Capa da publicação Calúnia: inimputável pode ser vítima?
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Da (im)possibilidade de o inimputável figurar como sujeito passivo no crime de calúnia

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4 DA INIMPUTABILIDADE

No presente capítulo conceituará a inimputabilidade e suas causas, previstas no Código Penal Brasileiro, bem como tecerão breves considerações históricas sobre a inimputabilidade. Além disso, será abordado o principal efeito da inimputabilidade na esfera penal.

Segundo Cezar Roberto Bitencourt, a civilização romana foi uma das civilizações que mais contribuíram para o Direito, vez que “[...] oferece um ciclo jurídico completo, constituindo, até́ hoje, a maior fonte originária de inúmeros institutos jurídicos181. Para Bitencourt, “[...] Roma é tida como síntese da sociedade antiga, representando um elo entre o mundo antigo e o moderno [...]”182, ou seja, a civilização romana representa a evolução da sociedade antiga no campo do Direito, pois nela se evidenciam a criação de diversos institutos jurídicos que ainda têm vigência no Direito Penal, bem como se apresentam como essenciais ao Direito e a exclusão de valores do campo do direito como, por exemplo, a vingança privada183.

Nessa vereda, ressalta-se que na sociedade romana primitiva, que se iniciou em 753 a.c., período da fundação de Roma, prevalecia o Direito Consuetudinário, em que a pena era utilizada em caráter sacral, com a confusão entre a figura do Rei e do Sacerdote. Posteriormente foram sendo criados diplomas legais, que impunham limitações à vingança privada, bem como davam início à distinção de crimes públicos e privados, a catalogação e tipificação de comportamentos tidos como criminosos, etc184.

Não obstante, o Direito Romano é reconhecido como um dos fundadores dos mais importantes institutos jurídico-penais atualmente vigentes. A inimputabilidade, enquanto instituto do Direito Penal, veio a se desenvolver apenas após à vigência Lei das XII Tábuas (450 a.C. a 476 d.C.), que marcou a passagem da Realeza à República, embora já naquela época, houvesse um tratamento diferenciado aos considerados “menores de idade”185.

Segundo José Manuel de Sacadura Rocha, “[...] a proteção à criança ou a concepção de que o menor não tem ainda a consciência de todos os malefícios de seus atos (Código Penal, art. 27), não orbitava na concepção jurídica dos romanos.”. Destarte, em que pese o “menor de idade” não recebia as mesmas penas que os demais indivíduos. Era, duramente, castigado quando cometia um delito, sendo punido com o açoite e com a obrigação de indenizar a pessoa prejudicada186.

No entanto, mister se faz ressaltar, que embora os romanos não tenham realizado uma sistematização dos institutos do Direito Penal, com a evolução do Direito Penal Romano, que teve seu ápice nos anos de 533 d.C. e 534 d.C., com o Corpus Juris Civilis, do imperador Justiniano, depreende-se que foi o responsável pela origem de diversos institutos penais que na atualidade continuam a integrar a moderna dogmática jurídico-penal, dentre os quais se encontra a inimputabilidade187.

Do Direito Romano ao Direito Alemão, cita-se a Escola Moderna Alemã, que teve como precursores Von Liszt, Adolphe Prins e Von Hammel. Essa escola, em 1888, já fazia distinção entre imputáveis e inimputáveis188, sendo que “O fundamento dessa distinção, contudo, não é o livre-arbítrio, mas a normalidade de determinação do indivíduo [...]”189. Dessa forma, no entendimento dessa escola, “[...] Para o imputável a resposta penal é a pena, e para o perigoso, a medida de segurança, consagrando o chamado duplo-binário [...]”190.

Em 1891, com o “nascimento” da terza scuola italiana, também conhecida como escola crítica, que foi a primeira das correntes ecléticas, a discussão sobre a inimputabilidade e sua distinção com a imputabilidade passou a ter protagonismo191. Essa corrente se originou da Escola Clássica e da Positiva192, já que essas “[...] foram as duas únicas escolas que possuíam posições extremas e filosoficamente bem definidas [...]”193. Dessas escolas, surgiram outras correntes que buscavam a conciliação dos preceitos de ambas e que uniram penalistas orientados por novas ideias, os quais se esforçavam (principalmente os primeiros penalistas dessas correntes) para manterem o vínculo com os preceitos (preservarem suas “raízes”) das primeiras escolas194. Bitencourt denomina essas novas correntes de ecléticas (das quais faz parte a terza scuola), justamente porque visavam preservarem os dogmas das Escolas Clássica e da Positiva, buscando a conciliação desses e criando novos preceitos195.

