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Convite para um ecocídio

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Agenda 23/04/2019 às 14:35

II. A ordem constitucional ambiental

A existência de uma crise ecológica sem precedentes na história da humanidade – que se apresenta por meio de graves problemas ambientais de ordem local e global – exige respostas adequadas do Direito9. Cabe a esse apresentar soluções, sobretudo, para os denominados “problemas de risco” decorrentes de um contexto pós-industrial no qual a sociedade passa a lidar com os efeitos colaterais decorrentes do seu próprio processo de industrialização e modelo inconsequente de desenvolvimento10. Nesse sentido, o direito constitucional tem um papel importante na modelagem de uma ordem constitucional afeita aos conceitos e valores ecológicos11. No caso do Brasil, é possível, sem sombra de dúvidas, afirmar que a CF/88 consistiu em um marco fundamental para o tratamento das questões ambientais no País que antes era objeto de tutela apenas por parte de normas infraconstitucionais bastante esparsas. 

1. Antecedentes legais da Constituição de 1988

É importante quando do tratamento da tutela constitucional do meio ambiente12 ou da ordem constitucional do meio ambiente13 ressaltar que no Brasil desde antes de 1988 já havia uma série de instrumentos legais infraconstitucionais voltados à proteção ambiental. Esses instrumento protetivos, porém, compunham uma tutela do meio ambiente indireta e se apresentavam, sobretudo, na forma de leis esparsas antes de 1980. É possível citar o exemplo do Dec. Lei n° 25/37, do Código Florestal de 1934, do Código de Águas de 1934 e do Código Florestal de 1965. A partir de 1981 esse cenário começa a mudar com a edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) que introduz o SISNAMA, conferindo proteção direta, sistêmica e legal ao meio ambiente. É importante também esclarecer que a ordem constitucional brasileira somente se torna uma ordem constitucional ambiental a partir da constituinte de 1988 que torna a proteção do meio ambiente um direito fundamental.

2. A Constituição de 1988 como principal fonte formal do direito ambiental 

A Constituição de 1988 foi em todos os sentidos inovadora no tratamento da questão ambiental no Brasil. Ela instituiu não somente um capítulo exclusivo destinado ao meio ambiente como também trouxe uma série de garantias e estabeleceu competências gerais e específicas no tratamento ambiental14. Era uma tentativa evidente de conferir ao tema no âmbito nacional a importância que esse havia conquistado no cenário mundial a partir da década de 7015.

O art. 225 da CF/88 determina no seu caput que “todos têm direito ao meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Pela leitura desse dispositivo percebe-se que ele está dividido em quatro partes. Na primeira encontra-se a previsão de que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Compreende-se daí que o direito ao meio ambiente passa a ser visto como um direito fundamental da pessoa humana, isto é, um direito à vida com qualidade16. O termo “todos”, por exemplo, não se encontra ali por acaso e suscita algumas divergências doutrinárias. Há quem defenda que o alcance do termo seria restritivo17. Isto é, a expressão utilizada ressaltaria que os destinatários do art. 225 da Constituição de 1988 seriam exclusivamente os brasileiros e estrangeiros residentes no País nos termos do art. 5° da CF/88. Por outro lado, há aqueles que veem na utilização do termo uma ampliação do rol dos direitos constitucionalmente garantidos18. A razão desse incremento de direitos seria que ao contrário dos direitos eleitorais e daqueles referentes ao “controle da probidade administrativa” não se faria a exigência da condição de cidadão para se ter direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado19.

Na segunda parte, o meio ambiente é apresentado como um “bem de uso comum do povo”, portanto, um bem difuso e indisponível20. A inovação da Constituição de 1988 nesta segunda parte do dispositivo é basicamente a de distinguir o bem ambiental daquele bem entendido sob a ótica do direito civil e da propriedade que permitem ao proprietário do bem usar, fruir, gozar e dispor do bem21. O texto constitucional permite compreender que alguns dos direitos do proprietário do bem do direito civil foram retirados no que diz respeito ao bem ambiental de forma a proteger bens insuscetíveis de apropriação. Fiorillo aponta com propriedade que se tratou de uma “inovação revolucionária”, porquanto a Constituição criou um “terceiro gênero de bem” que não se confunde nem com os bens de natureza pública nem com os de natureza privada22.

Na terceira parte, o meio ambiente é colocado na condição de “um bem difuso e essencial à qualidade de vida do homem”23. E, por fim, na quarta parte há um reforço da necessidade de proteção ao meio ambiente por parte do Poder Público e da coletividade para as presentes e futuras gerações24.

3. O bem ambiental 

O art. 225 da CF/1988 como observado acabou por introduzir no ordenamento constitucional e jurídico brasileiro um terceiro gênero de bem a ser protegido, isto é, a do bem ambiental. Ele não se confunde com os bens públicos e nem com os bens privados. O bem público é aquele “que tem por titular do seu domínio uma pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser federal, se pertencente à União, estadual, se do Estado, ou municipal, se do Município”. Já o bem privado é aquele pertence ao particular, isto é, à pessoa jurídica de direito privado. Essas definições que foram gravadas no Código Civil brasileiro de 1916 claramente associavam a figura do bem à propriedade.

