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Compliance esportivo

Agenda 08/04/2019 às 12:15

Se o futebol brasileiro é reflexo de nossa sociedade e representa o jeito de ser de nosso povo, ampliar a cultura do compliance e boas práticas de governança nos clubes de futebol e instituições correlatas como CBF é a clara a demonstração que vivenciamos uma nova etapa em nossa história.

1.Origem etimológica e conceito

O termo compliance vem da língua inglesa e significa o ato de cumprir uma ordem, uma norma ou um pedido/solicitação.

Muito embora tenha sido adopado universalmente, o termo tem sido traduzido nalguns países, como são os casos da França, onde é designado por conformité, Espanha onde é comummente traduzido para cumplimiento normativo ou Itália cuja correspondência é osservanza.

O termo é utilizado em diversas áreas, desde a econômica e financeira à jurídica, passando pela ambiental e da saúde.

Em traços gerais podemos definir compliance como o ato de cumprir, de executar e de estar em conformidade com o quadro legal e regulamentar referente à atividade de uma organização, visando a identificação, mitigação e diminuição dos riscos legais e reputacionais respeitantes a essa atividade.


2.Breve Histórico

As primeiras referências a compliance surgiram no início do séc. XX, nos Estados Unidos. Alguns autores[1] entendem que seu surgimento ocorreu em 1906, aquando da promulgação do Food and Drug Act e a criação do FDA (Food and Drug Administration), para outros[2] a ideia de compliance vai surgir mesmo em 1913 devido a criação do Banco Central Americano (Board of Governors of the Federal Reserve).

Foi a partir do final da década de 70 do século passado que a temática do compliance começou a assumir o relevo nos Estados Unidos chegando aos dias de hoje com a importância e destaque que possui.

Desde anos setenta o compliance se desenvolve como reflexo dos grandes escândalos financeiros de imensas dimensões ocorridos principalmente nos Estados Unidos e que tiveram grande impacto nos mercados financeiros mundiais, desde os casos Watergate e Enron até à mais recente crise das Sub-primes.

Daí é que no plano jurídico, ainda que o compliance tenha um âmbito de aplicação muito vasto e transversal, abarcando áreas tão distintas como a administrativa, civil ou laboral, encontra-se mais intimamente ligado ao Direito Penal, em particular ao Direito Penal Econômico e às temáticas da responsabilidade criminal das pessoas coletivas, constando mesmo expressamente da legislação penal de várias jurisdições, como é o caso da espanhola[3].

Desta feita é que esta temática tem merecido atenção crescente da comunidade jurídica internacional, sendo manifesta não só a profusão de obras sobre as suas várias vertentes como também a sua inclusão em cátedras universitárias em diversos países, o que denota uma tendência de acolhimento e até autonomização do compliance enquanto instituto jurídico.

No domínio do esporte, as primeiras referências a compliance e a programas de compliance surgiram já no início do século XXI, também em razão de vários escândalos relacionados com os processos de escolha e organização de grandes eventos, principalmente Jogos Olímpicos e Campeonatos do Mundiais de Futebol ou até mesmo relacionado com vergonhosos casos de manipulação de resultados e do uso de doping.

A título de exemplo podemos apontar:

  1. Inclusão do compliance no Comité de Auditoria da FIFA no final de Março de 2012 que tem a função de “assegurar a integridade e confiabilidade da contabilidade financeira e revisar o relatório dos auditores externos a pedido do Comitê Executivo”[4].
  2. Comité Olímpico Internacional (COI) passou a dispor, desde 2015, de um Gabinete de Ética e Compliance (Ethics and Compliance Office), o qual foi criado no cumprimento de uma das recomendações da Agenda Olímpica de 2020. Sendo importante lembrar que o COI foi a primeira organização esportiva a criar uma Comissão de Ética independente em 1999, a fim de salvaguardar os princípios éticos do Movimento Olímpico e a função da Comissão de Ética é fazer valer o Código de Ética e, em caso de violação dos princípios éticos, analisa reclamações e propõe sanções. Trata-se de uma comissão independente, composta por nove membros[5].

Para além do acolhimento do compliance por parte da maior parte das entidades que superintendem o desporto a nível internacional, também se verificou a inclusão desta temática na legislação nacional de diversos países, tendo impacto nas entidades responsáveis pela organização e gestão do desporto. Entre outros, destacamos os casos de Espanha, Brasil e Portugal.


3. compliance Esportivo Comparado

Para ilustrar a importância que o compliance esportivo tem vindo a registrar ao nível das jurisdições nacionais, cabe fazer uma breve referência comparada a três países onde esta matéria tem vindo a ganhar um aumento de importância nos últimos anos e a merecer a atenção não apenas das autoridades e entidades organizadoras do exporte mas também da própria comunidade jurídica no seu todo. Assim passamos a um breve olhar geral do panorama existente em Espanha, Brasil e Portugal, começando pelo caso espanhol.