A terza scuola acolhe o princípio da responsabilidade moral e, por isso, distingue os inimputáveis dos imputáveis.196 Entretanto, vale ressaltar que essa corrente “[...] não aceita que a responsabilidade moral fundamente-se no livre-arbítrio, substituindo-o pelo determinismo psicológico [...]”197, conforme também defende a Escola Alemã Moderna. Tal determinismo psicológico, prevê que “[...] o homem é determinado pelo motivo mais forte, sendo imputável quem tiver capacidade de se deixar levar pelos motivos [...]”198. Assim, depreende-se que para terza scuola, inimputável é o homem que não consegue se determinar pelos motivos e finalidades de suas condutas. Daí porque depreende-se que essa escola já defendia a diferenciação da sanção penal entre imputáveis e inimputáveis, acolhendo a aplicação de medida de segurança para estes e pena para aqueles199.

Um pouco mais tarde, por volta de 1905, surge a Escola Técno-Jurídica, encabeçada por Arturo Rocco. Essa escola tinha como uma de suas principais características, análogas à terza scuola, o acolhimento da responsabilidade moral (responsabilidade livre) e a aplicação de medida de segurança aos inimputáveis200.

Asseverando a diversidade de tratamentos dados aos inimputáveis que se afere da análise da história do Direito, especialmente levando em consideração o Direito Comparado, Cláudio Brandão salienta que a Constitutio Criminalis Carolina (do Direito Alemão) previa tratamento diferenciado ao menor de quatorze anos, os quais, nos termos do art. 164 do aludido diploma legal alemão, quando enquadrados na qualidade de ladrões, segundo à referida norma, não poderiam ser condenados à morte201.

Por sua vez, o Direito Penal italiano da Idade Média, já estabelecia que eram penalmente inimputáveis os menores de sete anos, chamados de infantes.202 Os maiores de sete anos e menores de quatorze também recebiam tratamento diferenciado no Direito Penal italiano, conforme salienta Cláudio Brandão:

[...] os menores entre sete e quatorze anos, chamados de impúberes, seriam submetidos a uma junta de especialistas, os quais decidiriam sobre a sua capacidade segundo o critério infantae proximi, que era impunível, ou pubertati proximi, que tinha uma punição atenuada; a partir de quatorze anos o sujeito já era plenamente imputável, sendo tratado como adulto. [...]203.

Percebe-se, então, que na Itália da Idade Média, havia a distinção entre imputáveis, inimputáveis e “parcialmente imputáveis”, assemelhando-se esses aos hoje denominados pela doutrina204 de “semi-imputáveis” (art. 26, parágrafo único, do Código Penal). Os menores de sete anos de idade eram inimputáveis, já que presumiam, os italianos, que esses sujeitos não tinham a capacidade de entender o caráter criminoso de suas condutas, em virtude da sua idade.

Já aqueles que tinham entre sete e quatorze anos de idade, poderiam ser considerados inimputáveis, como os menores de sete anos, ou “parcialmente imputáveis”, os quais embora não tivessem total discernimento à época dos fatos, mas possuíam discernimento parcial, tendo, assim, a possibilidade de conhecerem o caráter criminoso ou ilícito de sua conduta, embora sem a mesma capacidade que um adulto. Depreende-se, também, que esses sujeitos eram submetidos a uma “junta de especialistas”, que decidiriam se consideravam o agente impunível (por ser considerado inimputável) ou punível com pena atenuada (se considerado “parcialmente imputáveis”).

Os maiores de quatorze anos, por outro lado, eram considerados como adultos e, por conseguinte, imputáveis e puníveis. É de se verificar, também, que o Direito Penal italiano da Idade Média, embora tenha definido e reconhecido a inimputabilidade, apenas utilizava o critério da idade para estabelecer a inimputabilidade, deixando fora desse conceito os doentes e deficientes mentais.

Assemelhando-se aos italianos, os portugueses, em seu Código Penal de 1886, estabeleciam norma semelhante:

[...] haveria inimputabilidade até́ dez anos de idade; dos dez aos quatorze anos, a imputabilidade era condicionada ao discernimento; a partir dos quatorze anos até́ a idade adulta, o sujeito era considerado imputável, mas tinha sua responsabilidade atenuada. [...]205.