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A figura do bem ambiental que surge como uma inovação do texto constitucional de 1988 acaba por subverter a discussão sobre bens marcada pela dicotomia acima referida. Afinal, a ideia de um terceiro gênero de bem jurídico ontologicamente de uso comum do povo é por si só inovadora, pois afasta as prerrogativas de propriedade de gozar, dispor, fruir, destruir o bem comumente associada aos outros tipos de bens. Aliás, a figura do licenciamento ambiental como mecanismo de controle estatal do funcionamento de determinada atividade econômica que produza impactos diretos ou indiretos sobre o meio ambiente tem por base a necessidade de se proteger e resguardar o bem ambiental que por ser coletivo necessita de tutela especial difusa por parte do Estado. Por essa razão a ideia de “flexibilizar” o mecanismo do licenciamento ambiental que tenha por base substituir as etapas desse processo administrativo por uma “autodeclaração” emitida pelo próprio empreendedor chega a soar como uma piada de extremo mau gosto em uma país notório por desrespeitar as normas e os procedimentos. Não se trata de “flexibilização” nem muito menos de “agilização” ou ainda de “afrouxamento”, mas de esvaziamento completo do mecanismo de licenciamento ambiental.

4. A ausência de menção expressa ao licenciamento ambiental no art. 225 da CF/88 

Amado, ao discorrer sobre as dificuldades de se precisar exatamente o sentido da expressão “meio ambiente ecologicamente equilibrado” prevista na Constituição de 1988, prefere, ao invés de conceitua-lo, afirmar que ele será alcançado pela adoção de uma série de medidas de caráter assecuratório. Dentre essas medidas ele cita algumas em particular: o controle eficaz estatal da poluição; o uso de instrumentos como o licenciamento e os estudos ambientais; medidas específicas para proteção de espécies ameaçadas de extinção; além da preservação dos espaços territoriais especialmente protegidos e a criação de novos; a manutenção da biodiversidade25. O autor faz questão de elencar o licenciamento ambiental dentre as medidas garantidoras do direito fundamental do art. 225 da CF/88. Essa escolha do autor acaba por chamar atenção para o fato de que, conquanto o licenciamento ambiental não esteja previsto expressamente no texto constitucional, a grande maioria das hipótese previstas no § 1° do art. 225 estão diretamente relacionadas a existência desse importante mecanismo de controle e dependem dele para serem concretizadas26.

O § 1° do art. 225 da CF/88 traz disposições no sentido de esclarecer como será possível assegurar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. No inciso I do referido parágrafo, fala-se em “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas”. Como aponta Farias, isso implica basicamente que a licença ambiental só deverá ser concedida às atividades que não coloquem em risco os processos ecológicos essenciais e os ecossistemas27. O inciso II fala em “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético”. Aqui também vale o mesmo princípio que para o inciso I, isto é, de que a licença ambiental não deve ser concedida aqueles que realizarem atividades que coloquem em risco a diversidade e a integridade do patrimônio genético brasileiro. O inciso III do § 1° do art. 225 da CF/88 fala em “definir, em todas as Unidades da Federação espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção”. Como observa Farias com precisão é difícil imaginar um mecanismo mais adequado que o licenciamento ambiental para dizer se uma atividade potencialmente lesiva ao meio ambiente poderá ou não se instalar em uma unidade de conservação ou de uma área de preservação ambiental28. Talvez um dos incisos do § 1° do art. 225 da CF/88 em que a relação direta com o mecanismo do licenciamento ambiental fique mais evidente seja justamente o inciso IV. Ele fala em “exigir, na forma da lei, para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade”. O estudo prévio de impacto ambiental é um elemento importante de embasamento para a concessão ou não da licença durante o processo administrativo do licenciamento ambiental29. O inciso V não surpreendentemente faz uso no seu texto de um verbo chave para o mecanismo do licenciamento ambiental, isto é, o verbo “controlar”. Ao fazê-lo ele diz “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. O inciso VII, por sua vez, fala em “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”. Não é difícil perceber o importante papel desempenhado pelo licenciamento ambiental nessa hipótese, visto que por meio dele há um efetivo controle da proteção conferida a fauna e a flora por meio da fiscalização das atividades que coloquem em risco essas formas de vida. Farias cita ainda o exemplo do art. 170 da CF/88 e de seu inciso VI, no qual se encontra a previsão da defesa ao meio ambiente como um princípio da ordem econômica. Com isso se pretende afirmar que a livre iniciativa não é absoluta. Isto é, ela é limitada pela exigência de padrões básicos de proteção ambiental que impedem que a incolumidade do meio ambiente seja comprometida por interesses econômicos. Essa previsão é mais uma clara evidência da intenção do legislador constitucional de conferir proteção especial ao meio ambiente e a todos os mecanismos garantidores desse direito fundamental30.

Uma vez analisados os incisos do § 1° do art. 225 da CF/88 é difícil refutar o caráter constitucional conferido aos mecanismos de política e gestão ambiental destinados a garantir a devida efetivação do direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Dentre esses mecanismos é também difícil ignorar que o licenciamento ambiental ocupa uma posição especial, visto que permite o controle da atividade econômica lesiva ou potencialmente lesiva ao meio ambiente por meio de um condicionamento e de uma exigência de adequação plenamente razoável imposta pela Administração Pública ao interessado em explorar os recursos ambientais nos limites do território nacional.

Sobre o autor
Antonio Silveira Marques

Doutor em Direito Público pela Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU), mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Antonio Silveira. Convite para um ecocídio . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5774, 23 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73403. Acesso em: 22 nov. 2024.

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