INTRODUÇÃO
A violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres é considerada um grave problema de saúde pública em muitos países.
Atualmente, no Brasil, essa problemática vem tomando uma vasta proporção diante das diversas denúncias de abusos sexuais, principalmente, envolvendo menores de 14 anos, intitulados como vulneráveis pela Lei nº 12.015/09.
Uma das formas de abuso sexual infantil, é o tipificado pelo Código Penal Brasileiro denominado de estupro de vulnerável, sendo um crime clandestino, geralmente praticado longe dos olhos de testemunhas, as escuras, em locais ermos, isolados ou em ambientes privados, ocorrendo na maioria das vezes em uma relação intrafamiliar, o que acaba dificultando seu combate.
Este artigo foi elaborado com o objetivo de aprofundar o estudo diante da figura do agressor sexual infantil, para que seja atribuído um tratamento adequado, e uma pena proporcional, de acordo com a ação praticada e cada tipo de agressor sexual, em razão da ineficácia da pena, hoje, atribuída a esse sujeito, tendo em vista que, nem todo abusador sexual infantil é considerado pedófilo e que nem todo pedófilo é um abusador sexual.
Para iniciar o artigo, importante se faz compreender, que a violência sexual contra crianças e adolescentes faz parte do dia a dia da sociedade brasileira, sendo dever de todos, ou seja, da família, da sociedade e do Estado, assegurar todos os direitos fundamentais e específicos para esses infantes, combatendo toda forma de negligência, descriminação, exploração, violência, crueldade e opressão que venham a sofrer ou se sintam ameaçados de sofrer, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988 e a Lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente.
Posteriormente, se faz necessário abordar a nova tipificação, denominada de Estupro de Vulnerável, instituído pela Lei 12.015/09, onde se tutela a dignidade sexual das pessoas em situação de vulnerabilidade. No presente artigo, será analisado somente os vulneráveis, quanto a classificação etária, ou seja, os menores de 14 anos, estabelecidos no caput do art. 217-A do Código Penal Brasileiro, apesar do tipo penal apresentar vulneráveis, também, no § 1º do referido artigo. Analisando, ainda, o entendimento que tem prevalecido nos Tribunais a respeito da vulnerabilidade ser absoluta, ou seja, não se admite prova em contrário. E, ainda, a palavra da vítima como de extrema relevância para solucionar os casos de abusos sexuais.
Em seguida, é importante estudar o agressor sexual infantil para entender que nem todo abusador sexual infantil é um pedófilo, e, mesmo que esse termo seja o mais utilizado pela mídia, pela sociedade e pelos operadores de direito, não é o correto, acarretando, assim, uma punição inadequada a esse agressor, crescendo, diante disso, o número de reincidências na prática do crime. Ainda, é significativo compreender que a pedofilia é uma parafilia, sendo crime somente se for exteriorizada.
Por fim, o último capítulo abrange o real objetivo do artigo, ou seja, analisar qual seria o tratamento adequado para o agressor sexual infantil, tendo em vista, a ineficácia da pena de prisão aplicada hoje a todos que cometem violência sexual contra crianças. Sendo, ainda, relevante diferenciar os tipos de agressores sexuais infantil, afim de que se tenha um tratamento eficaz, para que a pena possa cumprir a sua real finalidade que é integração social deste indivíduo.
1. A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Cenas e relatos de violência sexual já fazem parte do dia a dia da sociedade brasileira, estando relacionada a questões sociais, econômicas e culturais. Geram repulsa, inconformismo e exigem medidas capazes de resolver de imediato o problema.
Ocorre, que a violência sexual se torna um transtorno ainda maior quando se trata de vítimas como crianças e adolescentes. Pois, devido estarem em processo de desenvolvimento encontram-se em situações de maior vulnerabilidade.
Ainda que esse público fosse o mais vulnerável e propenso a ser atingido pela violência, as iniciativas legislativas frente a proteção dos direitos da criança e do adolescente só ocorreram, no Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, através de seu art.227, caput, sendo o marco da mudança da Doutrina da Situação Irregular, que reconhecia esses jovens como meros objetos da intervenção do Estado, não havendo diferença entre um jovem que estivesse em situação de carência, abandono ou delinquência, para a Doutrina da Proteção Integral onde passaram a ser sujeito de todos os direitos universalmente reconhecidos e merecedores dessa total proteção, em razão de se encontrarem em estágio de desenvolvimento físico, psíquico e social. Vejamos:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Para garantir a efetivação dos direitos fundamentais, tornou-se necessária a elaboração de um instrumento legal, nascendo assim a Lei Federal nº 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, que garantiu aos menores de 18 anos seus direitos fundamentais especiais e específicos, como direito à vida, saúde, liberdade, respeito, dignidade, convivência familiar e comunitária, educação, cultura, esporte, lazer, profissionalização e proteção do trabalho, devendo serem universalmente reconhecidos.