Conforme se nota do trecho acima citado, como os italianos, até uma certa idade, os portugueses presumiam a incapacidade de discernimento do agente (os italianos, até os sete anos de idade e os portugueses, até os dez), dentre uma idade e outra (os italianos, entre os sete e os quatorze anos de idade e, os portugueses, dos dez aos quatorze ano de idade) consideravam ser possível que o sujeito tivesse ou não discernimento, razão pela qual condicionavam a inimputabilidade a uma análise.

A diferença, entretanto, está no tratamento aos maiores de quatorze anos. A partir dessa idade, ambos os países presumiam a existência de discernimento. Não obstante, na Itália, eram considerados imputáveis e tratados como adultos, enquanto em Portugal, estavam sujeitos a penas atenuadas até atingirem a idade adulta. Vale ressaltar, porém, que esse tratamento (atenuação da pena) dado aos maiores de quatorze anos, em Portugal, era dado aos que possuíam entre sete e quatorze anos na Itália, quando identificado que possuíam discernimento.

Os romanos, por seu turno, só consideravam inimputáveis os infantes. Por um período, na época das Pandectas (escritos compilados), consideravam infantes apenas as crianças que não conseguiam se expressar de forma clara quanto às suas ideias, método que gerava diversas incertezas, no momento de averiguação dessa primitiva inimputabilidade. Desse modo, Arcádio, imperador romano, à época, estabeleceu que infância, para fins penais, perduraria apenas até os sete anos de idade206.

Como em Portugal e na Itália, conforme já mencionado, os infantes romanos tinham a presunção em seu favor de que lhes faltava compreensão (intellectus rei)207, razão pela qual não eram responsabilizados criminalmente por seus atos.

Não obstante, aqueles que, por suas vezes, possuíam idade igual ou superior a sete anos, não recebiam o mesmo tratamento dado aos infantes. Eles eram chamados de impúberes e a idade estabelecida para definição dessa qualidade variava de acordo com o sexo da pessoa. Tratando-se de homens, eram considerados com impúberes aqueles que possuíam idade entre sete e quatorze anos, enquanto mulheres, entre sete e doze anos de idade. O critério utilizado para aferição da responsabilidade dos impúberes era o mesmo utilizado no Direito Penal italiano da Idade Média, qual seja, dos infantiae proximi e a dos pubertati proximi. De forma sucinta, é possível dizer que o primeiro determina o julgamento do impúbere de forma mais próxima aos infantes, enquanto o segundo, de forma mais próxima aos adultos208.

No Brasil, o Código Criminal do Império previa a inimputabilidade dos menores de quatorze anos, conforme explica Tobias Barreto:

O nosso Código seguio o exemplo da maioria dos povos cultos, e fixou também a menoridade de quatorze annos, como razão peremptória de escusa por qualquer acto delictuoso. Em termos technicos, o Código estabeleceu também, em favor de taes menores, a presumptio juris et de jure da sua immaturidade moral. [...]209.

Tal previsão se encontra inserta no § 1º do artigo 10 do aludido diploma legal. A saber: “Art. 10. Tambem não se julgarão criminosos: 1º Os menores de quatorze annos. [...]”210.

Segundo Tobias Barreto, a previsão da inimputabilidade, embora tenha sido na época da edição do Código Criminal do Império uma prática comum em outras nações211, foi uma reminiscência do Direito Romano212. O mesmo autor, criticando a idade utilizada como critério para inimputabilidade no Brasil (quatorze anos), reconhece que outros países que criaram novos códigos penais posteriores ao brasileiro estabelecendo idade inferior à posse adotada, mas afirma que haviam outros códigos vigentes àquela época que seguiam os mesmos critérios que o Código Penal Imperial, tais quais os Códigos da Saxonia, Brunswick, Hamburgo e Zurich213.

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Assinale-se, no entanto, que embora o Código Criminal do Império tenha previsto a inimputabilidade dos menores de quatorze anos, presumindo-se a ausência de discernimento desses sujeitos, percebe-se que tal presunção era juris tantum (presunção relativa), já que permitiu em seu artigo 13 a possibilidade de tal presunção ser afastada se provado que o agente possuía discernimento à época dos fatos214.

É de ser relevado, ainda, que o aludido diploma criminal também eximia de responsabilidade os “loucos de todos os gêneros”, conforme previsto no § 2º de seu artigo 10. Entretanto, salienta-se que o mesmo enunciado excepcionava a previsão de inimputabilidade caso os “loucos de todos os gêneros” possuíssem lúcidos intervalos e nesses cometeram o crime.

