Capa da publicação Calúnia: inimputável pode ser vítima?
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Da (im)possibilidade de o inimputável figurar como sujeito passivo no crime de calúnia

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3 O CRIME DE CALÚNIA NO DIREITO BRASILEIRO

Nesse capítulo, será feita uma ampla análise do crime de calúnia no ordenamento jurídico pátrio, com a exposição dos seus elementos, suas principais características e peculiaridades, bem como dos principais temas que lhe são afetos.

Segundo estabelece o artigo 138 do Código Penal, a calúnia consiste na falsa imputação a alguém de fato definido como crime. Nesse sentido, conceitua Damásio de Jesus: “Calúnia é o fato de atribuir a outrem, falsamente, a prática de fato defini­do como crime (CP, art. 138, caput)”35.

O objeto jurídico é a honra objetiva do sujeito passivo36. Vale salientar que esse mesmo elemento é denominado de forma diferente por outros doutrinadores, que o intitulam como bem jurídico protegido, como é o caso de Cezar Roberto Bitencourt37.

Ao definir a honra, em seu conceito lato sensu, Fernando Capez cita Magalhães Noronha, segundo o qual a honra se conceitua “[...] como o complexo ou conjunto de predicados ou condições da pessoa que lhe conferem consideração social e estima própria [...]”38. Trata-se de conceituação clássica no Direito Penal, também citada por Cezar Roberto Bitencourt, em sua obra39.

Damásio de Jesus, por sua vez, define a honra (em seu sentido amplo) como o “[...] conjunto de atributos morais, físicos, intelectuais e demais dotes do cidadão, que o fazem merecedor de apreço no convívio social”40.

Nota-se, portanto, que a honra, em sentido amplo, pode ser definida como a união de diversas características (sejam físicas, intelectuais, sociais ou morais) da pessoa humana (pois só essa é detentora de honra), as quais são capazes de lhe garantir respeito, admiração social (ser admirada na sociedade) e outros atributos desta natureza perante à sociedade, bem como que lhe conferem uma autoadmiração, autoestima e auto apreço.

Já em sentido estrito, a honra pode ser dividida em subjetiva e objetiva.

A honra subjetiva, segundo Damásio de Jesus, “[...] é o sentimento de cada um a respeito de seus atributos físicos, intelectuais, morais e demais dotes da pessoa humana. É aquilo que cada um pensa a respeito de si mesmo em relação a tais atributos”41.

No mesmo sentido, Fernando Capez diz que a honra subjetiva “[...] refere‐se à opinião do sujeito a respeito de si mesmo, ou seja, de seus atributos físicos, intelectuais e morais; em suma, diz com o seu amor-próprio. Aqui não importa a opinião de terceiros”42.

Nota-se, então, que a honra subjetiva se trata do juízo de valor que cada pessoa faz de si mesmo, levando em consideração todas as suas características pessoais, sua maneira de ser e de agir. Conforme já ressaltado, essa espécie de honra não é o bem jurídico protegido no crime de calúnia, porém, sua análise é imprescindível para que a honra objetiva seja melhor compreendida.

Por sua vez, no que toca à honra objetiva, segundo Damásio de Jesus, “[...] é a reputação, aquilo que os outros pensam a respeito do cidadão no tocan­te a seus atributos físicos, intelectuais, morais etc. [...]”43.

Nesse liame, Fernando Capez explica que a honra objetiva: “[...] diz respeito à opinião de terceiros no tocante aos atributos físicos, intelectuais, morais de alguém [...]”44. E acrescenta:

[...]. Quando falamos que determinada pessoa tem boa ou má́ reputação no seio social, estamos nos referindo à honra objetiva, que é aquela que se refere à conceituação do indivíduo perante a sociedade. É o respeito que o indivíduo goza no meio social. [...].

Denota-se, assim, que “[...] Enquanto a honra subjetiva é o sentimento que temos a respeito de nós mesmos, a honra objetiva é o senti­mento alheio incidido sobre nossos atributos”45.

Portanto, é possível afirmar, sinteticamente, que honra objetiva é a conceituação que o indivíduo sofre perante a sociedade ou, também, a percepção que a sociedade formou sobre determinado indivíduo e seus atributos.

Ainda sobre o objeto jurídico (ou bem jurídico protegido), Cezar Roberto Bitencourt salienta que “[...] o Direito Penal não distingue a honra comum da honra profissional [...]”46 e diz que a primeira se refere “[...] à pessoa humana enquanto ser social; [...]”47 (pessoa humana na sociedade), enquanto a segunda se relaciona “[...] diretamente à atividade exercida pelo individuo, seus princípios ético-profissionais, a representatividade e o respeito profissional que a sociedade lhe reconhece e lhe atribui; [...]”48 (pessoa no ambiente de trabalho). Assim, destaca que “O ataque, objetivamente considerado, tanto pode ofender a honra pessoal de alguém quanto a honra profissional, e, eventualmente, esta pode sofrer, inclusive, maiores danos que aquela”49.

Mudando o enfoque, no que diz respeito ao sujeito ativo do delito de calúnia, vale dizer que é o sujeito que executa a conduta típica. No delito abordado, esse sujeito pode ser qualquer pessoa física, desde que seja penalmente capaz (imputável)50. Por sua vez, as pessoas jurídicas não podem ocupar o polo ativo no crime de calúnia, já que não possuem capacidade pena para tanto51.

Nessa seara, vale ressaltar que quem propala ou divulga a imputação sabendo que é falsa, também é sujeito ativo do delito, conforme está previsto no § 1º do artigo 138 do Código Penal, tratando-se tal previsão de forma equiparada do cometimento do delito. Sobre essa, vale ressaltar, ainda, que propalar significa “[...] relatar verbalmente”52, enquanto divulgar, significa “[...] relatar por qualquer outro meio”53.

Aliás, vale ressaltar que os verbos “imputar”, “propalar” e “divulgar” representam os núcleos dos tipos do crime de calúnia54.

No que diz respeito ao sujeito passivo, salienta-se que esse é a vítima da conduta caluniosa. Sobre quem pode ser sujeito passivo do crime de calúnia, ressalta-se que é justamente esse questionamento o trazido à baila através do presente trabalho, sendo tal discussão o seu clímax, razão pela qual será abordado em capítulo específico.

O objeto material do delito é a pessoa ou coisa sobre a qual recai a ação delituosa do agente, que no caso do delito de calúnia, é a pessoa contra a qual são dirigidas as imputações ofensivas à sua honra objetiva (vítima).

Em relação ao elemento normativo do tipo, salienta-se que “[...] está contido no termo ‘falsamente’”55. Destarte, “[...] não basta a imputação de fato definido como crime, exige‐se que este seja falso. Se o fato for verdadeiro, não há que se falar em crime de calúnia”56.

Nesse ponto, vale citar que a falsidade da imputação pode se dar tanto em razão da inexistência de fato criminoso, quanto em relação à autoria desse, conforme explica Fernando Capez: “O objeto da imputação falsa pode recair sobre o fato, quando este, atribuído à vítima, não ocorreu; e sobre a autoria do fato criminoso, quando este é verdadeiro, sendo falsa a imputação da autoria”57.

Dessa forma, como entendimento lógico do que foi acima exposto, depreende-se que se é imprescindível que a imputação seja falsa, é admissível a exceção de verdade no crime de calúnia, que nada mais é que a possibilidade garantida pela lei penal de “[...] que o agente prove que a ofensa é verdadeira, afastando, dessa forma, o crime”58.

A previsão legal que estabelece a possibilidade de utilização da exceção de verdade está ventilada no § 3º do artigo 138 do Código Penal, que, no entanto, estabelece hipóteses em que ela não será admissível. Desse modo, em regra, será admitida a exceção de verdade, salvo: “se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível”59 (inciso I, § 3º do Código Penal); “se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 141”60 (Presidente da República e chefe de governo estrangeiro); “se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por sentença irrecorrível”61 (inciso III, § 3º do Código Penal).

Sobre as hipóteses de exceção de verdade supracitadas, vale tecer algumas considerações.

Em determinados crimes, o Estado, por razão de política criminal, concede ao particular o direito de ação, justamente para evitar que o ofendido seja prejudicado, exposto, constrangido ou lesionado (no mesmo bem jurídico ou em outro), de maneira que venha a sofrer um mal maior do que a impunidade do autor do delito62.

Em síntese, fala-se aqui das hipóteses em que o processamento e o julgamento do autor do delito pode gerar um incômodo a mais e, muitas vezes, até maior à vítima do que suportar a impunidade do agente. Nesses casos, se a responsabilização do agente criminoso, que se dá através de seu processamento e julgamento, é uma opção da vítima, torna-se irrazoável, na hipótese em que o aludido sujeito ainda não foi condenado por sentença irrecorrível, admitir-se que um terceiro, que tomou conhecimento da conduta criminosa e a imputou ao agente, ou mesmo a divulgou ou propalou, tenha a oportunidade de provar que a aludida conduta foi praticada63.

É, então, baseado nas circunstâncias supramencionadas, que o legislador estabeleceu ser impossível a utilização da exceção de verdade quando a calúnia tenha como objeto crime de ação penal privada, em que o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível (inciso I, do § 3º, artigo 138 do Código Penal)64.

Por sua vez, no que toca à vedação de utilização da exceção de verdade contra o Presidente da República e chefe de governo estrangeiro, segundo Fernando Capez, se dá “Em virtude do cargo e função que ocupam [...]”65 e tem a finalidade de evitar que tal vedação seja capaz de “[...] macular o prestígio dessas pessoas, expondo‐as ao vexame”66.