Ocorre que com o advento do Estatuto, crianças e adolescentes passaram a ser destinatários da proteção integral, tendo um tratamento jurídico diferenciado, em razão de sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, gerando responsabilidade à família, a comunidade em geral e ao Poder Público, assegurar a efetivação desses direitos. Desse modo, afirma o art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Cabe salientar, que é de total importância saber identificar a pessoa em desenvolvimento como criança ou adolescente, devido ao tratamento especial estabelecido pelo ECA, a cada categoria. Sendo assim, criança é quem está na faixa de 0 (zero) a 12 (doze) anos incompletos e adolescentes àquelas pertencentes à faixa de 12 (doze) a 18 (dezoito) anos (incompletos). Como preceitua o art.2º do Estatuto:
Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
Além de serem assegurados todos esses direitos fundamentais e específicos aos menores de 18 anos, no ECA, bem como na Constituição Federal, proibiu-se qualquer pratica lesiva ao pleno desenvolvimento dessas pessoas, como se estabelece nos seguintes artigos:
Constituição Federal de 1988
Art.227
§ 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
Estatuto da Criança e do Adolescente
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Sendo assim, o ECA garante que todos esses sujeitos devem ser tratados, independentemente de raça, cor, sexo, etnia ou classe social, como pessoas que precisam de cuidados, atenção e proteção para o seu pleno e devido desenvolvimento.
Acontece que casos de afronta aos direitos desse público infanto-juvenil são cada vez mais comuns, principalmente, quanto aos casos de violência sexual infantil, sendo a de dentro do convívio familiar mais difícil de ser detectada e combatida, pois o crime costuma ser camuflado e imperceptível, em razão do lugar onde é praticado, na maioria das vezes dentro de sua própria casa, e, cujos os agressores costumam ser de fácil identificação da vítima, como seus parentes, pessoas próximas ou de confiança dessas e/ou de seus pais.
O abuso sexual infantil é qualquer envolvimento de uma criança ou adolescente em uma atividade sexual que ela não compreende, nem consente, podendo ser com um adulto, ou entre uma criança, ou adolescente que devido à idade ou o grau de desenvolvimento está em uma relação de confiança, poder, coação e sedução com a criança abusada, nem sempre estando ligada a um ato violento, podendo ser beijo e toque lascivo, que não deixam marcas visíveis, o que dificulta a comprovação.
Vale ressaltar, que essa violência ocorre em todas as classes sociais, porém nas classes mais baixas esses abusos são mais visíveis, chegando com mais frequência aos serviços públicos de atendimento.
Determina o Estatuto da Criança e do Adolescente que:
Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Art. 56. Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de:
I - maus-tratos envolvendo seus alunos;
A atuação junto a esse público facilita o combate e prevenção contra o abuso sexual infantil, já que as crianças não sabem agir ou reagir diante dessa situação por não entenderem que estão sofrendo um tipo de violência. É uma situação complexa e difícil de enfrentar por parte de todos os envolvidos, quanto a criança e a família, a exposição de que a violência ocorre dentro da própria família é humilhante e constrangedora, e quanto aos profissionais muitos ainda não sabem agir perante esse problema.
Dessa forma, diante do crescente número de relatos e denúncias de abusos sexual contra crianças e adolescentes, cada vez mais essa problemática é debatida pelos poderes públicos e pela sociedade, visando trazer soluções que combatam essa violência sexual infantil.
Ocorre, que é difícil lidar com essas questões, em um mundo marcado pelo ódio e pela polarização, sendo assim, a sociedade cansada e revoltada com esse tipo de violência tão devastadora para a vida de uma criança, que deixam sequelas que irão acompanhá-la por toda a sua vida, atingindo-a fisicamente, socialmente e em sua saúde psíquica, acaba exigindo urgentemente soluções do poder estatal e de nossos aplicadores do direito.
Acontece que, o sistema jurídico buscando agir de acordo com o que a sociedade espera dele, acaba por não tratar como deveria essa problemática, agindo de forma altamente punitiva, criando leis e penas cada vez mais severas, como se fosse resolver o problema, onde afinal só estariam “tampando o sol com a peneira”, em razão de não tentar tratar a raiz desse crime tão violento e devastador, ou seja, o próprio agressor sexual.
