, ambas guardam conexão íntima32. Essa relação de proximidade de tais valores constitucionais é lógica, vez que a igualdade é uma forma de viabilizar a justiça, seja esta em seu aspecto social ou em suas demais áreas de atuação.

Portanto, analisando a finalidade da igualdade (como princípio e direito), infere-se que é essa ligação intrínseca que possui com o dever de justiça previsto na constituição, que permite tal conceituação da igualdade sob seu aspecto material, bem como a aplicabilidade até os dias de hoje do conhecido lema defendido por Aristóteles de que “[...] os iguais devem ser tratados de modo igual ao passo que os diferentes devem ser tratados de modo desigual [...]”33.

Não obstante, essa “discriminação legalizada” (tratamento desigual de pessoas em situações desiguais) se condiciona ao fato de “que o discrímen (fator de discriminação) entre a pessoa e o fato discriminado, seja lógico”34. Ou seja, para que a discriminação seja legal, deve existir correlação lógica entre a circunstância justificadora da discriminação e a pessoa, como por exemplo, nos casos de concursos públicos que exigem, em virtude da natureza do serviço a ser exercido, candidatos com características peculiares.

Superada a fase de conceituação da igualdade como princípio e direito constitucional, demonstrar-se-á em razão de que o entendimento doutrinário que visa a impedir a proteção da honra do inimputável no crime de calúnia fere esse valor constitucional, o que se dá em relação a seus dois aspectos.

Levando-se em consideração primeiramente o aspecto formal da igualdade, nota-se que a lesão se demonstra pela clara previsão legal do legislador penal, no art. 138 do Código Penal, que não faz qualquer exigência ou restrição quanto ao sujeito passivo, prevendo a proteção da honra genericamente a todas as pessoas.

Nesse ponto, vale dizer que embora os inimputáveis sejam desiguais em relação ao sujeito penalmente capaz, o legislador garantiu àquele, proteção igualitária ao seu direito à honra consoante ao sujeito penalmente capaz, o que fez acertadamente, já que uma proteção menor ou inexistente da honra do inimputável no crime de calúnia, relacionada à proteção dada ao sujeito penalmente capaz seria totalmente descabida. Isso, justamente porque, como será minunciosamente destacado em capítulo próprio, a imputação caluniosa fere a honra objetiva (consistente, em sintese, na reputação) do sujeito. Percebe-se que não há qualquer motivo juridicamente plausível que viabilize juridicamente e fundamente no ponto de vista lógico que a honra objetiva do inimputável tem menor importância para o ordenamento jurídico do que a honra objetiva do sujeito penalmente capaz.

Fica evidente, que o entendimento doutrinário mencionado, se posto perante o que prevê o princípio da igualdade, estaria em sua finalidade e resultado (discriminar o inimputável em relação ao penalmente capaz, efetivando a proteção da honra deste e não fazendo o mesmo com aquele), teria encaixe ao aspecto material da igualdade. Porém, como ressaltado anteriormente, para que seja considerada legal a discriminação, o fator discriminador deve ser lógico quando comparado com a pessoa e o fato discriminado. No caso do inimputável (pessoa discriminada), segundo a corrente doutrinária mencionada, o fator discriminador seria a inimputabilidade, enquanto o fato discriminado seria conduta lesiva à honra objetiva do inimputável. Ora, não há qualquer relação lógica nessa discriminação, já que o fato, objeto de discriminação nesse caso, como dito no parágrafo anterior, prejudicaria a reputação do inimputável e, portanto, uma imputação da prática de um fato previsto como criminoso, até quando não se saiba que tal imputação é falsa, não gera efeitos diferentes ao inimputável e ao penalmente capaz perante a sociedade. Caso em que ambos, muito provavelmente, serão vistos como criminosos.

Destarte, vê-se que não há qualquer base jurídica que possa legalizar essa discriminação contra o inimputável posta por parte da doutrina penalista.