Desse modo, depreende-se que a previsão do Código Imperial era ampla e como tal, abrangia “[...] a totalidade não só dos que padecessem de qualquer desarranjo no mecanismo da consciência [...]”215 (deficientes mentais, por exemplo), mas também “[...] dos que deixassem de attingir, por algum vício orgânico, o desenvolvimento normal das funcções [...]”216. Assim, independente da causa, eram considerados inimputáveis quaisquer sujeitos que se encontravam na condição de “loucos”, estando, portanto, isentos de imputação jurídica217.

Além disso, vale salientar que o legislador do Código Imperial previu, também como inimputável, “Os que commetterem crimes violentados por força, ou por medo irresistíveis”218 (artigo 10, § 3º, do Código Criminal do Império) e “Os que commetterem crimes casualmente no exercicio, ou pratica de qualquer acto licito, feito com a tenção ordinaria”219 (artigo 10, § 4º, do Código Criminal do Império). Conforme se pode notar, o legislador incluiu na seara da inimputabilidade causas autônomas hoje definidas como excludentes de ilicitude e da culpabilidade do agente, pelo Código Penal vigente, quais sejam, respectivamente, o exercício regular de direito (artigo 23, III, do Código penal e artigo 10, § 4º, do Código Criminal do Império) e coação física ou moral irresistível (artigo 22 do Código Penal e artigo 10, § 3º, do Código Criminal do Império).

Conforme se pode notar, os atualmente considerados inimputáveis, pelo Código Penal Brasileiro, nem sempre possuíram tal qualidade, sendo que, de um modo geral, embora fossem tratados com certa brandura, ainda eram submetidos a penas. Nota-se, também, que mesmo ainda com certa deficiência, o Direito Penal brasileiro, desde o Império, a partir do Código Criminal de 1830, acompanhava a evolução histórica da inimputabilidade e a desenvolvia no país.

Além disso, é possível concluir que a inimputabilidade preenchia seu espaço no Direito Penal desde os primórdios da existência desse, quando ainda nem sequer era considerado como Ciência, mesmo que, na maioria das civilizações, tal aparecimento e atuação ocorresse de forma implícita, “engatinhando” ao status de instituto do jurídico-penal.

Superadas, portanto, as considerações históricas, passa-se à conceituação da inimputabilidade e apresentação de suas espécies.

A doutrina penalista estabelece três sistemas, por meio dos quais se define os critérios fixadores da inimputabilidade, quais sejam: biológico, psicológico e biopsicológico. O sistema biológico define a saúde mental como critério para aferição da responsabilidade criminal do agente, bastando, dessa forma, que o agente seja portador de uma enfermidade ou grave deficiência mental, para que seja considerado como inimputável. O sistema psicológico, por seu turno, dispensa a existência de perturbação mental, exigindo apenas que o agente não possua, à época do delito, capacidade de entender o caráter ilícito de sua conduta e determinar-se de acordo com esse conhecimento. Já o sistema biopsicológico, consiste na fusão dos dois outros sistemas, estabelecendo, assim, que apenas pode ser considerado inimputável o sujeito que, por enfermidade ou retardamento mental, era, ao tempo do crime, incapaz de entender o caráter ilícito de sua conduta e determinar-se a partir dela220.

No Código Penal brasileiro, como regra geral, foi adotado pelo legislador o método biopsicológico, muito embora, excepcionalmente, adote-se o sistema biológico para tutela exclusiva do menor de dezoito anos221. Assim, nesse caso, não há a necessidade de averiguação da capacidade discernimento do agente, já que, em virtude de sua faixa etária, há presunção juris et de jure (presunção absoluta) da ausência da aludida capacidade de discernimento.

Dessa forma, é possível afirmar que a inimputabilidade consiste na ausência de capacidade do agente de agir com consciência da ilicitude de sua conduta, em virtude de sua falta de discernimento necessário, o qual pode ser entendido como a incapacidade do agente de entender o caráter ilícito de sua conduta e determinar sua ação de acordo com esse entendimento, sendo necessário, ainda, que essa falta de discernimento derive-se da falta de sanidade ou maturidade mental. Nesse sentido, explica Cezar Roberto Bitencourt:

[...] A falta de sanidade mental ou a falta de maturidade mental podem levar ao reconhecimento da inimputabilidade, pela incapacidade de culpabilidade. Podem levar, dizemos, porque a ausência da sanidade mental ou da maturidade mental constitui um dos aspectos caracterizadores da inimputabilidade, que ainda necessita de sua consequência, isto é, do aspecto psicológico, qual seja, a capacidade de entender ou de autodeterminar-se de acordo com esse entendimento222.