Importante asseverar, que a função da punibilidade do Estado não é a pena em si, como um castigo severo com intenção de causar dor ao indivíduo, mas sim de tornar o criminoso sexual apto a ser inserido novamente na sociedade.
Com isso, a ineficácia da aplicação da pena e a falta de tratamento adequado para a raiz da problemática, que são os agressores sexuais, faz com que no momento que esse indivíduo voltar a conviver em sociedade, ele volte, certamente, a delinquir.
2. O CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Em 2009, com a vigência da Lei nº 12.015, houveram várias mudanças no contexto dos crimes sexuais na Legislação Penal Brasileira, a começar pela nomenclatura do Título VI do Código Penal Brasileiro, onde antes esses crimes eram tratados sob o título de “Dos Crimes Contra os Costumes”, sendo agora intitulado como “Dos Crimes contra a Dignidade Sexual”.
Segundo Greco (2013, p.453), “o foco da proteção já não era mais a forma como as pessoas deveriam se comportar sexualmente perante a sociedade do século XXI, mas sim, a tutela da sua dignidade”.
Atualmente, o bem jurídico de extrema relevância tutelado pela norma penal é a dignidade sexual, se protege a dignidade da pessoa humana no campo sexual, além da liberdade sexual, ou seja, liberdade de escolha dos parceiros e da relação sexual plena e sadia para o desenvolvimento dessa sexualidade.
A dignidade sexual, é um princípio que deriva de um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito, que é o princípio da dignidade da pessoa humana, estabelecida como um dos fundamentos do art 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988. Conforme estabelece Capez (2016, p.19), “a tutela da dignidade sexual, no caso, está diretamente ligada à liberdade de autodeterminação sexual da vítima, à sua preservação no aspecto psicológico, moral e físico, de forma a manter íntegra sua personalidade”.
Afirma Nucci (2012, p.937):
O que o legislador deve policiar, à luz da Constituição Federal de 1988, é a dignidade da pessoa humana, e não os hábitos sexuais que porventura os membros da sociedade resolvam adotar, livremente, sem qualquer constrangimento e sem ofender direito alheio, ainda que, para alguns, possam ser imorais ou inadequados.
E, ainda, segundo Nucci (2014,p. 32):
Dignidade sexual diz respeito à autoestima do ser humano, em sua intima e privada vida sexual, não cabendo qualquer ingerência estatal nesse contexto, a não ser para coibir atuações violentas contra adultos e agressivas à formação de crianças e jovens.
Diante dos crescentes e absurdos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, outra importante inovação ocasionada pela Lei nº 12.015/09 foi a criação dos “Crimes sexuais contra vulnerável”, sendo o objeto de estudo nesse artigo o crime de Estupro de Vulnerável, tipificado no art. 227-A do Código Penal Brasileiro, onde se tutela a dignidade sexual das pessoas em situação de vulnerabilidade, além de buscar proteger o processo de formação da sexualidade das vítimas elencadas no caput do referido artigo, ou seja, os menores de 14 anos. Senão vejamos:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º. Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2º. (VETADO)
§ 3º. Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4o Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
Portanto, constitui crime praticar conjunção carnal, ou qualquer outro ato libidinoso, com consentimento ou não, contra pessoa em situação de vulnerabilidade, assim entendidos, de acordo com o caput do art. 217-A, e o § 1º do Código Penal, os menores de 14 anos de idade, os enfermos e deficientes mentais, quando não tiverem necessário discernimento para a prática do ato, bem como aqueles que por qualquer causa, não possam oferecer resistência sexual.
Para Capez (2016, p.60), “vulnerável é qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. A lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc.”
Observa-se assim que, o legislador ao modificar este dispositivo substitui-o a presunção de violência, antes prevista no art. 244. do Código Penal, pela atual designação de vítimas vulneráveis, buscando solucionar a discursão a respeito da presunção de violência ser absoluta (não admitindo prova em contrário) ou relativa (admitindo prova em contrário).