Vale ressaltar que há significativa discussão na doutrina sobre essa vedação de exceção de verdade, prevista no inciso II, do § 3º, do artigo 138 do Código Penal. Isso porque, tal vedação gera uma diversidade de questionamentos de ordem jurídica, como os seguintes: seria possível que imputação verdadeira de um fato definido como crime ou a simples imputação, sem a análise de sua veracidade configurassem o delito de calúnia? Essa “exceção da exceção de verdade” seria capaz, então, de alterar o tipo penal quando for aplicada, excluindo o requisito da falsidade da imputação? Essa inadmissibilidade de exceção de verdade ocasiona cerceamento de defesa?

Em resposta ao primeiro questionamento, Fernando Capez afirma que seria possível que o autor da imputação responda por ela, ainda que ela seja verdadeira, eis que não se admite exceção de verdade contra as pessoas descritas no inciso II, do § 3º, do artigo 138 do Código Penal67.

Cezar Roberto Bitencourt, por sua vez, aparentemente com razão, discorda de Capez ao defender que “[...] a imputação da autoria de um fato, verdadeiro, definido como crime, constitui conduta atípica”68 e que:

[...] ninguém pode responder por um crime — calúnia — se a conduta que pratica — imputação de fato verdadeiro — não se adequar a uma descrição típica — imputar falsamente —, ou seja, se o seu comportamento não constitui crime69.

Para melhor entender as razões pelas quais Bitencourt defende que a imputação de fato verdadeiro, na hipótese de que a vítima for o Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro, é uma conduta atípica, primeiramente, vale definir no que consiste a exceção de verdade em seu aspecto prático (processual), já que em seu aspecto material (enquanto direito material), conforme já dito, se trata da possibilidade e direito do autor da imputação caluniosa provar a veracidade dessa.

Destarte, consoante leciona Cezar Roberto Bitencourt: “[...] a exceção da verdade é apenas um meio de prova ou uma forma procedimental para produzir prova [...]”70. Nota-se, então, que a exceção de verdade, como meio processual de prova, nada mais é que um incidente processual, instaurado em apartado aos autos de ação penal, mas distribuído por dependência de tais autos, como também é o incidente de insanidade mental, previsto no artigo 149 e seguintes, do Código de Processo Penal.

Assim sendo, na hipótese em que não for possível a instauração de exceção de verdade, pelo fato de ser a vítima da imputação o Presidente da República ou um chefe de governo estrangeiro, embora o acusado (ao autor da imputação) não seja permitido provar a atipicidade de sua conduta (veracidade da imputação), através de tal incidente, “[...] durante a instrução criminal o acusado tem todo o direito de comprovar que a sua conduta de imputar ao presidente da República ou chefe de governo estrangeiro a autoria de um fato definido como crime é atípica [...]”71.

Portanto, vê-se que há vedação de utilização apenas de um meio processual e não do exercício pleno de defesa do acusado. Se assim não fosse, tal presunção de falsidade da imputação aos agentes supramencionados chegaria ao absurdo de afrontar os princípios da ampla defesa (já que o acusado teria que se limitar a demonstrar a existência de uma excludente de ilicitude ou culpabilidade), da reserva legal e da razoabilidade (a sobreposição da proteção ao prestígio dos aludidos sujeitos, em relação ao direito de defesa do acusado, tornar-se-ia irrazoável), já que se trata de medida incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, a vedação de todos os meios de defesa, quando a lei veda a utilização de apenas um deles72.

Desse modo, é possível afirmar com maior coerência, que tanto a imputação verdadeira de fato definido como crime, quanto a simples imputação de fato que não se saiba se é verídico ou falso tratam-se de condutas atípicas, sendo a falsidade elemento essencial para que a conduta seja considerada típica.

Assim, respondendo o segundo questionamento anteriormente citado, depreende-se que a vedação de utilização da exceção de verdade na hipótese do inciso II, do § 3º, do artigo 138 do Código Penal “[...] não tem o condão de alterar a tipicidade do crime de calúnia”73.

No que diz respeito ao cerceamento de defesa, a aludida vedação não se identifica, já que apenas um meio de defesa é vedado, podendo o acusado se valer da via comum (defesa nos próprios autos) para provar sua inocência74. Também não configura o cerceamento de defesa, porque, conforme explica Bitencourt:

[...] o ordenamento jurídico veda, previamente, o recurso da demonstratio veri (ao menos em procedimento próprio); assim, quem ignora essa proibição e não se abstém da imputação assume o ônus da ressalva legal; [...]75.

Ou seja, sabendo o agente que existe a proibição legal preestabelecida de utilização de um procedimento especifico (exceção de verdade) para provar sua inocência, à medida que pratica a imputação, o agente assume as consequências que a aludida vedação lhe causará.

Nesse ponto, depreende-se das lições de Bitencourt, que o entendimento pelo qual a vedação da exceção de verdade deve ser considerado como a inadmissão, apenas de um meio de prova, aplica-se apenas às hipóteses dos incisos I e II do § 3º do artigo 138 do Código Penal, sendo que na hipótese do inciso III, não se deve admitir a discussão sobre a veracidade dos fatos, em respeito à autoridade da coisa julgada76, o que, com exceção dos casos em que a sentença irrecorrível for absolutória imprópria, situação à qual a jurisprudência tem admitido a revisão criminal77 78, parece ser um entendimento coerente, já que nessa situação já existe uma sentença absolutória transitada em julgado, o que pressupõe que houve um processo criminal com o respeito às regras legais pertinentes e com a devida instrução processual.

Não obstante, as hipóteses de exceção de verdade previstas no Código Penal, o Código de Processo Penal, em seu artigo 523, prevê a possibilidade de que o réu no crime de calúnia apresente “exceção de notoriedade”. A saber:

Quando for oferecida a exceção da verdade ou da notoriedade do fato imputado, o querelante poderá contestar a exceção no prazo de dois dias, podendo ser inquiridas as testemunhas arroladas na queixa, ou outras indicadas naquele prazo, em substituição às primeiras, ou para completar o máximo legal79.

Segundo Fernando Capez, a exceção da notoriedade do fato “[...] consiste na oportunidade facultada ao réu de demonstrar que suas afirmações são do domínio público”80. Embora o doutrinador não seja claro sobre a natureza jurídica de tal exceção de notoriedade, da forma que Fernando Capez a define, percebe-se que, pelo menos quanto à sua matéria, aparenta se aproximar à uma causa de excludente de ilicitude, o que lhe dá semelhança à exceção de verdade, já que essa se trata claramente de uma causa de excludente de tipicidade.

Outra interpretação não seria mais razoável, já que à medida em que a exceção de verdade é o direito e o meio processual, através do qual se prova que não há falsidade (elemento normativo do tipo) na imputação, a exceção de notoriedade é o meio e o direito processual por meio do qual se prova que não há ilicitude na imputação, tomando como fundamento o domínio público (conhecido por todos) do fato imputado. Dessa forma, a justificativa para a admissibilidade dessa exceção de notoriedade, está fundamentada, para Capez, no fato de que “[...] se o fato já́ é de domínio público, não há como se atentar contra a honra objetiva [...]” da pessoa que sofre a imputação, já que quem toma conhecimento dessa, tinha conhecimento do seu conteúdo.

Tomando o mesmo partido que Fernando Capez, Alexandre Cebrian Araújo Reis e Victor Eduardo Rios Gonçalves define a exceção de notoriedade, mesmo que implicitamente, como uma causa excludente de ilicitude. A saber:

O art. 523 do Código de Processo Penal prevê̂, ainda, a exceção de notoriedade do fato, em que o querelado, nos crimes de calúnia e difamação, visa demonstrar que apenas disse coisas que já eram de domínio público, de modo que sua fala não atingiu a honra da vítima, pois o assunto já era, anteriormente, de conhecimento geral. O procedimento é o mesmo da exceção da verdade81.

Por sua vez, Rejane Alves de Arrueda, João Paulo Calves e Ricardo Souza Pereira, divergindo do entendimento de Fernando Capez, de Alexandre Cebrian Araújo Reis e Victor Eduardo Rios Gonçalves, ao se referirem às palavras “exceção de verdade ou da notoriedade”, insertas no artigo 523 do Código de Processo Penal, afirmam que o legislador processual penal apenas fez alusão às previsões de exceção de verdade do Código Penal atinentes aos crimes de calúnia (art. 138, § 3º) e difamação (art. 139, parágrafo único), a medida que ao incluir no texto legal as palavras “exceção de verdade”, o legislador pretendeu fazer referência às exceções de verdade do crime de calúnia, enquanto quando incluiu as palavras “exceção de notoriedade”, referia-se ao delito de difamação e sua hipótese de exceção de verdade82.

Não obstante, essa incongruência doutrinária, a interpretação mais próxima da razoabilidade parece ser a defendida por Rejane Alves de Arrueda, João Paulo Calves e Ricardo Souza Pereira, porém, com a seguinte ressalva: o legislador, ao incluir no artigo 523 do Código de Processo Penal, consecutivamente, as palavras “verdade” e “notoriedade”, antes da palavra “exceção”, equivocou-se ao tratá-las como sinônimos. Isso permite entender que não tentou prever nova modalidade de circunstância que excepciona a existência do crime de calúnia, mas sim, a referência, sem sucesso, através dessas duas palavras (verdade e notoriedade), às exceções de verdade previstas nos § 3º do artigo 138 e parágrafo único do artigo 139 do Código Penal.

Outra interpretação não seria mais oportuna, já que não se pode olvidar a clássica divisão existente na Ciência do Direito, entre direito material e processual.

Conforme é sabido, o direito material se define como o criador de regras que regulam as relações interpessoais que têm relevância para o direito, estabelecendo e impondo limitações a direitos, bem como apresentando mecanismos de proteção de bens jurídicos. Por sua vez, o direito processual se apresenta como aquele que estabelece regras procedimentais que possibilitam a efetivação do direito material quando invocado por duas ou mais pessoas que se encontram em situação de conflito.