Por tudo isso, é que o tratamento igualitário do imputável e do inimputável como sujeitos passivos do crime de calúnia, sob ponto de vista formal do conceito de igualdade, é a proteção adequada à honra do primeiro, respeitando assim a igualdade como princípio e direito.

Assim, além de ser o citado tratamento igualitário necessário para garantir a igualdade material e não se encaixar o entendimento doutrinário mencionado na hipótese de “discriminação legalizada”, ressalta-se que, pela maior vulnerabilidade dos inimputáveis, o adequado seria que a igualdade material fosse utilizada em seu favor. Isto é, como já ressaltado, são os inimputáveis desiguais, quando comparados com os penalmente capazes (imputáveis), já que não possuem capacidade de entender o caráter ilícito de sua conduta e/ou se autodeterminar a partir desse entendimento.

Desse modo, sendo, portanto, desiguais, em respeito ao princípio da igualdade, em seu aspecto material, os inimputáveis merecem ser tratados desigualmente na medida em que se desigualam dos imputáveis, a fim de garantir proteção eficaz à honra daqueles sujeitos. Nesse caso, vê-se que há correlação lógica entre o fator discriminador, a pessoa e o fato discriminado, diferentemente quando se busca a aplicação do princípio da igualdade em desfavor do inimputável.

O fator discriminador é a inimputabilidade, bem como os efeitos que ela gera perante à sociedade. Assim, como a pessoa a ser positivamente e legalmente discriminada no ordenamento jurídico é inimputável, vê-se que há correlação entre ela e o fator discriminador.

Quanto ao fato a ser positivamente discriminado, esse seria a lesão à honra objetiva do inimputável. A correlação lógica entre o fato a ser discriminado e o inimputável se dá, obviamente, porque esse sujeito é a vítima do fato. Já a correlação lógica entre o fato a ser discriminado e o fator discriminador é que o sujeito ofendido, ostenta a qualidade estabelecida no fator discriminador. Por outro lado, embora tenha sido demonstrada a correlação lógica entre os fatores que autorizam a “discriminação legalizada”, com base no princípio da igualdade, em seu aspecto material, faz-se necessário demonstrar a lógica do próprio fator discriminador, isto é, porque se faz necessária tal discriminação.

No caso do inimputável, o tratamento positivamente desigual se faz necessário justamente por sua vulnerabilidade e fragilidade no convívio social. E se fala nesse ponto em convívio social, porque a reputação é fator extremamente influenciador nesse meio. O que se percebe, então, é que os inimputáveis possuem reputação, como qualquer ser humano, porém, em regra, essa reputação não possui a mesma credibilidade que ostenta a reputação dos penalmente capazes perante a sociedade, já que aqueles são vistos como pessoas mais suscetíveis a se desviarem do caminho da legalidade, seja por ainda não possuírem maturidade para tanto, o que pode ser, rapidamente, conjugado pela ausência de uma adequada estrutura familiar ou com uma condição social (menor de 18 anos, por exemplo), seja por não possuírem o necessário discernimento para se autodeterminar (impor suas vontades com autonomia, por si próprio) na sociedade (deficiente e doente mental, por exemplo).

Assim posto, são os inimputáveis, em regra, vistos na sociedade com um certo preconceito, uma certa desconfiança, circunstâncias essas que derivam da própria condição de inimputáveis (fator discriminador), o que não lhes permite ostentar uma reputação com credibilidade e lhes causa, diante de uma ofensa à sua reputação, efeitos negativos mais avassaladores e eficazes.

E essa credibilidade reduzida da reputação dos inimputáveis se evidencia com muito mais frequência e com efeitos ainda mais fortes quando tal inimputabilidade deriva de doença ou deficiência mental, já que são vistos com maior preconceito pela origem da ausência de capacidade de autodeterminação e de discernimento, de maneira que se passa a crer que tal incapacidade torna o doente ou deficiente mental, um potencial criminoso.