Oportuno se torna dizer que, embora o Direito Penal brasileiro tenha adotado o sistema biológico de inimputabilidade para os menores de dezoito anos, a conceituação supra expendida também engloba tais sujeitos, vez que, como já ressaltado, no caso deles, há presunção absoluta de que não possuem tal capacidade de entender e agir conforme esse entendimento.

Melhor se pode entender a inimputabilidade, ainda, quando conceituado seu antônimo, qual seja, a imputabilidade, a qual se resume, sucintamente, na presença da capacidade de entender e querer, conforme esclarece Váter Kenji Ishida:

Imputabilidade é a capacidade do agente de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. Então, existem dois elementos na inimputabilidade: o intelectivo e o volitivo. O sujeito deve ter sanidade mental e maturidade223.

Esse conceito, vale dizer, tem previsão expressa no artigo 26 do Código Penal, o qual estabelece que “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”224.

Denota-se, então, que sendo a imputabilidade a capacidade que possui o agente criminoso de compreender o caráter ilícito de sua conduta e, a partir dessa compreensão, permanecer querer ou manter hígida sua vontade de executá-la, por consequência, a inimputabilidade é justamente a ausência de capacidade do agente de entender que sua conduta é criminosa; definir, após saber de tal reprovabilidade, se, de fato, pretende executá-la e de considerar as consequências de tal conduta.

Não obstante, não se exige a ausência de ambas as incapacidades (entender e querer) para que se afira inimputabilidade, bastando apenas que falte ao agente uma delas. Isso porque, inexistindo capacidade de entender, não haverá capacidade de se determinar, uma vez que a presença dessa, pressupõe a presença daquela. Além de que nada adianta entender o caráter ilícito de sua conduta se o agente não tem capacidade de sopesar, comparar, levar em consideração tal entendimento em sua ação.

Quanto às causas de inimputabilidade, estão previstas nos artigos 26 (já citado), 27 e 28, § 1º do Código Penal, quais sejam: doença mental; desenvolvimento mental incompleto; desenvolvimento mental retardado; embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior.

A doença mental pode ser considerada como a perturbação psíquica de qualquer natureza, conforme explica Fernando Capez:

[...] é a perturbação mental ou psíquica de qualquer ordem, capaz de eliminar ou afetar a capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou a de comandar a vontade de acordo com esse entendimento. Compreende a infindável gama de moléstias mentais, tais como epilepsia condutopática, psicose, neurose, esquizofrenia, paranoias, psicopatia, epilepsias em geral etc. [...]. 225

Segundo Eugênio Pacelli e André Callegari, no conceito de doença mental: “[...] estariam enquadradas as enfermidades psíquicas, que coincidem na psiquiatria com a noção de psicoses, ou seja, aqui estariam incluídas todas as perturbações patológicas da atividade mental [...]”226. Dessa forma, é possível dizer que estão incluídas nessa classificação “[...] todas as perturbações do âmbito intelectual ou emocional que escapam do marco das vivências compreensíveis e respondem a uma lesão ou enfermidade do cérebro [...]”227.

Por outro lado, ressalta-se que a dependência de substâncias psicotrópicas que suprimem a capacidade do agente de entender ou querer, também é considerada, nos termos do artigo 45 da Lei n. 11.343/2006, como doença mental e, como tal, exclui a imputabilidade do agente, se retirar-lhe a capacidade de entender e querer228.

Outrossim, há quem entenda que doenças de natureza não mental também sejam capazes de excluir a imputabilidade, desde que atinjam a capacidade de entender ou querer do agente. Nesse sentido, explica Fernando Capez:

[...]. Bettiol ressalva que a imputabilidade cessa, também, na hipótese de enfermidade de natureza não mental que atinja “a capacidade de entender e querer”. É o que se verifica nas enfermidades físicas com incidências sobre o psiquismo, tal como ocorre nos delírios febris produzidos pelo tifo, na pneumonia ou em outra doença qualquer que atue sobre a normalidade psíquica229.

Não obstante, insta esclarecer que não basta, simplesmente, que o agente possua a doença mental. É necessário, também, que tal enfermidade lhe tire a capacidade de entender ou de querer. Salvo no caso do menor de 18 (dezoito) anos, em relação ao qual seu desenvolvimento mental é presumidamente considerado reduzido pela legislação penal (artigo 27 do Código Penal). Nas demais causas de inimputabilidade, aplica-se o mesmo entendimento dado à doença mental.