3.1 Espanha

Na Espanha a introdução do compliance no mundo do esportivo surgiu após as revisões do Código Penal Espanhol que ocorreram em 2010 e 2015. Tais modificações tiveram particular incidência no regime da responsabilidade criminal das pessoas jurídicas por fatos cometidos pelos seus representantes ou mesmo colaboradores com vínculo laboral, prevendo um regime especial de isenção dessa responsabilidade mediante a adoção de programas de compliance, designados como modelos de organização e gestão que incluem medidas de prevenção e controlo adequadas à prevenção de delitos e à redução do risco da sua ocorrência.

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A principal consequência dessas alterações do regime da responsabilidade criminal das pessoas jurídicas foi a introdução e implementação de programas de compliance na estrutura organizativa de federações, ligas e clubes com atividades desportivas profissionais, entre os quais se destaca a Liga Profissional de Futebol conhecida como “La Liga” (LFP).

3.2 Brasil

No Brasil a adoção de modelos e programas de compliance no desporto profissional é também uma realidade e a par da introdução de várias medidas no plano legislativo, existem já diversos casos de adoção e implementação destes programas no plano federal e até mesmo nos clubes.

É bem verdade que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) teve seus últimos 3 presidentes afastados por corrupção, são eles: José Maria Marin, Marco Polo Del Nero e Ricardo Teixeira. Segundo investigações do FBI, ao todo o esquema ilegal montado na CBF recebeu o valor aproximado de 120 milhões de reais[6].

É importante, por outro lado, se referir o papel pioneiro do Coritba Football Clube, que foi o primeiro clube a introduzir um modelo de compliance em clubes de futebol no país, modelo com enfoque principal na ética na gestão e constituindo um instrumento de combate à corrupção[7].

3.3 Portugal

Em Portugal, a influência do compliance no desporto ainda é muito incipiente e praticamente inexistente, reduzindo-se à adoção de alguns Programas de Boa Governança e de Códigos Éticos ou de Conduta por parte de algumas Federações e muito poucos clubes, não sendo conhecida a existência de programas ou modelos de compliance.

A implementação de programas de compliance nas diversas vertentes da organização e gestão das atividades desportivas, afigura-se algo não apenas inevitável como até imprescindível, constituindo a forma mais adequada quer para a credibilização das organizações e competições, quer para a prevenção e combate à utilização do Desporto por parte de organizações criminosas, seja como veículo de branqueamento de capitais, fonte de receita de apostas ilegais ou como mercado consumidor de substâncias dopantes.  

Não se pense, porém, que a mera adopção e implementação de programas de compliance nos vários domínios da organização e gestão das atividades desportivas irá erradicar todos os comportamentos ilícitos ou a influência dos diversos tipos de organizações criminosas, mas terá seguramente um efeito amplamente positivo, como já foi demonstrado noutros setores de atividade.

Para que tal seja possível, são imprescindíveis determinação e a vontade política das autoridades com a introdução das necessárias alterações aos quadros legislativos e regulamentares em vigor, onde a par da introdução dos modelos e programas de compliance deverão constar mecanismos efetivos de supervisão e controlo das atividades.


4. Considerações Finais

O paradigma do século XXI tem sido o combate consistente à corrupção e o surgimento de boas práticas de governança empresarial. O setor privado não pode mais se limitar a responsabilizar apenas gestores públicos acerca do fenômeno.

Após as graves consequências econômicas e políticas pelas quais o Brasil ainda passa, é consenso dizer que a corrupção não é um fenômeno do Estado percebido como poder público, mas também as grandes empresas tiveram grande parcela de responsabilidade. Por esta razão, aprimorar o controle e os sistemas de integridade do Estado é fundamental, porém, é igualmente importante exigir das grandes empresas sistemas sofisticados de combate e prevenção à corrupção.

Se o futebol brasileiro é reflexo de nossa sociedade e representa o jeito de ser de nosso povo, ampliar a cultura do compliance e boas práticas de governança nos clubes de futebol e instituições correlatas como CBF é a clara a demonstração que vivenciamos uma nova etapa em nossa história.

No panorama internacional a FIFA já trouxe o exemplo claro que a ética e os princípios de transparência e governança são necessários para que o futebol continue sendo o esporte de grande importância que é no planeta inteiro.

Na Europa, a importância do compliance no esporte tem vindo a aumentar a cada ano que passa, merecendo uma atenção cada vez maior por parte não apenas das autoridades e entidades que supervisionam e organizam as competições esportivas mas também por parte da comunidade jurídica no seu todo, desde os investigadores universitários aos advogados e consultores. Um dos países onde esta temática tem conhecido um grande crescendo de importância é a Alemanha, onde a par do aprofundamento do estudo das matérias se tem assistido a uma crescente e generalizada implementação de programas de compliance esportivo[8][9].