Por isso, vê-se que os inimputáveis necessitam de uma proteção estatal mais enfática quando ocupam o polo passivo do crime de calúnia, a fim de garantir a esses sujeitos um tratamento isonômico (igualitário) em relação às demais pessoas. Para isso, entretanto, os inimputáveis devem ser tratados sob os ditames previstos pelo princípio da igualdade em seu aspecto material, de maneira que exista uma afirmação mais clara do Estado sobre a proteção da honra objetiva desses sujeitos quando ocuparem o polo passivo no crime de calúnia, bem como que se estabeleça um tratamento mais específico e eficaz contra à ofensa ao referido bem jurídico.

Desse modo, a título de exemplificação, levando em consideração que os inimputáveis sofrem efeitos mais duros perante à sociedade, quando caluniados, poderiam ser estabelecidas penas mais duras quando tais sujeitos fossem vítimas imputação falsa.

Portanto, conforme se pode notar, a corrente doutrinária que defende a impossibilidade de proteção da honra do inimputável quando sofrer falsa imputação de um fato criminoso, desrespeita a igualdade como princípio e direito fundamental em seus aspectos formal e material.

Há desrespeito à igualdade formal pelo fato de que o legislador penal deu igual tratamento aos inimputáveis ao prever o crime de calúnia, colocando esses sujeitos em situação de semelhança com os imputáveis.

No que se refere ao aspecto material da igualdade, o desrespeito se evidencia por dois motivos. O primeiro se dá pelo fato de que, conforme demonstrado, a não proteção da honra do inimputável na hipótese defendida pela corrente doutrinária, exaustivamente mencionada neste capítulo (discriminação negativa), tratar-se-ia de uma discriminação ilegal e inconstitucional, vez que a legislação penal não faz qualquer tipo de distinção entre inimputáveis e imputáveis, dando igual proteção à ambos, bem como que não há fator discriminador lógico que sustente tal discriminação. Por sua vez, o segundo consiste na necessidade de discriminação positiva do inimputável quando este ocupa o polo passivo do crime de calúnia, a fim de tratá-lo de forma desigual em relação ao imputável, já que, embora haja previsão legal de igual tratamento desses, é possível notar, claramente, que tais sujeitos não se encontram em situação de semelhança, mas sim de desigualdade.

Em síntese, depreende-se que os inimputáveis e os imputáveis devem ser tratados igualmente (igualdade formal), já que, do ponto de vista jurídico, encontram-se em situações semelhantes, muito embora merecessem tratamento desigual (igualdade material), vez que do ponto de vista fático, encontram-se em situação de desigualdade, bem como há permissão constitucional para tal “discriminação legalizada”.

Logo, conclui-se que os princípios e direitos analisados neste capítulo são imperativos constitucionais garantidores do alcance da tutela penal ao inimputável como sujeito passivo do crime de calúnia.

Finalmente, ressalta-se que não deve prosperar a interpretação do artigo 138 do Código Penal que defende a impossibilidade de proteção da honra do inimputável quando este for caluniado, vez que ela ofende os principais valores jurídicos previstos na Constituição, bem como inexiste qualquer suporte legal ou constitucional que a sustente, no ordenamento jurídico pátrio.

Sobre os autores
Carlos Eduardo Pires Gonçalves

Graduado em Direito pela Universidade Paranaense (2004). Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Penal pela Unp - Universidade Potiguar. Professor das disciplinas de Processo Penal II, Direito Penal III e IV, e Prática Processual Penal I e II no curso de Graduação em Direito da Unifamma. Leciona em diversos cursos de pós-graduação na área criminal.

Guilherme Rodrigues de Figueiredo

Graduado em direito pelo Centro Universitário Metropolitano de Maringá - UNIFAMMA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Carlos Eduardo Pires; FIGUEIREDO, Guilherme Rodrigues. Da (im)possibilidade de o inimputável figurar como sujeito passivo no crime de calúnia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6927, 19 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72254. Acesso em: 22 nov. 2024.

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