Sob tal ambulação, extrai-se a regra enraizada no ordenamento jurídico de que o direito processual deve se precaver e se limitar a criar normas que tenham a estrita finalidade de possibilitarem a efetivação das normas de direito material, não devendo atuar na criação de direitos ou estabelecendo procedimentos para institutos materiais inexistentes, como fez o legislador ao estabelecer o procedimento da exceção de notoriedade, sem que essa tenha sido prevista pelo direito material.

É partindo desses pressupostos, ser possível considerar a desconsideração da exceção de notoriedade como um instituto do direito penal, qualificando-a como mero equívoco do legislador como o entendimento mais coerente.

À luz dessas considerações, vislumbra-se tal equívoco, obviamente, pelo fato de que é despiciendo acreditar que o legislador processual penal não tinha conhecimento sobre o de que não poderia estabelecer o procedimento para uma exceção ao crime de calúnia, sem que tal exceção existisse no campo da materialidade do direito penal, bem como da inexistência de previsão legal para a exceção de notoriedade. Daí, é possível notar que o legislador, ao incluir no artigo 523 do Código de Processo Penal, consecutivamente, as palavras “verdade” e “notoriedade” antes da palavra “exceção”, equivocou-se ao tratá-las como sinônimos.

Além disso, mister se faz ressaltar que a imputação de fato notório, embora não leve nenhuma novidade ao conhecimento da pessoa para quem a imputação foi realizada, pode agravar o descrédito da reputação da vítima, além de, eventualmente, servir de escudo para impunidade. Isso porque, a manutenção da existência de uma falsa imputação, bem como sua não reprovabilidade, pode trazer às pessoas a falsa ideia de veracidade.

Ora, para os desconhecedores do direito, entendidos esses como aqueles que integram o senso comum, o pensamento mais lógico e óbvio é que “se todo mundo está falando, deve ser verdade”, bem como que “se ninguém desmentiu, certamente é verdade”. Trata-se de uma interpretação lógica: por mais que uma pessoa já conheça a imputação, na medida que um número maior de pessoas lhe contarem sobre tal imputação, afirmando sua veracidade, mais se reforçará o seu convencimento sobre essa falsa qualidade do fato imputado (a veracidade).

Nesse liame, faz-se necessário lembrar a finalidade da regra expressa no artigo 138 do Código Penal, qual seja: proteger a honra objetiva do inimputável. Desse modo, vê-se que não se reprova o conhecimento amplo da falsa imputação, mas sim a falsidade na imputação, o que permite compreender que pouco importa para o direito se há amplo conhecimento do fato falsamente imputado, mas sim, se há lesão à honra do sujeito passivo.

Insta salientar, então, que além da notoriedade do fato falsamente imputado não minimizar ou extinguir a ofensa à honra do sujeito passivo, a contrario sensu, poderá maximizar a destruição da reputação da vítima da calúnia.

Logo, depreende-se que não há lógica-jurídica para que a falsa imputação de fato notório seja admitida no ordenamento jurídico pátrio.

Não obstante, embora o entendimento mais coerente seja pela inadmissibilidade da exceção de notoriedade, considerando que a doutrina, em parte considerável, defende a possibilidade de sua aplicação, necessária é a abordagem de como deve ser sua aplicação.

Nessa toada, de início, vale esclarecer que a “exceção de notoriedade” tem a finalidade de demonstrar que o fato é de conhecimento amplo e público, não tendo a finalidade de demonstrar que se trata de um fato notoriamente verdadeiro (inequivocamente verdadeiro).

Além disso, ressalta-se que o fato imputado deve, necessariamente, ser amplamente conhecido, isto é, exposto à uma diversidade de pessoas.

Posta essas questões, é de se dizer que as hipóteses previstas no artigo 138, § 3º, do Código Penal não só podem como devem ser aplicadas à exceção de notoriedade.

A lógica dessa conclusão encontra sustentação na finalidade da norma em apreço. Daí por que, faz-se necessário interpretá-la pelo método teleológico, que visa, justamente, investigar e descobrir a finalidade que a lei visa alcançar.83 Nesse sentido, explica Diógenes Madeu:

O intérprete, nesses casos, tem papel muito mais importante do que simplesmente o de mero aplicador da lei, simples explicitador das palavras do legislador; ele é quem dará o próprio sentido da norma, buscando, sobretudo, o seu propósito e finalidade84.

E acrescenta, esboçando a importância desse tipo de interpretação para o alcance de um “ideário de justiça”:

As interpretações teleológica e axiológica, mediante a atual condição social que vivenciamos, têm se mostrado cada vez mais importantes para que a aplicação do direito seja eficaz, buscando um ideário de justiça85.

Portanto, o intérprete da lei, quando de sua atuação, deve sempre atentar-se para a finalidade da norma, o que significa dizer, em Direito Penal, em especial na seara que prevê condutas delituosas, que a interpretação da norma deve levar em conta sempre o bem jurídico que se pretende proteger.

Na situação em comento, conforme cediço, o bem jurídico protegido é a honra objetiva do sujeito passivo do delito, que sinteticamente pode ser definida como sua reputação.

Dessa forma, deve-se, então, levar em consideração a finalidade das vedações previstas no § 3º do artigo 138 do Código Penal, quais sejam, em um aspecto geral, impedir a discussão sobre a veracidade do fato imputado em determinadas situações, já que nos casos lá expressos, não se admite tal discussão (conforme defende Fernando Capez), ou ao menos não se garante a utilização de um incidente processual específico para tal discussão (entendimento de Cezar Roberto Bitencourt), seja para preservar a coisa julgada e manter a segurança jurídica (inciso III), seja para preservar o prestígio de pessoas que ocupam cargos importantes (inciso II), bem como para preservar o direito à privacidade e intimidade da pessoa que optou por não propor o ajuizamento de ação penal privada (inciso I).

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É de se verificar, portanto, em virtude dessas considerações, que a finalidade das vedações, à exceção de verdade, é incompatível com a exceção de notoriedade, vez que essa visa apenas a demonstrar que o fato imputado é de domínio público e conforme já ressaltado, a notoriedade da imputação não é capaz de desconstituir seu efeito lesivo à honra objetiva da vítima do crime de calúnia.

Superada a discussão sobre a exceção de notoriedade, dá-se continuidade à abordagem dos elementos do crime de calúnia.

Nesse enleio, cumpre assinalar que o elemento subjetivo do tipo (ou tipo subjetivo do delito), pode ser definido como “[...] o dolo de dano, consistente na vontade e consciência de caluniar alguém, atribuindo‐lhe falsamente a prática de fato definido como crime, de que o sabe inocente”86.

Por seu turno, o elemento (ou tipo) objetivo, é a ação nuclear do tipo penal do delito, que no caso da calúnia, “é o verbo caluniar, que significa imputar falsamente fato definido como crime”87. Conforme já ressaltado, a falsidade pode recair sobre o fato e/ou sobre a autoria desse88.

No que toca à natureza jurídica do crime de calúnia, para Fernando Capez, trata-se de crime formal, em que o agente atua com a finalidade de ofender a honra objetiva da vítima, sendo prescindível, entretanto, o alcance do resultado (ofensa à reputação da vítima)89. Tal conclusão deriva-se, notadamente, da interpretação lógica do tipo penal, que apenas exige a falsa imputação do fato definido como crime, não fazendo qualquer menção quanto ao alcance do resultado ofensivo da imputação. Damásio de Jesus também classifica o crime de calúnia como formal, mas não trata tal característica como natureza jurídica do delito, mas como sua qualificação doutrinária90.

Vale ressaltar, também, que o consentimento do ofendido é admissível no crime de calúnia e, se presente no caso concreto, excluirá o crime. Nesse sentido, leciona Damásio de Jesus: “Nos delitos contra a honra, tratando-­se de objetividade jurídica disponível, o consentimento do ofendido capaz tem relevância. Presente, inexiste cri­me. [...]”91.

Como se pode notar, Damásio justifica a exclusão do delito pela disponibilidade do direito à honra, o que significa dizer que o seu titular pode invocar sua proteção ou consentir com sua lesão quando bem entender, podendo assim, dela dispor livremente.

Igualmente, Fernando Capez também explica que a honra objetiva e subjetiva se tratam de direitos disponíveis e, por isso, sua proteção pode ser flexibilizada diante do consentimento do ofendido92.

É preciso ressaltar, nesse ponto, que essa causa de exclusão do crime (consentimento do ofendido), é representada no ordenamento jurídico por três institutos jurídicos, quais sejam: a ação penal privada, a renúncia ao direito de queixa e o perdão do ofendido93.

Assinale-se que esses institutos estão previstos expressamente no Código Penal, em seus artigos 103, 104, 105 e 106.

O artigo 103 do Código Penal estabelece que:

salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º do art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia94.

Conforme se pode notar, dada à disponibilidade do direito à honra, o legislador decidiu por bem estabelecer que o crime de calúnia apenas será apurado, processado e julgado mediante queixa, conforme prevê o artigo 145 do Código Penal. Isso significa dizer que a ação penal no crime de calúnia é de natureza exclusivamente privada, cabendo ao ofendido ajuizá-la ou ao seu cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, quando morto o ofendido ou declarado ausente por decisão judicial (art. 100, §§ 2º e 4º, do Código Penal).