Todavia, apesar da recente expansão e crescendo de importância dessa matéria no centro e norte da Europa tem sido a Espanha a nação pioneira e onde se pode dizer que o compliance esportivo se encontra mais desenvolvido e até consolidado, como é prova disso o fato dos programas de cumprimento das normas fazerem parte integrante da estrutura organizativa de federações e clubes com atividades esportivas profissionais há vários anos, podendo se falar numa aposta séria no desenvolvimento de uma cultura de compliance no exporte.

Já em Portugal a realidade é muito diferente da espanhola, pois só muito recentemente as entidades organizadoras do esporte - tanto federações como os clubes -  começaram a dar alguma importância a esta temática muito havendo ainda por fazer até se alcançar o nível de maturidade do país vizinho.

Em jeito de conclusão podemos afirmar sem receio que o compliance veio para ficar no esporte, vai conhecer um enorme desenvolvimento e consolidação no futuro próximo, se afirmará como instrumento indispensável às organizações e entidades organizadoras e participantes nas diversas áreas dos exporte e dará também uma extraordinária contribuição para a credibilização do fenômeno esportivo no seu todo.


Bibliografia:

Biegelmann, Martin T. e Biegelmann, Daniel R., Building a World-Class Compliance Program: Best Practices and Strategies for Success, John Wiley & Sons, New Jersey, 2008

Brito, Teresa Quintela, Relevância dos mecanismos de “Compliance” na responsabilização penal das pessoas colectivas e dos seus dirigentes, Revista de Anatomia do Crime n.º 0, Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito de Lisboa, 2014

Depré, Peter, Praxis-Handbuch Compliance, Walhalla Verlag, Regensburg, 2011

Gaudemet, Antoine, La Compliance: un monde nouveau? Aspects d’une mutation du droit, Panthéon Assas, 1. Édition, 2016

Gordillo, Rafael Aguilera, Compliance Penal en España: Regimen de responsabilidad penal de las personas jurídicas…, Aranzadi, 2015

Jost, Oliver, Compliance in Banken: Anwendungsgebiete des risikobasierten Ansatzes, Frankfurt School Verlag, Frankfurt am Main, 1.Auflage, 2010

Manzi, Vanessa Alessi, Compliance no Brasil: Consolidação e Perspectiva, São Paulo, 2008

Miller, Geoffrey P., The Law of Governance, Risk Management and Compliance, Wolters Kluwer, New York, 2017

Pizarro, Sebastião Nóbrega, Manual de Compliance, Nova Causa Edições Jurídicas, 2016

Pittman, Andrew T.; Spengler, John O. e Young, Sarah J., Case Studies in Sport Law, Human Kinetics, Second Edition, 2016

Preusche, Reinhard e Würz, Karl, Compliance: Taschenguide, Haufe-Lexware, Freiburg, 1.Auflage 2015

Rossi, G., La “Corporate Compliance”: una nuova frontiera per il diritto?, Rivista Della Societá, Giuffré, 2017

Suckow, Mark A. e Yates, Bill, Research Regulatory Compliance, Academic Press.


Notas

[1] Miller, Geoffrey P., ob.cit.;  Suckow, Mark A. e Yates, Bill, ob.cit.

[2] Manzi, Vanessa Alessi, ob. cit.; Pizarro, Sebastião Nóbrega, ob.cit.

[3] Cfr. Código Penal, art. 31 bis, n.º 2 e 4.

[4] Informações Disponíveis em: https://www.fifa.com/about-fifa/who-we-are/committees/committee/1935614/ Acesso em 01/03/2019.

[5] Informações disponíveis em: https://www.olympic.org/ethics-commission  Acesso em 01/03/2019.

[6] Mais informações em: https://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,notas-frias-e-chantagens-fbi-revela-as-taticas-dos-cartolas,1807312

[7] O Programa de Conduta Coxa-Branca é uma ferramenta de Compliance destinada a funcionários e gestores da instituição, que passa a integrar o conjunto de instrumentos de gestão do clube paranaense.

[8] Cfr. Tothauer, Yvonne e Kexel, Christoph A., ob.,cit;

[9] Ver entre outras fontes: https://www.heuking.de/de/news-events/fachbeitraege/compliance-im-fussball-handlungsbedarf-und-umsetzungshinweise.html;

Sobre os autores
Carlos Lelo Filipe

Advogado, Compliance Officer no sistema bancário internacional, Presidente do Conselho de Disciplina da FPB (Federação Portuguesa de Basquetebol), é pós-graduado em Estudos Europeus Universidade de Lisboa, Especialista em Compliance e Direito Penal pela Universidade de Coimbra e Experto Compliance Officer pela Thomson Reuters-Aranzadí, Espanha.

João Pedro Paro

Advogado, cientista social e pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da USP, é pós-graduado em Compliance e Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra e mestre em Direito do Estado pela USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FILIPE, Carlos Lelo; PARO, João Pedro. Compliance esportivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5759, 8 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73157. Acesso em: 22 nov. 2024.

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