Ocorre que não se remete mais a presunção de violência, mas sim em relação ao estado que se encontra a vítima, ou seja, seu estado de vulnerabilidade, extinguindo qualquer tipo de presunção, sendo proibida, absolutamente, a relação sexual com essas vítimas. Nesse sentido, precedentes jurisprudenciais:
HABEAS CORPUS. ESTUPRO. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. CONSENTIMENTO. IRRELEVÂNCIA. REVOGAÇÃO PELA LEI N.º 12.015/09. NOVATIO LEGIS IN PEJUS. ABOLITIO CRIMINIS INEXISTENTE. 1. A presunção de violência, anteriormente prevista no art. 224, alínea a, do Código Penal, tem caráter absoluto, afigurando-se como instrumento legal de proteção à liberdade sexual da menor de quatorze anos, em face de sua incapacidade volitiva, sendo irrelevante o seu consentimento para a formação do tipo penal do estupro. 2. Embora a Lei n.º 12.015/09 tenha retirado do texto penal incriminador a figura da violência presumida, não se verifica, na espécie, hipótese de abolitio criminis, já que o novo texto legal, que substituiu o art. 224, alínea a, do Código Penal, impõe uma obrigação geral de abstenção de conjunção carnal e de ato libidinoso com menores de 14 anos -art. 217-A, do mesmo Diploma Repressivo. 3. Ordem denegada
(STJ HC 83788 MG 2007/0122271-5. Rel. Min. LAURITA VAZ, quinta turma. DJe: 26/10/2009).
APELAÇAO CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. FATO OCORRIDO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 12.015/2009. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. IRRELEVÂNCIA. CONDENAÇAO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. 1. As provas dos autos são uníssonas no sentido de que o réu/apelante (21 anos), de forma voluntária e consciente, mesmo após ser advertido sobre a idade da vítima, manteve relações sexuais com a menor de 14 anos, incorrendo na conduta descrita no art. 217-A do CP. 2. Na espécie, o consentimento da vítima - tal como revelado nos autos - é irrelevante para a caracterização do crime de estupro de vulnerável, pois o tipo penal em questão tem a finalidade de "proteger esses menores e punir aqueles que, estupidamente, deixam aflorar sua libido com crianças e adolescentes ainda em fase de desenvolvimento" (GRECO, Rogério. Código penal: comentado. 5. ed. Niterói, Rio de Janeiro: Impetus, 2011, p. 655). 3. Com efeito, a Lei nº 12.015/2009, ao inserir o art. 217-A no CP, substituiu o regime de presunção de violência contra criança ou adolescente menor de 14 anos (considerada relativa por parcela da doutrina e jurisprudência), então previsto no art. 224 (revogado), pela situação de vulnerabilidade absoluta de tais menores, tornando inválido o eventual consentimento da vítima, por não possuir formação e o necessário discernimento para as práticas sexuais. 4. Recurso desprovido, mantendo-se a sentença condenatória
(TJES ACR 47100050450 ES 47100050450. Rel. CATHARINA MARIA NOVAES BARCELLOS. Primeira Câmara Criminal. DJe: 02/04/2012
Com isso, nos Tribunais, tem prevalecido o entendimento de que a vulnerabilidade é absoluta. Não importando o consentimento do ofendido menor de 14 anos, nem mesmo o consentimento dos pais ou responsáveis, nem sua compleição física e, ainda, que a vítima já tenha tido experiência sexual pregressa, bastando que o agente pratique qualquer tipo de relação sexual com os menores de 14 anos de idade para que ele seja enquadrado no ilícito penal, com a pena prevista para reclusão de 8 (oito) à 15 (quinze) anos. Desse modo, preceitua a súmula do Supremo Tribunal de Justiça:
Súmula 593 do STJ
O crime de estupro de vulnerável configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.
Acontece que, mesmo com essa mudança, ainda perdura o debate doutrinário e jurisdicional quanto ao caráter relativo e absoluto, agora em relação a vulnerabilidade, quanto a classificação etária (12 – 13 anos).
Entretanto, tem prevalecido nos tribunais o entendimento de ser a vulnerabilidade absoluta, não tendo, a meu ver, o legislador acompanhado a evolução da sociedade, além de não ter considerado o que preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), referente a idade e o grau de desenvolvimento desses sujeitos, gerando problemas no mundo jurídico, por não ser apreciado, conforme a legislação, o conhecimento ou o discernimento da suposta vítima, e sim sua situação de vulnerabilidade.
Sustenta Nucci (2014, p.114) que: “O legislador brasileiro encontra-se travado na idade de 14 anos, no cenário dos atos sexuais, há décadas. É incapaz de acompanhar a evolução dos comportamentos na sociedade. Enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente proclama ser adolescente o maior de 12 anos, a proteção penal ao menor de 14 anos continua rígida. Cremos que já devesse ser tempo de unificar esse entendimento e estender ao maior de 12 anos a capacidade de consentimento em relação aos atos sexuais”.