Mister se faz ressaltar, que o desenvolvimento mental é aquele que gera a incapacidade de entender e querer, pelo fato de o agente não ter sua mentalidade evoluída o suficiente para tanto. Ou seja, o agente criminoso não possui a maturidade mental desenvolvida, de maneira suficiente, para entender o caráter criminoso de sua conduta e se determinar a partir desse entendimento, o que determina, então, seu desenvolvimento mental como incompleto.

Fernando Capez, ao conceituar essa excludente de imputabilidade, cita circunstâncias que lhe ocasionam:

[...] é o desenvolvimento que ainda não se concluiu, devido à recente idade cronológica do agente ou à sua falta de convivência em sociedade, ocasionando imaturidade mental e emocional. No entanto, com a evolução da idade ou o incremento das relações sociais, a tendência é a de ser atingida a plena potencialidade. [...]230.

Capez também acrescenta que é nessa seara que se encaixam os menores de 18 (dezoito) anos e os indígenas, que não estão introduzidos e adaptados à sociedade, sendo que no caso destes, é indispensável a realização de exame pericial para inferir a inimputabilidade231.

Assim, é possível afirmar que o desenvolvimento mental incompleto, diz respeito à maturidade do agente, que tem potencial capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento, mas ainda não possui tal capacidade por não ter atingido a idade adequada considerada pela lei - dezoito anos - ou por ainda não estar integrado à sociedade civilizada (indígenas que não vivem nesse espaço social, por exemplo).

Por sua vez, o desenvolvimento mental retardado, conforme se depreende de seu próprio nome, ocorre quando o desenvolvimento mental da pessoa é incompatível com sua idade. Nesse sentido, explica Fernando Capez:

[...] é o incompatível com o estágio de vida em que se encontra a pessoa, estando, portanto, abaixo do desenvolvimento normal para aquela idade cronológica. Ao contrário do desenvolvimento incompleto, no qual não há maturidade psíquica em razão da ainda precoce fase de vida do agente ou da falta de conhecimento empírico, no desenvolvimento retardado a capacidade não corresponde às expectativas para aquele momento da vida, o que significa que a plena potencialidade jamais será́ atingida232.

Assim sendo, percebe-se que embora em sua idade seja possível que o sujeito tenha o completo desenvolvimento mental, em virtude de uma enfermidade psíquica, tal desenvolvimento é retardado, de maneira que jamais alcançará a completude de tal desenvolvimento. Sobre o assunto, exemplifica Fernando Capez:

É o caso dos oligofrênicos, que são pessoas de reduzidíssimo coeficiente intelectual. Classificam-se numa escala de inteligência decrescente em débeis mentais, imbecis e idiotas. Dada a sua quase insignificante capa- cidade mental, ficam impossibilitados de efetuar uma correta avaliação da situação de fato que se lhes apresenta, não tendo, por conseguinte, condições de entender o crime que cometerem233.

Além dos oligofrênicos, compreendem-se na categoria do desenvolvimento retardado os surdos-mudos, que, em consequência da anomalia, não têm qualquer capacidade de entendimento e de autodeterminação. Nesse caso, por força do déficit de suas faculdades sensoriais, o seu poder de compreensão também é afetado234.

Em outra vereda, oportuno se torna dizer que embora a embriaguez não seja, via de regra, capaz de excluir a imputabilidade do sujeito (artigo 28, inciso II, do Código Penal), se a ingestão da bebida alcoólica ou substância de efeitos análogos for proveniente de caso fortuito ou força maior, bem como for completa, terá, excepcionalmente, o condão de ocasionar a inimputabilidade do agente.

Esclarece-se, que a embriaguez prevista no inciso II, do artigo 28 do Código Penal não deriva apenas da ingestão de álcool, podendo também ser ocasionada, para fins penais, por qualquer substância que gere efeitos análogos ao do álcool.235 Desse modo, nesse conceito deve ser incluída “[...] qualquer substância de efeitos psicotrópicos, sejam eles entorpecentes (morfina, ópio etc.), estimulantes (cocaína) ou alucinógenos (ácido lisérgico)”236.

Define-se, então, a embriaguez, como “[...] causa capaz de levar à exclusão da capacidade de entendimento e vontade do agente, em virtude de uma intoxicação aguda e transitória causada por álcool ou qualquer substância de efeitos psicotrópicos [...]”237.