Oportuno se torna dizer, nesse momento, que foi justamente concedendo importância aos efeitos do consentimento do ofendido, que o legislador estabeleceu natureza exclusivamente privada à ação penal nos crimes contra à honra95, bastando, assim, que a vítima permaneça inerte e decaia em seu direito de queixa para que a conduta do ofensor deixe de ser considerada delituosa. Portanto, com a decadência ao seu direito de queixa, age a vítima tolerando e anuindo a conduta lesiva à sua honra, incidindo em uma das espécies de consentimento do ofendido.

Continuando a abordagem das espécies de consentimento do ofendido, cita-se o enunciado do artigo 104 do Código Penal, o qual prevê que a renúncia do direito à queixa também impede o ajuizamento da ação penal privada, a saber: “O direito de queixa não pode ser exercido quando renunciado expressa ou tacitamente”96.

Dessa forma, nota-se que a renúncia ao direito de queixa ocasionará, por consequência, a inexistência do crime. Ora, o mesmo raciocínio se faz em relação à decadência do aludido direito, eis que o resultado prático de ambos é a não apuração judicial da conduta do ofensor e como é sabido, só há delito se reconhecido por sentença penal condenatória transitada em julgado.

Sobre a renúncia ao direito de queixa, é de ser relevado, ainda, que pode se materializar de forma expressa ou tácita. Expressa, por óbvio, é aquela em que o ofendido deixa explícito que não pretende requerer a sanção estatal ao ofensor, enquanto a tácita é aquela que se materializa quando o ofendido pratica “[...] ato incompatível com a vontade de exercer o direito de queixa [...]”97.

Entretanto, vale dizer que o simples fato de o ofendido receber indenização pelo dano causado pelo crime não configura a renúncia tácita. Daí se questiona: se o crime apenas pode ser reconhecido através de sentença condenatória transitada em julgado, como poderia o ofendido ser indenizado pelo crime do qual foi vítima, antes mesmo de ajuizar ação penal contra o ofendido? Pois bem. Essa hipótese se refere ao reconhecimento na esfera cível da prática do crime apenas para efeitos cíveis, dentre os quais se encontra a indenização pelo dano causado. Desse modo, levando em consideração que o reconhecimento do delito na esfera cível não prescinde o reconhecimento na esfera penal (artigos 64, 66 e 67, do Código de Processo Penal), exceto se a ação penal já estiver em curso (artigo 315, § 2º, do Código de Processo Penal) ou nas hipótese do artigo 65 do Código de Processo Penal, bem como não vincula o juízo criminal, o crime existe, nesse momento, apenas para efeitos cíveis.

Desse modo, renunciando o ofendido de seu direito à queixa, ocasionará a exclusão do delito.

É de ser mencionada, ainda, a terceira e última hipótese de consentimento do ofendido, tal qual é o perdão judicial, que se encontra previsto nos artigos 105 e 106 do Código Penal. Cumpre observar, que nesse caso, já existe um processo criminal em andamento, o qual tem seu prosseguimento obstado por uma ação ou manifestação expressa ou tácita, no processo ou fora dele.

Ressalta-se que o “[...] perdão tácito resulta da prática de ato incompatível com a vontade de prosseguir na ação”98. (§1º, do art. 106, do Código Penal), bem como que não é admissível o perdão do ofendido após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (§ 2º, do artigo 106, do Código Penal). Convém salientar, também, que a todos os querelados aproveitam o perdão judicial concedido a um deles (inciso I, do artigo 106, do Código Penal), porém se for concedido por um dos ofendidos, não prejudica o direito dos demais (inciso II, do artigo 106, do Código Penal), bem como se não aceito pelo querelado (ofensor) não surtirá efeito (inciso III, do artigo 106, do Código Penal). Logo, nota-se que só é efetivo a excluir o delito o perdão aceito pelo ofensor.

Quanto à exclusão do delito pela incidência das hipóteses do consentimento do ofendido, cumpre ratificar que está prevista expressamente no inciso V, do artigo 107, do Código Penal, que trata justamente da extinção da punibilidade. Nessa toada, vale dizer que embora o aludido artigo não abranja a decadência do direito de queixa, o efeito lógico desta permite concluir que também está abrangido por esse rol, já que o fato criminoso não poderá ser apurado judicialmente.

Destarte, é possível dizer que o consentimento do ofendido nada mais é que causa de exclusão do crime, afirmação a qual traz à baila o questionamento sobre qual elemento do delito ela afeta.

Convém notar, nesse raciocínio, que equivocada é a conclusão de que o consentimento do ofendido exclui a tipicidade do delito de calúnia, conforme defende Fernando Capez:

[...] o núcleo (verbo) de cada uma das ações típicas descritas nos arts. 138, 139 e 140 do Código Penal pressupõe que a ofensa se dê contra a vontade do ofendido, razão pela qual o seu consentimento opera uma causa geradora de atipicidade, semelhante ao que ocorre em outras condutas que pressupõem o dissentimento da vítima para que existam (subtrair, constranger etc.)99.

Conforme se depreende das lições de Capez, o argumento pelo qual conclui que as ações típicas descritas nos tipos penais dos crimes de calúnia, difamação e injúria pressupõem que ofensa seja procedida sem o consentimento da vítima, sendo que a presença desse, ocasionaria, consequentemente, a atipicidade das condutas.

Não obstante, essas considerações, no que diz respeito apenas ao crime de calúnia, pois é esse o ora abordado, não se denota em momento algum que tal circunstância citada por Capez (ausência de consentimento do ofendido) seja imprescindível para a configuração do delito e para formação da figura típica. Isso se nota porque o crime não faz qualquer exigência nesse sentido, mas apenas exige que se impute falsamente um fato definido como crime a determinado sujeito. Percebe-se que não há, sequer, a exigência de que a ofensa se concretize, isto é, que a imputação falsa ofenda a honra da vítima. Desse modo, nota-se que exigir que o ofendido não consinta com a ofensa para que o se tenha um fato típico seria o mesmo que exigir que o bem jurídico protegido fosse, de fato, lesado pela imputação caluniosa, o que é inadmissível no caso em comento, vez que, como já foi dito, se trata de um crime formal.

Dessa forma, não é razoável exigir que a imputação não tenha o consentimento do ofendido para que se amolde à conduta típica, mas apenas que a imputação seja falsa, já que a conduta típica é aquela que está prevista de forma explícita no dispositivo legal, bem como não se pode incluir nela uma presunção ou um elemento que a própria lei não criou.

Assim sendo, depreende-se que não se trata o consentimento do ofendido de uma causa excludente de tipicidade, já que mesmo não exercendo, o ofendido, seu direito de queixa, ou renunciando a esse ou, ainda, perdoando o ofensor, ter-se-á um fato que se amolda perfeitamente à figura típica do delito, que tão somente não será sancionada por não ser mais reprovada no ordenamento jurídico. Conforme se pode auferir, trata-se, então, o consentimento do ofendido, de causa específica de excludente de ilicitude, já que a razão para reprovação da conduta do agente se dá porque fere a honra do ofendido, bem como porque se presume que essa lesão o afeta. Porém, se o próprio ofendido não pretende se valer de tal proteção à sua reputação, não há porque o Estado reprovar a conduta, já que a proteção à honra é um direito disponível.

É de se verificar, portanto, que embora o consentimento do ofendido se trate de causa excludente do delito, tal exclusão não se dá por ausência de tipicidade do fato, mas sim em virtude da inexistência de ilicitude da conduta do ofensor.

Mister se faz ressaltar, ainda, sobre o consentimento do ofendido, que este pode apenar ser exercido pela vítima, mesmo que pessoa incapaz, desde que tenha capacidade de entender o teor de sua conduta, não sendo admissível que o representante legal do ofendido consinta em seu nome100.

É de ser relevado, também, que é admissível a retratação no crime de calúnia, conforme prevê o artigo 143, do Código Penal: “O querelado que, antes da sentença, retrata-se cabalmente da calúnia ou da difamação, fica isento de pena”101.

Segundo Damásio de Jesus, “Retratar­-se significa desdizer-­se, retirar o que foi dito, confessar que er­rou. [...]”102. No mesmo sentido, Cezar Roberto Bitencourt conceitua a retratação: “Retratação é o ato de desdizer, de retirar o que se disse. [...]”103. Entretanto, ressalva que a retratação não se confunde com a negativa de autoria, vez que consiste no reconhecimento pelo agente de que fez uma afirmação inverídica sobre o ofendido104.

Quanto à sua natureza jurídica, segundo Damásio de Jesus, em regra, a retratação “[...] não tem relevância jurídica, funcionando somente como circunstância judicial na aplicação da pena (CP, art. 59, caput) [...]”105, muito embora em situações excepcionais, como é o caso da calúnia, o legislador penal a previu como causa excludente da punibilidade, conforme se denota da análise do inciso VI, do artigo 107, do Código Penal106.

Não obstante reconheça a retratação como causa excludente da punibilidade estatal, urge ressaltar a pontual crítica feita por Damásio sobre os efeitos da retratação no âmbito jurídico:

A retratação deveria constituir causa de diminuição da pena e não de extinção da punibilidade. Suponha-­se que um sujeito lance ao vento as penas de um travesseiro do alto de um edifício e determine a centenas de pessoas que as recolham. Jamais será́ possível recolher todas. O mesmo ocorre com a calúnia e a difamação. Por mais cabal seja a retratação, nunca poderá́ alcançar todas as pessoas que tomaram conhecimento da imputação ofensiva. Não havendo reparação total do dano à honra da vítima, não deveria a retratação extinguir a punibilidade, mas permitir a atenuação da pena107.

Conforme se pode notar, de fato, é muito remota a possibilidade de que a retratação seja capaz de reparar integralmente o dano à reputação do ofendido, razão pela qual não deveria o legislador ter dado tamanha importância a esse ato do ofensor.

