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Um incêndio culposo?

Agenda 30/05/2019 às 16:10

Reflete-se sobre o incêndio que vitimou o Museu Nacional sob a ótica do direito penal.

Anoto, preocupado, um interessante editorial do jornal O Globo, do dia 6 de abril do corrente ano:

“Não foi raio, balão, pico de energia, muito menos um incendiário, o vilão que transformou em cinzas o valioso — e irrecuperável —acervo do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. Foi descaso mesmo. A minuciosa perícia feita pela Polícia Federal concluiu que o incêndio que destruiu a mais antiga instituição científica do país, na noite de 2 de setembro do ano passado, foi causado por uma sobrecarga num aparelho de ar condicionado instalado no auditório. Uma gambiarra na fiação pode ter contribuído para agravar o quadro. Segundo os peritos, o equipamento que pegou fogo estava ligado, junto com outros dois, a um mesmo disjuntor, o que contraria normas de segurança. Foi constatado ainda que o sistema não tinha aterramento, como recomendado. Apesar dessas falhas, isso, por si só, talvez não causasse o estrago que se viu. Mas outros desleixos ajudaram o fogo a se propagar. Os peritos enfatizaram que o museu não tinha equipamentos básicos de combate a incêndio. Como sprinklers (chuveirinhos) ou portas corta-fogo. Não contava também com hidrantes de parede. Os detectores de fumaça não estavam acionados, e várias câmeras internas não funcionaram. Segundo afirmou ao GLOBO Wesley Pinheiro, consultor de prevenção e combate a incêndios, o Museu Nacional teria de contar com uma brigada antifogo, por ser um prédio construído antes de 1976, quando entrou em vigor a legislação contra incêndio. Mas ela também não existia, pelo menos no horário em que surgiram as chamas, quando a instituição já estava fechada. Impressiona o pouco caso com que a UFRJ e a direção do museu trataram a segurança do acervo de valor inestimável.Após o incêndio, soube-se que estava prevista a instalação de um sistema contra incêndio no palácio, ao custo de R$ 2,3 milhões, que seriam financiados pelo BNDES. O fogo chegou antes. Fica evidente que sempre foi um erro um dos principais museus do país ser administrado por uma universidade que, em que pese a excelência acadêmica, tem graves problemas para administrar o patrimônio.”

Como se lê do site do Museu Nacional, “destinado às ciências, à antigüidade, à diferentes civilizações, o Museu refletiu a preocupação de D. Pedro II em selecionar e preservar suas áreas de interesse: uma prática cultural relacionada à acumulação e preservação.

Tudo começou com a união do Gabinete de Mineralogia, Numismática e de um Herbário, todos herdados da Imperatriz Leopoldina, sua mãe. Durante a metade do século XIX, D. Pedro II foi acrescentando à coleção muitos objetos armazenados e recebidos dos distintos visitantes, desde viajantes, chefes de estados a naturalistas, além de peças trazidas de suas viagens. Seus objetos ilustravam a diversidade dos povos, fauna e flora dos diferentes continentes, conhecido por alguns naturalistas estrangeiros como um espaço das ciências, assim o imperador passou a chamar este espaço como “muzeu”.

Tratar-se-ia de incêndio culposo?

Bem ensinou Magalhães Noronha (Direito Penal, volume III, 10ª edição, pág. 359) que incêndio não é qualquer fogo, mas tão-só o que acarreta risco para pessoas ou coisas. A sua lição é aqui registrada: “É mister, pois, que o objeto incendiado seja tal que exponha a perigo o bem tutelado. Ainda: necessário é que esteja em lugar, no qual o incêndio seja perigoso, isto é, provoque aquele perigo. Consequentemente, a queima de duas ou três folhas de papel num quintal, ou o incêndio de casa sita em lugar ermo e despovoado não caracteriza o delito, pois não acarretam o perigo”. Desta forma, decidiu-se que para a existência do crime de incêndio é indispensável a prova da ocorrência de perigo efetivo ou concreto para pessoas ou coisas indeterminadas(RTJ 65/230; RT 200/117,224/282, 350/366, 405/113, 418/256, 419/107, 445/350, dentre outras decisões). Não importa a natureza da coisa incendiada nem que ela seja de propriedade do agente.