É necessário ressaltar que a embriaguez pode ser não acidental (voluntária - dolosa ou intencional - ou culposa), e acidental, bem como quanto à sua eficácia também pode ser completa ou incompleta.238 A embriaguez voluntária ocorre quando “[...] o agente ingere a substância alcoólica ou de efeitos análogos com a intenção de embriagar-se [...]”239, enquanto na culposa, “[...] o agente quer ingerir a substância, mas sem a intenção de embriagar-se, contudo, isso vem a acontecer em virtude da imprudência de consumir doses excessivas [...]240. A embriaguez acidental, por sua vez, é aquela que ocorre sem dolo e sem culpa, em virtude de um acidente e se trata da única espécie de embriaguez, capaz de gerar a inimputabilidade do agente, desde que completa241.

Nesse liame, vale dizer que a embriaguez completa é aquela que retira toda a capacidade de entendimento e vontade do agente, enquanto a incompleta retira parcialmente tal capacidade242.

Oportuno se toma dizer, que a embriaguez acidental pode decorrer de caso fortuito ou força maior243. O caso fortuito ocorre “[...] quando circunstâncias imprevisíveis levam o agente à embriaguez [...]”244. Fernando Capez assim exemplifica o caso fortuito:

[...] alguém que tropeça e cai de cabeça em um tonel de vinho, embriagando-se. É também o caso de alguém que ingere bebida na ignorância de que tem conteúdo alcoólico ou dos efeitos psicotrópicos que provoca. É ainda o caso do agente que, após tomar antibiótico para tratamento de uma gripe, consome álcool sem saber que isso o fará perder completamente o poder de compreensão. [...]245.

A força maior, por seu turno, “[...] deriva de uma força externa ao agente, que o obriga a consumir a droga. [...]”246. A título de exemplo, vale mencionar “[...] o caso do sujeito obrigado a ingerir álcool por coação física ou moral irresistível, perdendo, em seguida, o controle sobre suas ações. [...]”247.

Salienta-se, também, que a embriaguez acidental por caso fortuito é aquela em que o sujeito, sem agir com dolo (vontade ou intenção de se embriagar) ou culpa (negligência, imprudência ou imperícia), acaba se embriagando. Dessa forma, depreende-se que o caso fortuito está relacionado à conduta do agente, vez que por mais que não tenha tido a intenção, nem tenha sido negligente, imprudente ou imperito ao ingerir determinada bebida, a ação que gerou a embriaguez foi executada pelo próprio agente. Por sua vez, na embriaguez por força maior, a ação que gera a embriaguez não é executada por ele mesmo, mas sim por uma força externa248.

Não obstante, conforme já mencionado, a embriaguez deve ser completa, sendo que, caso seja incompleta, consistirá em hipótese de culpabilidade diminuída e terá o condão apenas de reduzir a pena do agente, nos termos do § 2º, artigo 28, do Código Penal249.

Além disso, pergunta-se: quando a embriaguez atingirá sua completude? Segundo Yuri Coelho Carneiro, a embriaguez possui três fases, quais sejam: excitação, depressão e comatosa. A embriaguez incompleta ocorre quando o agente atingiu apenas a primeira fase (excitação), enquanto a completa se evidencia quando o agente alcança qualquer uma das últimas fases (depressão e comatosa)250.

A doutrina ainda conceitua outras espécies de embriaguez, tais quais a crônica, patológica e a preordenada. A primeira se verifica quando “[...] o agente sofre de uma doença crônica decorrente de vício que o leva a alterações no estado mental que não permitem que compreenda a realidade, de forma a comportar-se e entender a ilicitude dos fatos [...]”251. Isto é, nesse caso, o agente possui um vício que lhe gerou uma doença crônica, sendo que este altera seu estado mental. A embriaguez patológica se assemelha à crônica, vez que consiste no estado de embriaguez derivado de uma dependência ou de um vício, como no caso dos alcoólatras, por exemplo252. Por sua vez, a embriaguez preordenada é verificada quando o agente se embriaga com a finalidade específica de delinquir253. Não há, entretanto, de se confundir essa espécie de embriaguez com a dolosa, já que nesta o agente tem a intenção apenas de se embriagar, enquanto naquela, o agente se embriaga para com a intenção de cometer um delito254.

Ressalta-se que, tanto a embriaguez patológica quanto a crônica, consistem em doenças mentais e, portanto, excluem a imputabilidade do sujeito, porém não na condição de embriaguez propriamente dita255256. Quanto à embriaguez preordenada, além de não excluir a imputabilidade do agente, constitui causa agravante genérica (art. 61, II, l, do CP)257.