Nessa acepção, salienta-se que embora se trate de causa que exclui a punibilidade estatal, essa se dá porque a conduta deixa de ser considerada delituosa quando dá retratação. Desse modo, pode-se dizer que a retratação, igualmente o consentimento do ofendido, enquanto instituto jurídico, trata-se de causa excludente de ilicitude, vez que pressupõe a reparação do dano e, por conseguinte, subtrai a ilicitude da imputação caluniosa.

Ressalta-se, também, que a retratação deve ocorrer antes da sentença, conforme prevê o artigo 143, do Código Penal, o que permite concluir que não surtirá efeitos após esse momento processual. Entretanto, pergunta-se: a que momento processual se refere “até a sentença”? Refere-se à publicação da sentença, ao seu trânsito em julgado ou à intimação da parte quanto à sua prolação? Para Cezar Roberto Bitencourt, embora existam decisões que admitam a retratação até o julgamento do recurso interposto sobre a sentença, em seu entendimento, a previsão legal admite a retratação apenas até a publicação da sentença e sendo realizada após essa, mesmo em se tratando de sentença recorrível, não terá o condão de extinguir a punibilidade, devendo ser considerada apenas na dosimetria da pena108. No mesmo sentido, leciona Damásio de Jesus:

A expressão “antes da sentença” empregada no dispositivo significa “an­tes do juiz proferir a sentença”, não se tratando de decisão irrecorrível, admi­tindo­-se a retratação até o momento anterior à sua publicação em mãos do escrivão. [...]109.

Além disso, vale ressaltar que a retratação deve ser completa (abrangendo tudo o que foi dito contra o ofendido), podendo ser procedida pelo ofensor ou por seu procurador (com poderes especiais para tanto), não sendo necessária a aceitação da vítima110. No mesmo sentido, esclarece Damásio de Jesus: “[...] é preciso que seja cabal, i. e., total, abrangendo tudo o que foi dito pelo ofensor”111.

Assinale-se, ainda, que o legislador, embora não tenha dado ao ofendido a oportunidade de recusar à retratação, ao menos lhe garantiu que essa seja procedida pelos mesmos meios de comunicação por meio dos quais foi proferida a ofensa, conforme prevê o parágrafo único do artigo 143 do Código Penal.

É de ser relevado, também, que aquele que se julga ofendido, pode pedir explicações em juízo sobre determinada conduta. Suspeita-se que essa consista em imputação caluniosa que lhe atinge. Nesse sentido, prescreve o artigo 144, do Código Penal, em sua primeira parte: “Se, de referências, alusões ou frases, infere-se calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo [...]”112.

Trata-se de medida que visa a sanar dúvida sobre uma manifestação que não foi clara, ao demonstrar se possui ou não caráter caluniador ou, sendo claramente de caráter caluniadora, não foi explícita ao indicar quem seria o ofendido, de maneira que a pessoa que se sente ofendida pede esclarecimentos para averiguar se houve, de fato, uma conduta potencialmente lesiva à sua honra ou não. Nesse sentido, explica Damásio de Jesus:

Pode ocorrer que o sujeito manifeste frase em que não se mostre com evidência a intenção de caluniar, difamar ou injuriar, causando dúvida ao intérprete quanto à sua significação. Nesse caso, aquele que se sente ultrajado pode, em vez de requerer a instauração de inquérito policial ou iniciar ação penal, pedir explicações ao ofensor. [...]113.

Assim, através do pedido de explicações, a possível vítima busca esclarecimentos à pessoa que se manifestou e lhe gerou a desconfiança de que tal manifestação teria a finalidade de ofendê-la, de maneira que as explicações dadas podem ser determinantes para a instauração de inquérito policial ou o ajuizamento de ação penal.

Oportuno se torna dizer, ainda sobre as disposições do artigo 144 do Código Penal, que a segunda parte desse dispositivo legal deve ser interpretada com cautela, já que pode gerar a equivocada conclusão de que aquele a quem foram solicitadas as explicações, caso se recuse a prestá-las ou não as preste de forma satisfatória, a critério do Juiz, consequentemente será condenado.

Essa interpretação é nitidamente errônea, vez que além de ser incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, pela própria finalidade do pedido de explicações (sanar uma dúvida que pode evitar ou ocasionar a instauração de inquérito policial ou ajuizamento de ação penal), percebe-se que ao se valer do verbo “responder” (utilizando-se da palavra “responde”), o legislador pretendeu, claramente, prescrever que o agente será processado pelo fato do qual derivou o pedido de explicações. Nesse sentido, vale citar o aludido trecho do referido dispositivo legal: “aquele que se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa”114.

Em tom mais específico, pode-se dizer que o legislador tentou, sem sucesso, esclarecer que a recusa na prestação de informações em juízo, ou sua prestação insatisfatória, são argumentos suficientes para o recebimento da queixa-crime (no caso do crime de calúnia) e a consequente instauração da ação penal, caso, obviamente, o ofendido apresente a aludida queixa, que deverá, como qualquer outra, preencher os demais pressupostos processuais115.

Em consonância com o supra exposto, leciona Damásio de Jesus:

A redação do dispositivo é imperfeita. Sua segunda parte dá a entender que se o pretenso ofensor se recusa a dar explicações em juízo, ou as dá insatisfatórias, o juiz pode condená­-lo no processo do pedido. Isso, porém, não ocorre. O pedido de explicações em juízo segue o rito processual das notificações avulsas. Requerido, o juiz determina a notificação do autor da frase para vir explicá­-la em juízo. Fornecida a explicação, ou no caso da recusa, certificada esta nos autos, o juiz simplesmente faz com que os autos sejam entregues ao requerente. Com eles, aquele que se sentiu ofendido pode ingressar em juízo com ação penal ou requerer a instauração de inquérito policial. De notar-se que o juiz não julga a recusa ou a natureza das explicações. Havendo ação penal, é na fase do recebimento da queixa que o juiz, à vista das explicações, irá analisar a matéria, recebendo a peça inicial ou a rejeitando, considerando, in­clusive, para isso, as explicações dadas pelo pretenso ofensor116.

Portanto, não há de se concluir que a recusa ou prestação insatisfatória de explicações ocasionará a condenação do agente, até porque tal pedido de explicações segue o procedimento das notificações e interpelações judiciais (artigos 867 a 873, do Código de Processo Penal), não se aplicando a ele os procedimentos aplicados às ações penais (ritos ordinário, sumário e sumaríssimo)117.

Insta ressaltar, no entanto, que o pedido de explicações é inadmissível quando o fato imputado se encontra acobertado por causa extintiva da punibilidade (decadência etc.), bem como se o pedido não interrompe ou suspende o prazo decadencial118.

Quanto aos meios de execução do delito, ressalta-se que pode ser executado através da palavra escrita ou oral, bem como através de gestos ou meios simbólicos119.

Outra questão relevante, são as formas de materialização do crime de calúnia, as quais são descritas por Damásio de Jesus e consistem em: calúnia inequívoca ou explícita; calúnia equívoca ou implícita; e calúnia reflexa120.

Como os próprios nomes permitem concluir, a calúnia inequívoca é aquela que não deixa dúvidas sobre a imputação e seus sujeitos. Nesse sentido, vale citar o exemplo dado por Damásio: “[...] ‘fulano de tal é o sujeito que a polícia está procurando pela prática de vários estupros’”121.

A calúnia equívoca ou implícita, por sua vez, é aquela na qual o ofensor deixa subentendida a ofensa, conforme se depreende do exemplo dado por Damásio: “[...] ‘não fui eu que, durante muitos anos, me agasalhei nos cofres públicos’”122.

Já a calúnia reflexa, é aquela em que a falsa imputação de um fato definido como crime à determinada pessoa, consequentemente, afeta outra pessoa, de maneira que a imputação àquela também gera uma imputação à esta, determinado ambas como vítimas do delito. Sob tal divagação, convém citar o exemplo de Damásio de Jesus: “[...] dizer que um Promotor Público deixou de denunciar um indiciado porque foi subornado. No caso, o indiciado também é vítima de calúnia.”123.

Outro exemplo coerente para a calúnia reflexa, é a falsa imputação a uma pessoa da prática de um fato em que essa teria aceitado promessa de vantagem indevida de outrem, para si, de forma direta, em razão de sua função pública. Conforme se pode notar, tal fato imputado se amolda perfeitamente, a uma das condutas típicas do crime de corrupção passiva, previsto no artigo 317, do Código de Penal. Note-se, que para que o sujeito passivo da imputação tenha aceitado uma promessa de vantagem indevida, é necessário que alguém tenha lhe oferecido tal vantagem, pessoa essa que foi citada na imputação. Pois bem, é nesse momento que se percebe o sentido da palavra “reflexa”, pois à medida que se imputa um fato definido como crime de corrupção passiva a uma pessoa, o sujeito ativo também imputa um fato definido como crime de corrupção ativa a outra pessoa (o artigo 333, do Código Penal), dizendo, consequentemente, que ela ofereceu a vantagem que a outra aceitou.

Nesse mesmo sentido, Cezar Roberto Bitencourt explica a calúnia reflexa: “há calúnia reflexa quando, por exemplo, imputa-se, falsamente, a alguma autoridade ter aceitado suborno (corrupção passiva). Ora, o terceiro que teria oferecido a propina também é, reflexamente, vítima de calúnia (corrupção ativa)”124.

Não obstante, essa divisão doutrinária, oportuno se torna dizer que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no sentido de que o fato falsamente imputado, para que configure o delito de calúnia, deve ser específico e determinado. Isso permite concluir que apenas a calúnia inequívoca ou explícita e a reflexa, desde que também seja inequívoca, podem ser consideradas formas legítimas de calúnia.