Assim pode haver incêndio sem chamas devastadoras e ardentes, bastando a continuidade da combustão. Nelson Hungria(Comentários ao Código Penal, volume IX, pág. 24, nota 6), ensinou que há mesmo coisas que ardem sem flamas indiscretas, como, por exemplo, uma turfeira.

Não só o fogo é considerado pela lei penal para efeito do crime, pois outros meios devem ser considerados como a energia elétrica, por via de curto circuito, o gás inflamável etc, desde que provoque o incêndio nos termos do que exige o artigo 250.

Já se entendeu que não é necessário que pessoas sejam lesadas ou postas em risco. Entende-se que a disjuntiva “ou” constante do artigo 250 determina, de forma clara, a possibilidade de ocorrer o delito de incêndio sob perigo eventual ou lesão efetiva somente do patrimônio de outrem (RT 366/210, 506/394).

Ainda Magalhães Noronha (obra citada, pág. 360), na linha de Manzini, lembra que o modo também por que se propaga o incêndio não conta, uma vez que tanto faz lançar diretamente a matéria incendiária em um palheiro, como deitar fogo a coisas que se acham próximas à porta de uma casa, para que o fogo a ele se estenda.

Trata-se de crime de perigo concreto, sendo condição para o crime que acarrete perigo para a incolumidade pública. Não é necessário que o perigo consista na combustão, havendo perigo para a incolumidade pessoal, se o incêndio de uma coisa gera pânico que provoca perigosa fuga ou tumulto de pessoas. Assim não basta a potencialidade do perigo, sendo necessário que este seja concreto e efetivo (RT 538/334).

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Há o crime de incêndio culposo desde que produzido por negligência, imprudência ou imperícia. Tal poderá ser o caso das queimadas sem a devida preparação do terreno, não se fazendo aceiros, ou fazendo mal e sem se avisar antes os vizinhos ou lindeiros.

O crime é ainda de perigo concreto para pessoas e bens indeterminados (RT 429/479, 506/394).

Ao regulamentar o parágrafo único do art. 27 da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, o Decreto nº 2.661, de 8 de julho de 1998, alterado pelo Decreto nº 2.905, de 28 de dezembro de 1998 e, posteriormente, pelo Decreto nº 3.010, de 30 de março de 1999, que revogou o anterior, estabelece as normas de precaução relativas ao emprego de fogo em práticas agropastoris e florestais. Entendeu-se que não se retira  a responsabilidade daquele que abriu aceiros inadequados (RT 351/423) ou insuficientes.

Há entendimento de que não se caracteriza a culpa se o agente não podia prever o resultado, em face de circunstâncias excepcionais existentes, o que a experiência não podia prever(RTFR 56/172). Há decisões em que se isentam os agentes de responsabilidade quando efetuado o aceiro, a propagação do fogo se dá por acidente climático,como será o caso da lufada de vento inesperada(JTACrSP 18/117).

Como ensinou Magalhães Noronha (obra citada, pág. 365), na forma culposa, a lei, de forma sensata, não tem em consideração a natureza ou a utilidade da coisa, para qualificá-la. Sendo assim o incêndio culposo não pode ser qualificado pela natureza ou destinação da coisa atingida. Seja esta qual for, a pena é sempre a mesma,a menos que tenha como resultado lesão corporal ou morte(RT 329/507).

É hora, pois, de que a investigação identifique quais as pessoas envolvidas nesse ato culposo que atingiu o patrimônio cultural do Brasil que estava instalado no Museu Nacional.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um incêndio culposo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5811, 30 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73134. Acesso em: 5 nov. 2024.

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