Finda a exposição e análise das causas de inimputabilidade, bem como de suas peculiaridades, passa-se para análise do último assunto deste capítulo, qual seja: o principal efeito da inimputabilidade.

Mister se faz ressaltar, que para melhor compreensão do efeito da inimputabilidade, diante da conduta delituosa, faz-se necessário, preliminarmente, tecer algumas considerações sobre a culpabilidade.

Existem três teorias principais que explicam culpabilidade, tais quais: teoria psicológica, teoria psicológico-normativa e teoria normativa pura258.

A teoria psicológica prevê, sinteticamente, que “[...] a culpabilidade, esgotando-se em suas espécies dolo e culpa, consiste na relação psíquica entre o autor e o resultado, tendo por fundamento a teoria causal ou naturalística da ação [...]”259. Segundo Damásio de Jesus, essa teoria fracassou por ter reunido, equivocadamente, fenômenos completamente distintos, quais sejam, o dolo e a culpa260. Para ele, “[...] Se o dolo é caracterizado pelo querer e a culpa pelo não querer, conceitos positivo e negativo não podem ser espécies de um denominador comum [...]”261.

Por sua vez, a culpabilidade segundo a teoria psicológico-normativa “[...] não é só́ um liame psicológico entre o autor e o fato, ou entre o agente e o resultado, mas sim um juízo de valoração a respeito de um fato doloso (psicológico) ou culposo (normativo) [...]”262. Assim, depreende-se que essa teoria se diferencia da teoria psicológica à medida que entende que o elemento caracterizador da culpabilidade não é o dolo ou a culpa, mas a reprovabilidade da conduta do agente, de maneira que o dolo e a culpa não podem ser considerados como espécies da culpabilidade, mas apenas como seus elementos (um somente poderá estar presente quando o outro não estiver)263. Embora reconheça o avanço que essa teoria representa, Damásio de Jesus discorda dela, vez que entende que o dolo não está na culpabilidade264.

A teoria normativa pura, adotada por Damásio, “Retira o dolo da culpabilidade e o coloca no tipo penal. Exclui do dolo a consciência da ilicitude e a coloca na culpabilidade [...]”265. De acordo com essa teoria, a culpabilidade possui os seguintes elementos: imputabilidade, potencial conhecimento do injusto (potencial conhecimento da ilicitude) e exigibilidade de conduta diversa266. Damásio, com aparente razão, entende que foi essa teoria a adotada pelo Direito Penal brasileiro, já que ao prever a conduta típica, a presença do dolo está pressuposta, consistindo esse em elemento subjetivo do tipo267, conforme já esboçado no terceiro capítulo desse trabalho.

Em virtude disso, é possível afirmar que a culpabilidade “[...] É um puro juízo de valor, puramente normativa, não tendo nenhum elemento psicológico [...]”268, o que significa dizer que a culpabilidade consiste na simples identificação de que o agente era, ao tempo da ação imputável; se é exigível conduta diversa desse sujeito na situação em que ele se encontrava e se era possível que ele tivesse conhecimento da ilicitude de sua conduta, não havendo, portanto, qualquer elemento ou circunstância de natureza psicológica aferível na culpabilidade269.

Infere-se, então, que em se tratando a imputabilidade de elemento da culpabilidade e, consequentemente, condição sem a qual essa não restará configurada, nota-se que a inimputabilidade se trata de uma causa excludente de culpabilidade. Logo, o principal efeito prático da inimputabilidade é excluir a culpabilidade da conduta do agente.

Finalmente, esgotadas as considerações necessárias sobre à inimputabilidade, bem como feita a análise do crime de calúnia, suas peculiaridades e demonstrados os aspectos constitucionais afetos ao tema, configura-se viável a abordagem do assunto principal desse trabalho.

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Sobre os autores
Carlos Eduardo Pires Gonçalves

Graduado em Direito pela Universidade Paranaense (2004). Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Penal pela Unp - Universidade Potiguar. Professor das disciplinas de Processo Penal II, Direito Penal III e IV, e Prática Processual Penal I e II no curso de Graduação em Direito da Unifamma. Leciona em diversos cursos de pós-graduação na área criminal.

Guilherme Rodrigues de Figueiredo

Graduado em direito pelo Centro Universitário Metropolitano de Maringá - UNIFAMMA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Carlos Eduardo Pires ; FIGUEIREDO, Guilherme Rodrigues. Da (im)possibilidade de o inimputável figurar como sujeito passivo no crime de calúnia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6927, 19 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72254. Acesso em: 28 abr. 2024.

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