Consoante essas considerações, cita-se os seguintes julgados do Supremo Tribunal Federal:

EMENTA QUEIXA. CALÚNIA. INÉPCIA. ART. 41 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. 1. É inepta a queixa que imputa ao querelado a prática do crime previsto no art. 138 do Código Penal sem narrar o fato com todas as suas circunstâncias. 2. Hipótese em que constou da imputação que o querelado teria dito fazer o querelante parte de uma quadrilha. 3. O crime de calúnia exige, para sua configuração, imputação de fato falso e determinado. Mera alusão ao nomen iuris do crime em ofensas pessoais não configura o crime de calúnia se não há imputação de fato circunscrito numa situação específica. 4. Queixa rejeitada125.

[...] II. CALÚNIA - TIPICIDADE. A tipicidade própria à calúnia pressupõe a imputação de fato determinado, revelador de prática criminosa, não a caracterizando palavras genéricas, muito embora alcançando a honra do destinatário. Precedentes do STF126.

[...] II. Queixa: crimes contra a honra. 1. Inaptidão da queixa, com relação à calúnia e à difamação, por não haver, no discurso incriminado, a imputação ao querelante da prática de fato determinado criminoso ou ofensivo à sua reputação127.

[...] 4. A difamação, como ocorre na calúnia, consiste em imputar a alguém fato determinado e concreto ofensivo a sua reputação. Necessária a descrição do fato desonroso128.

[...]. Além disso, no referido documento não há imputação ao querelante de fato criminoso específico, apenas referências genéricas a eventual extorsão, o que não configura calúnia129.

Calúnia: inexistência da imputação de fato criminoso determinado: impossibilidade, no caso, de desclassificação. Não constitui calúnia a imputação ao ofendido da prática de crimes identificados apenas pela menção às denominações legais dos tipos; [...]130.

Outrossim, também já julgou nesse mesmo sentido o Superior Tribunal de Justiça:

CALUNIA (COD. PENAL, ART. 138). TAL TIPO PENAL PRESSUPÕE FATO CONCRETO, DETERMINADO, FATO APTO A ENSEJAR AÇÃO PENAL. NÃO PRATICA O CRIME DE CALUNIA QUEM, NOS LIMITES DE SUA COMPETENCIA LEGAL, DESEMPENHA SEU PODER DE AGIR, COMO NO CASO EM COMENTO, OU PODER DE REPRESENTAR, EXPONDO, CONTANDO E RELATANDO FATOS. APLICAÇÃO DO ART. 43, INCISO I, DO COD. DE PR. PENAL. QUEIXA REJEITADA131.

RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A HONRA. CONFIGURAÇÃO DO DELITO DE CALÚNIA. NECESSIDADE DE IMPUTAÇÃO FALSA DE FATO CRIMINOSO. ALEGADA INÉPCIA DA QUEIXA. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE FATO TÍPICO E DETERMINADO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. RECURSO PROVIDO. - Para a caracterização do crime de calúnia é necessária a imputação a alguém de fato definido como crime, sabendo o autor da calúnia ser falsa a atribuição. Devem estar presentes, simultaneamente, a imputação de fato determinado e qualificado como crime; [...] Nos termos da jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal, se não há na denúncia descrição de fato específico, marcado no tempo, que teria sido falsamente praticado pela pretensa vítima, o reconhecimento da inépcia é de rigor, porquanto o crime de calúnia não se contenta com afirmações genéricas e de cunho abstrato (RHC 77.243/RJ, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe 06/12/2016). - No caso, está ausente da queixa a narrativa de que o querelado imputou ao querelante fato criminoso determinado, devidamente situado no tempo e espaço, com a indicação suficiente das circunstâncias específicas nas quais teria ocorrido. - Recurso em habeas corpus provido para trancar a Ação Penal n. 0162363-35.2013.8.06.0001, por inépcia da queixa, nos termos do art. 395, I, do Código de Processo Penal132.

Nessa vereda, Fernando Capez também leciona no sentido de que a imputação, no crime de calúnia, deve ser e fato determinado. A saber:

O fato criminoso deve ser determinado, ou seja, um caso concreto, não sendo necessário, contudo, descrevê‐lo de forma pormenorizada, detalhada, como, por exemplo, apontar dia, hora, local. Não pode, por outro lado, a imputação ser vaga, por exemplo, afirmar simplesmente que José é um ladrão. Basta que se apontem circunstâncias capazes de identificar o fato criminoso (p. ex., constitui crime de calúnia afirmar falsamente que Pedro matou Paulo porque este não lhe pagou uma dívida de grande vulto). Por outro lado, não constitui crime de calúnia a simples assertiva de que Pedro é um assassino133.

Entendimento diverso não é o de Cezar Roberto Bitencourt, que também defende que a imputação seja de fato determinado134. Por outro lado, salienta-se que esses mesmos doutrinadores (Capez135 e Bitencourt136), embora defendam que o fato imputado seja determinado, entendem ser admissível a calúnia equívoca ou implícita. Nesse ponto, nota-se clara contradição por parte de ambos doutrinadores, vez que como pode ser um fato determinado objeto de uma imputação equívoca ou implícita? Obviamente, percebe-se que se tratam de dois extremos, de maneira que se uma imputação é determinada, não poderá ser equívoca.

Tal conclusão se aufere, ao analisar o exemplo já citado, dado por Damásio de Jesus ao explicar a calúnia equívoca ou implícita. No aludido exemplo, o sujeito ativo diz que não foi ele, que durante anos se agasalhou nos cofres públicos. Conforme se pode notar, não há nada de determinado nessa afirmação. O fato de dizer que não foi ele quem fez alguma coisa, não significa, consequentemente, que está imputando a outrem tal coisa.

Ora, como é possível identificar que o agente está dizendo, implicitamente, que uma pessoa praticou um fato definido como crime, afirmando que ele próprio (o agente) não praticou tal conduta? É possível que o suposto ofensor simplesmente tenha proferido tais palavras com a finalidade de demonstrar que tem uma conduta ilibada, ou simplesmente demonstrar que aquele que se julga ofendido, já sofreu esse tipo de acusação ou queira acusar familiares ou pessoas próximas daquele que se julga ofendido.

Ademais, uma imputação implícita pode gerar diversas interpretações, o que torna demasiadamente difícil a identificação do exigido dolo específico de caluniar. No caso do aludido exemplo, mesmo, ao ter dito “agasalhar nos cofres públicos”, pode o agente ter o dolo de simplesmente dizer que o ofendido tem boas condições de vida, apenas, porque possui um cargo público, sem ter a finalidade de dizer que ele cometeu qualquer crime contra a administração pública. E se a finalidade, porém, fosse essa? Qual fato definido como crime seria o imputado? Peculato? Peculato-furto? Peculato-apropriação? Ou seria corrupção passiva? Ou ativa? Lavagem de dinheiro?

Nesse sentido, vale ressaltar que tão inequívoca deve ser a imputação, que não se admite, conforme se depreende dos julgados citados, nem mesmo a imputação do nomen iuris do crime como fato capaz de configurar o delito de calúnia. Assim, se não se admite nem sequer a imputação da denominação do crime a determinado sujeito, como fato capaz de configurar o delito de calúnia, por não se tratar de fato determinado e específico, notadamente não é possível concluir que pode ser qualificado como fato determinado e específico a prolação de palavras que não demonstram, com clareza, sequer se consistem em uma imputação caluniosa, bem como qual seria o fato definido como crime imputado e qual seria a vítima de tal imputação.

Nota-se, também, que uma imputação implícita ou equívoca tem seu potencial ofensivo significativamente reduzido, já que nem todas as pessoas que tomarem conhecimento dela lograrão êxito em detectá-la ou considerá-la como uma imputação caluniosa.

Destarte, conforme se nota, a admissão da calúnia inequívoca ou implícita abre um leque muito amplo de possibilidades, os quais inviabilizam a aferição certeira da existência ou não de dolo do agente e do caráter delituoso do fato. Daí porque se exige que o fato imputado seja determinado e específico.

Nessa vereda, oportuno se torna dizer que uma condenação não pode se embasar em meras suposições e presunções. Há de ter certeza do fato imputado e do dolo do agente, não sendo admissível uma modalidade de calúnia que amplia o leque de configurações do delito, inviabilizando o processamento e julgamento.

Portanto, pode-se concluir que fato determinado e específico é aquele que descreve as informações mínimas necessárias para identificação clara da conduta típica, que permite identificar, claramente, a imputação realizada (o que, como) e os sujeitos do delito (quem), mesmo que de forma superficial, mas de maneira da interpretação literal da imputação seja possível identificar seu encaixe ao tipo penal. Não se exige, porém, que haja riqueza de detalhes. Entretanto, não são admissíveis alegações vagas e ambíguas, as quais de alguma forma se apresentarem como ofensivas à honra daquele que se julga vítima, deverão ser objeto dos crimes de difamação ou injúria, conforme o caso.

Nota-se, então, que não há possibilidade de um fato equívoco ou implícito ser determinado, razão pela qual se concluir pela impossibilidade de que a calúnia seja equívoca ou implícita.

Oportuno é abordar, também, o momento consumativo do delito e se ele está sujeito à tentativa. Segundo Cezar Roberto Bitencourt, a consumação se dá quando a imputação falsa chega ao conhecimento de terceira pessoa, exigindo, porém, que haja publicidade na imputação, sob pena de inexistir ofensa à reputação137.