Afirma, ainda, que: “A sociedade não pode vendar-se à realidade social, pois meninas iniciam a vida sexual cada vez mais cedo, seja por serem estimuladas pelos programas televisivos, cuja qualidade educacional decai periodicamente, seja por amizades de variadas idades, ou por outros motivos igualmente relevantes”.
Importante asseverar, que nos crimes sexuais a palavra da vítima é de extrema relevância, levando em conta que na maioria dos casos que ocorre a violência sexual o fato envolve apenas o sujeito ativo e passivo, além de ocorrer em locais ermos, isolados ou em ambiente privado, longe de testemunhas, tornando-se difícil a prova da ocorrência do delito. Sendo a palavra da vítima essencial na apuração desse crime.
Vejamos julgados nesse sentido:
APELAÇÃO CRIMINAL. CÓDIGO PENAL . ART. 217-A, CAPUT, C/C ART. 61, INCISO II, ALÍNEA F, NA FORMA DO ART. 71, CAPUT. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. CONTINUIDADE DELITIVA. ABSOLVIÇÃO. INSURGÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. SENTENÇA REFORMADA. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. No caso concreto, há elementos de prova suficientes a fundamentar um juízo condenatório no que tange ao crime de estupro de vulnerável. A vítima, que contava com apenas 03 anos de idade à época dos fatos, relatou, através do método do depoimento sem dano, que o acusado fez “cocô e xixi” em sua boca. O depoimento da vítima foi corroborado pelo testemunho de sua genitora, para quem ele contou detalhes acerca dos fatos, bem como pelo depoimento de seu genitor, restando claro que o acusado colocava o pênis na boca da vítima, vindo a ejacular. Soma-se a isso, que a vítima apresentou sintomas e indícios compatíveis com a hipótese de abusos sexuais, situação que foi confirmada na avaliação psíquica realizada, bem como no parecer psicológico. Ademais, tratando-se de crime que, por sua própria natureza, é praticado fora das vistas de testemunhas, a palavra da vítima é de vital importância para a determinação da materialidade e da autoria do delito. Sentença absolutória reformada. Recurso provido
(TJRS AP. 70058901505. Rel. Lizete Andreis Sebben. Quinta Câmara Criminal. DJe: 14/05/2014).
(NUCCI, 2014, p. 142): “TJRJ: “Nos crimes sexuais, a palavra da vítima, ainda que de pouca idade, tem especial relevância probatória, ainda mais quando harmônica com o conjunto fático-probatório. A violência sexual contra criança, que geralmente é praticado por pessoas próximas a ela, tende a ocultar-se atrás de um segredo familiar, no qual a vítima não revela seu sofrimento por medo ou pela vontade de manter o equilíbrio familiar. As consequências desse delito são nefastas para a criança, que ainda se apresenta como indivíduo em formação, gerando sequelas por toda a vida. Apesar da validade desse testemunho infantil, a avaliação deve ser feita com maior cautela, sendo arriscada a condenação escorada exclusivamente neste tipo de prova, o que não ocorreu no caso concreto, pois a condenação foi escorada nos elementos probatórios contidos nos autos, em especial pela prova testemunhal, segura e inequívoca de E. E S., irmão e cunhada do acusado, que presenciaram a relação sexual através da fechadura da porta, bem como pelo depoimento da avó que também presenciou o fato, sem contar com a confissão do acusado e do laudo pericial que atestou rupturas antigas e cicatrizes no hímen”
(Ap. 0009186-56.2012.8.19.0023/RJ, Rel. Marcus Basilio, Primeira Câmara Criminal. DJE. 24.04.2013) (NUCCI, 2014, p. 142).
Sendo assim, considerando a vulnerabilidade absoluta, e, ainda a dificuldade na comprovação de uma denúncia de abuso, devido a palavra da vítima ser uma das únicas provas em um crime que muitas vezes não deixa vestígio, além da desproporcionalidade da pena mínima aplicada se comparada ao bem jurídico lesionado, a pena prevista para esse crime, a ser cumprido inicialmente em regime fechado, chega a ser severa demais para o indivíduo, pois mesmo que ele fique preso por um tempo, no momento em que sair vai continuar a delinquir, devido à falta de tratamento adequado e humanizado para essas pessoas inseridas em um sistema carcerário falido e superlotado. Não sendo a prisão a melhor solução.