A publicidade da falsa imputação também é exigida por Fernando Capez como condição para ofensa à reputação da vítima, entretanto, ele salienta que basta que uma única pessoa tome conhecimento para que se tenha a publicidade138. No mesmo sentido, leciona Damásio de Jesus: “[...] Não é necessário que um número indeterminado de pessoas tome conhecimento do fato, sendo suficiente que apenas uma pessoa saiba da atribuição falsa”139. Embora Bitencourt não seja claro ao explicar o que entende por publicidade, entendimento mais adequado aparenta ser o de Damásio e Capez, já que o conhecimento por um único terceiro do fato falsamente imputado já é capaz de ofender a honra objetiva da vítima, vez que há potencial de que o terceiro altere negativamente sua percepção em relação à reputação da vítima.

Quanto à tentativa, vale dizer que a única possibilidade de o crime de calúnia se materializar como crime plurissubisistente (em que os atos executórios podem ser fracionados ou divididos) e, por conseguinte, possuir iter criminis, dá-se quando a calúnia for proferida através de meio escrito, razão pela qual, apenas nessa circunstância, haverá a possibilidade de tentativa.140141 Na calúnia verbal, no entanto, não se admite tentativa: “A calúnia verbal não admite a figura da tentativa. Ou o sujeito diz a imputação, e o fato está consumado, ou não diz, e não há conduta relevante para o Direito Penal [...]”142.

Em outro vértice, vale mencionar as causas de aumento de pena do delito de calúnia, as quais são específicas dos crimes contra honra e se encontram previstas no artigo 141, do Código Penal. Prevê, esse dispositivo legal, acréscimo de um terço da pena.

A primeira hipótese em que incide, a majorante se dá quando o crime for cometido “contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro”143 (inciso I, do artigo 141, do Código Penal). Segundo Fernando Capez, a razão pela qual há maior reprovabilidade criminal quando o ofendido for o Presidente da República se dá:

[...]. Em virtude da elevada função que ocupa, qualquer mácula à honra individual do Presidente da República pode representar desprestígio na sua vida política e, por conseguinte, afetar as diretrizes políticas da nação. Daí por que a maior reprovabilidade da conduta e, por consequência, o agrava‐ mento da sanção penal [...]144.

No que diz respeito aos chefes de governo estrangeiro, Capez explica que foi prevista “[...] por razões de política diplomática, ou seja, em função da manutenção das boas relações internacionais [...]”145, já que “[...] a ofensa à honra de representante de governo estrangeiro pode repercutir sobre toda a nação que ele representa [...]”146, ocasionando o fim das boas relações internacionais entre o Brasil e o governo estrangeiro147.

Nessa toada, ressalva Nélson Hungria: “a expressão ‘chefe de governo’ compreende não só́ o soberano ou chefe de Estado, como o ‘primeiro ministro’ ou ‘presidente de conselho’, pois a este cabe também a alta direção governamental”148. Conforme se pode notar, pontual é a ressalva de Hungria, uma vez que no sistema de governo parlamentarista, por exemplo, em que há a distinção entre chefe de governo e de estado, a ofensa a qualquer um desses pode influir, negativamente, nas relações internacionais entre o Brasil e o governo estrangeiro. Nesse caso, deve ser realizada uma interpretação teleológica sobre o dispositivo legal, vez que o legislador não foi técnico ao prescrever a majorante, não havendo em se falar de vedação de analogia in malam partem.

Há, também, majoração da pena quando o crime de calúnia for cometido “contra funcionário público, em razão de suas funções”149 (inciso II, do artigo 141, do Código Penal). Nessa hipótese, a maior reprovação do delito tutela a dignidade da função pública, notadamente porque uma ofensa a funcionário em virtude de suas funções, não só gera efeitos negativos à sua reputação, bem como atinge negativamente a imagem da administração pública150.

Está sujeito à majoração de sua pena, também, o sujeito que comete o crime de calúnia na presença de várias pessoas ou através de meios que facilite sua divulgação (inciso III, do artigo 141, do Código Penal). Essa majorante, “[...] tem em vista a maior facilidade de divulgação das ofensas irrogadas, o que pode acarretar maiores danos ao ofendido [...]”151. Salienta-se que “várias pessoas” deve ser interpretado como a exigência de no mínimo três, sem que dentre essas estejam incluídas o sujeito ativo e passivo do delito, eventual copartícipe, ou pessoas que não tenham capacidade de entender a ofensa (deficiente mental, criança, deficiente visual – caso a ofensa seja através de gestos – ou deficiente auditivo – caso a ofensa seja proferida por meio de palavras).152 Além disso, exige-se ainda, nesse caso, “[...] que o ofensor deve, necessariamente, ter conhecimento da presença de várias pessoas, pois, do contrário, não incidirá essa majorante, ante a ausência de dolo.”153.

Vale ressaltar, que o rádio, a televisão e os impressos em geral (revistas, jornais, periódicos, etc.) também podem ser considerados como meios que facilite a divulgação da calúnia, já que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF 130, considerou incompatível com a Constituição Federal a Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/67), que previa crimes contra honra praticados através dos mencionados meios de comunicação154.

Também ocorre o aumento da pena se o crime é cometido “contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos ou portadora de deficiência [...]”155 (inciso IV, do artigo 141, do Código Penal). A maior reprovabilidade da conduta delituosa se dá, aqui, notadamente, pela maior vulnerabilidade da honra dessas pessoas, em virtude da situação em que se encontram.

Sendo, ainda, a calúnia cometida mediante paga ou promessa recompensa, a pena é aplicada em dobro, conforme prevê o parágrafo único do artigo 141, do Código Penal. Conforme salienta Capez, “[...] trata‐se de motivo torpe, desprezível [...]”156. Nessa hipótese, oportuno ressaltar que a recompensa paga é aquela em que o recebimento daquilo que foi prometido já se deu antes da prática do delito, enquanto a promessa de recompensa consiste na garantia de que essa será entregue após a prática do delito, não se exigindo, porém, que a entrega se efetive157. Diferentemente das demais hipóteses, em que as circunstâncias majorantes estão ligadas ao fato, no caso do parágrafo único do artigo 141, do Código Penal, não há comunicação da circunstância majorantes aos coautores e partícipes (conforme prevê o artigo 30, do Código Penal), já que tem caráter pessoal (a paga ou promessa de recompensa está ligada ao agente, deriva dele, promete-se e se paga a ele, não havendo ligação direta com o fato).

Finalizada a análise das causas especiais de aumento de pena, também denominadas, na doutrina, como “formas majoradas”158159 ou “figuras típicas qualificadas”160, mister se faz distinguir o delito de calúnia e de denunciação caluniosa, previsto no artigo 339, do Código Penal.

Primeiramente, vale lembrar que a imputação no crime de calúnia não é de um crime (como ocorre na denunciação caluniosa), mas sim de um fato definido como crime, que nada mais significa do que um fato típico. Além disso, na denunciação caluniosa, não se exige apenas que haja uma imputação falsa, mas também que dessa imputação se instaure investigação policial, processo judicial, investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém. Nesse sentido, leciona Cezar Roberto Bitencourt:

Para a ocorrência do crime de denunciação caluniosa (art. 339) não basta a imputação falsa de crime, mas é indispensável que em decorrência de tal imputação seja instaurada investigação policial ou processo judicial. A simples imputação falsa de fato definido como crime pode constituir calúnia, que, como acabamos de examinar, constitui infração penal contra a honra, enquanto a denunciação caluniosa é crime contra a Administração da Justiça161.

Nessa vertente, vale ressaltar que se a calúnia e a denunciação caluniosa “[...] tiverem como base os mesmos fatos, a denunciação caluniosa absorve o crime de calúnia [...]”162, em virtude do Princípio da Consunção (ou absorção), que é aplicado “[...] quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta [...]”163.

Dessa forma, depreende-se que a narrativa da prática de um fato definido como crime na notitia criminis não é capaz de configurar o crime de calúnia, já que se exige o dolo específico de causar a instauração de investigação164, há óbice, também, em virtude do Princípio da Consunção. Nesse aspecto, ressalta-se que o dolo, no crime de denunciação caluniosa, será sempre direto165, já que é inimaginável que uma pessoa comunique falsamente (nesse caso, devendo conhecer a falsidade da imputação), a uma autoridade policial (tendo conhecimento de tal qualidade), a prática de um crime e não tenha a finalidade que este seja investigado, por exemplo.

Salienta-se, também, que sendo a imputação falsa, porém acreditando o noticiante que o fato imputando é verdadeiro, não haverá crime de denunciação caluniosa (pela falta do elemento subjetivo – saber o que o sujeito passivo da imputação era inocente), bem como não haverá o crime de calúnia, por ausência de dolo, exceto na hipótese de dolo eventual (quando o sujeito que faz a imputação suspeita que ela é falsa).

Quanto a simples narrativa do fato no requerimento de instauração de inquérito policial, oportuno se torna dizer que não há configuração do crime de calúnia se o narrador respeita os limites da narrativa, legalmente autorizada, previstos no artigo 5º, § 1º, “a”, do Código de Processo Penal166.

Ademais, cumpre ratificar, que diferentemente do que ocorre no crime de calúnia, na denunciação caluniosa deve estar presente o elemento subjetivo do tipo, qual seja, o conhecimento pelo autor do delito de que a pessoa à qual ele está imputando a prática de um crime, é inocente. Nessa vereda, explica Cezar Roberto Bitencourt:

A denunciação caluniosa, em especial, é um tipo peculiar, cujo elemento subjetivo está representado pela expressão “de que o sabe inocente”. Exige, em outras palavras, a consciência da inocência do imputado, quer por não ter sido o autor do crime, quer porque o crime não existiu167.

Dessa forma, depreende-se que não basta o agente ter o dolo específico e direto de causar a instauração de uma investigação criminal (por exemplo) imputando a determinado indivíduo a prática de um crime, exige-se também que ele saiba que a imputação é falsa.

Em outro turno, vale salientar que enquanto a calúnia se refere apenas a falsa imputação de fato definido como crime, a denunciação caluniosa se refere a crime e contravenção penal168, conforme se depreende do § 2º, do artigo 339, do Código Penal. Entretanto, é de ser relevado que a pena é reduzida à metade quando a imputação é de contravenção penal. Além disso, não se deve confundir a denunciação caluniosa de contravenção penal (§ 2º, do artigo 339, do Código Penal) com a falsa comunicação de contravenção penal (artigo 340, do Código Penal). Na primeira, como já ressaltado, há dolo específico de dar causa à instauração de algum dos procedimentos previsto no dispositivo legal, enquanto na segunda há apenas a intenção de provocar a ação de uma autoridade com a comunicação falsa da contravenção penal (ex: busca e apreensão, prisão em flagrante, etc.).

Ainda sobre a contravenção penal, cumpre ressaltar que, embora seja hábil a configurar o crime de denunciação caluniosa, a falsa imputação de contravenção penal não é capaz de configurar o delito de calúnia. Bitencourt explica que quando a lei quis reprovar a imputação falsa de fato contravencional, no mesmo dispositivo, que também reprova a falsa imputação de um crime, fez expressamente, sendo que tal imputação (de contravenção penal), se lesiva à honra objetiva da vítima, terá o condão tão somente de configurar o crime de difamação169.

No mesmo sentido, também leciona Fernando Capez: “[...] Diante da expressa disposição legal que exige que o fato seja definido como crime, a imputação de fato definido como contravenção poderá́ configurar o crime de difamação”170.

Em outra vereda, vale mencionar também, que não comete o crime de calúnia a testemunha que, compromissando-se a dizer a verdade, narra os fatos que conhece sobre a causa, mesmo que para tanto, tenha que atribuir a alguém um fato definido como crime, sendo que se o depoimento for falso, cometerá a testemunha o crime de falso testemunho e não de calúnia171.

Necessário se faz salientar que a calúnia, se proferida contra a pessoa falecida, também é capaz de configurar o crime de calúnia, conforme prevê o § 2º, do artigo 138, do Código Penal. Entretanto, nesse caso, embora a vítima da falsa imputação seja o morto, não se pode dizer que ele também será o sujeito passivo do crime172 (vítima do delito), já que com a morte, a pessoa deixa de integrar a sociedade e o campo da materialidade humana, de maneira que passa a não ser mais titular de direitos. Cezar Roberto Bitencourt explica que ao criminalizar a conduta de imputar falsamente a prática de um crime aos mortos, o legislador brasileiro se preocupou em lhes garantir respeito, preservar-lhes a dignidade e a reputação, porém não pretendeu lhes atribuir capacidade passiva, eis que a ofensa à memória do morto atinge os interesses que seus parentes têm de cultuá-la173.

Outro entendimento não seria mais coerente, já que a finalidade de dar à honra objetiva a qualidade de bem jurídico e, então, protegê-la juridicamente, é justamente evitar que a vítima da ofensa a esse bem jurídico não sofra os efeitos de uma reputação negativa por condutas que não praticou. Desse modo, não estando mais a pessoa no convívio social (o que apenas acontece com a morte), a razão para a proteção de sua honra deixa de ter um vínculo consigo, passando a se vincular aos seus parentes e no direito deles de que a reputação do falecido seja preservada no status que se encontrava quando de sua morte (se a imputação ocorreu após o falecimento) ou até a imputação do fato (se a imputação ocorreu antes do falecimento), seja porque podem ser afetados em um virtude de um eventual efeito “ricochete” da imputação, sofrendo abalos em suas reputações em razão do vínculo de parentesco que possuem com o morto caluniado, seja pela simples vontade de manterem preservada a reputação do ente querido.

Destarte, em analogia ao disposto no artigo 102, § 4º, do Código Penal, é possível afirmar que os sujeitos passivos do crime de calúnia contra uma pessoa já falecida são seus cônjuges, ascendentes, descendentes e irmãos, sendo, portanto, os titulares da objetividade jurídica, que se reflete na honra deles, que são parentes sobrevivos174.

Ao se aproximar o fim desse capítulo, ainda se torna oportuno ressaltar algumas hipóteses em que a falsa imputação de um fato pode ocasionar dúvida sobre a configuração do delito de calúnia, como em hipóteses já citadas (denunciação caluniosa, falso testemunho, etc.).

Algumas espécies de imputações podem parecer óbvias no sentido de que são incapazes de configurar o crime de calúnia, porém quando postas diante de um caso concreto podem causar dúvidas ao intérprete do direito, como é o caso da falsa imputação de fato atípico. Numa leitura inicial, analisando o tipo penal previsto no artigo 138 do Código Criminal Brasileiro, como dito, parece óbvio que a imputação de uma conduta atípica não configura o crime de calúnia, já que esse consiste na falsa imputação de um fato definido como crime, que nada mais é que um fato típico.

Entretanto, embora notadamente tal espécie de imputação não tenha, de fato, o condão de configurar o crime de calúnia175, conforme ressaltado, pode confundir o operador do direito no momento da intepretação do caso concreto. Nesse sentido, imagine-se a imputação a uma pessoa da prática de um fato definido como crime, na modalidade culposa, quando o crime da imputação só admite a modalidade dolosa. Ora, a princípio, a conduta imputada pode parecer típica, já que não é comum nos delitos previstos no Código Penal Brasileiro a previsão expressa em suas condutas típicas que essas são dolosas, embora a maioria delas sejam. Também é possível que o intérprete vincule o dolo ao agente e não à conduta, o que pode lhe causar, mais uma vez, a falsa impressão de que ela é típica.

Nota-se, então, que analisando o fato imputado à vítima, mesmo trazendo a imputação afirmação de que o ofendido teria agido com culpa, adequando-se tal imputação à literalidade do tipo, pode-se, equivocadamente, entender que a imputação é capaz de configurar o delito de calúnia. Tal equívoco se dá porque, embora não pareça, o dolo é um dos elementos da conduta e sendo essa um elemento do fato típico, aquele (dolo) se torna um elemento implícito desse (fato típico)176.

Se assim não fosse, o parágrafo único do artigo 18 do Código Penal deveria ser excluído do aludido diploma, eis que permite a compreensão de que sempre que houver a modalidade culposa nos delitos previstos no ordenamento jurídico pátrio, haverá previsão expressa e quando não houver, tratar-se-á de crime exclusivamente doloso. Trata-se, na verdade, do fundamente legal que sustenta a afirmação de que o dolo é elemento do tipo, já que abstratamente está previsto, de modo geral, para todos os delitos (exceto para aqueles em que o legislador foi expresso em dizer que só poderão ser culposos) e, concretamente, está na conduta do agente, que quando deixa de integrar a imaginação do agente e ingressa no mundo real, materializa-se em conjunto com outros elementos e se transforma em um fato, trazendo consigo o dolo.

Dando-se maior clareza à explicação, cita-se o exemplo dado por Fernando Capez:

[...] Por exemplo, afirmar falsamente que determinada pessoa, por imprudência, danificou o patrimônio público. Há aqui a imputação da prática de dano culposo contra o patrimônio público, que na realidade não configura o crime do art. 163, parágrafo único, uma vez que não há previsão da modalidade culposa do crime de dano”177.

Portanto, inequívoco é que a falsa imputação de um fato atípico não é capaz de configurar o crime de calúnia, porém deve-se atentar para todos os elementos do fato típico e não só para a literalidade do artigo.

Não configura o delito de calúnia, também, a falsa imputação da prática de ato de improbidade administrativa, já que tal ato tem natureza extrapenal178, isto é, trata-se de um ilícito que não integra a esfera pena, razão pela qual os atos de improbidade administrativa não são reprovados pelo direito penal, para o qual consistem em fatos atípicos.

Outrossim, insta salientar que a pena do crime de calúnia é de seis meses a dois anos de detenção e multa, conforme prevê o artigo 138 do Código Penal. Vale dizer, nesse aspecto, que a sanção penal é cumulativa, o que significa que se aplica pena de detenção (privativa de liberdade) e multa (pecuniária)179.

A ação penal, conforme já dito em alhures, em regra, “[...] é de exclusiva iniciativa privada [...]”180. No entanto, nas hipóteses dos incisos I (calúnia contra Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro) e II (calúnia contra funcionário público em razão de suas funções), do artigo 140 do Código Penal, a ação penal será pública condicionada, sendo que no caso do inciso I dependerá de requisição do Ministro da Justiça e no caso do inciso II dependerá de representação do ofendido, conforme prevê o parágrafo único do artigo 145 do Código penal.

Por fim, de um modo geral, é possível concluir que o crime de calúnia se configura com a falsa imputação de um fato definido como crime e não de um crime em si, bem como que sua incidência. Dada a diversidade de particularidades que possui, deve ser estudada caso a caso, o que não ocorre de modo diverso quando a falsa imputação ocorre contra o inimputável, conforme se verá.

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Sobre os autores
Carlos Eduardo Pires Gonçalves

Graduado em Direito pela Universidade Paranaense (2004). Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Penal pela Unp - Universidade Potiguar. Professor das disciplinas de Processo Penal II, Direito Penal III e IV, e Prática Processual Penal I e II no curso de Graduação em Direito da Unifamma. Leciona em diversos cursos de pós-graduação na área criminal.

Guilherme Rodrigues de Figueiredo

Graduado em direito pelo Centro Universitário Metropolitano de Maringá - UNIFAMMA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Carlos Eduardo Pires ; FIGUEIREDO, Guilherme Rodrigues. Da (im)possibilidade de o inimputável figurar como sujeito passivo no crime de calúnia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6927, 19 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72254. Acesso em: 28 mar. 2024.

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