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A delação premiada no contexto de uma sociedade complexa:

riscos e condições de possibilidades na democracia brasileira

Agenda 29/09/2005 às 00:00

". ..em abril fora capturado no Rio de Janeiro um militante da VPR que tinha uma surpresa para o CIE: Carlos Lamarca estava em algum lugar nas proximidades do quilômetro 250 da BR-116, ensinando tática, tiro ao alvo, desenhando uniformes e construindo armadilhas." (GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 196)


Sumário: 01- Introdução; 02- O peso da delação na tradição histórica brasileira; 03- O contexto ético e a posição no direito comparado e brasileiro; 04 – Circunstâncias em que a vontade deve ser demonstrada bem como sua eficácia e os direitos fundamentais do delator e delatado; 05 - Conclusão.


01- INTRODUÇÃO:

Sem perdermos o receio de que os relatos do intróito sejam dados como verdades absolutas por um observador privilegiado, fato é que a delação sempre foi uma matéria conturbada na perspectiva do sistema do direito (lícito/ilícito), visto ser permeada pelo sistema da ética (bom/ruim) e da moral (certo/errado).

Assim, buscamos demonstrar as construções e desconstruções do contexto em que a delação premiada foi introduzida no país e o controle na qualidade de sua aplicação na medida que impõe também enxergar os riscos de sua implementação numa sociedade cindida por definição.


02- O PESO DA DELAÇÃO NA TRADIÇÃO HISTÓRICA BRASILEIRA:

Desde os primórdios iscarióticos da bíblia, na Antigüidade clássica (Grécia/Roma), Idade Média e na Modernidade a condição humana retrata diversos contextos em que o indivíduo, por força de circunstâncias, qualquer que sejam elas, alimenta a paranóia maniqueísta entre o nós e eles, chegando a absurdos da eliminação de causas e populações por inteiro.

No campo das disputas por poder político, econômico e até mesmo no crime o acirramento de condições limites leva a adoção de práticas de espionagem e contra-espionagem (Sun Tzu / Karl Von Clausewitz). A forma como se lida com tais práticas são mais interessantes do que o resultado que as mesmas pretenderam.

No Brasil a pesada tradição de expectativas frustradas a delação tem existência cativa em movimentos políticos como o célebre episódio da Conjuração Mineira de 1789, em que "...um dos conjurados, que andava enforcado, teve a brilhante idéia de se livrar dos apuros financeiros enforcando seus colegas. Foi assim que o Coronel Joaquim Silvério dos Reis obteve da Fazenda Real o perdão de uma dívida de 172:763$919, oriunda de um contrato de entradas mal-sucedido. Quase ao mesmo tempo da denúncia de Joaquim, dois outros sujeitos também denunciaram o movimento ao Governador Luís Antônio Furtado de Mendonça: O portuga Basílio de Brito Malheiro do Lago e o açoriano Inácio Correia Pamplona." (REIS, Eduardo Almeida, De Colombo a Kubitschek: Histórias do Brasil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979, pp. 52).

Se o Alferes Joaquim José da Silva Xavier teve exibidas as fatias do corpo nos lugares movimentados de Vila Rica e adjacências, a delação não foi um privilégio concedido apenas aos mineiros. Por sua vez, a Conjuração Baiana de 1798 teve seu mártir, o soldado Luiz das Virgens, delatado por um capitão de milícias e semelhantemente espostejamento junto a outros três corpos. O que não podemos afirmar de Domingos Calabar em 1635, natural de Porto Calvo, Alagoas, tido como desertor e traidor por Portugal, hoje sua biografia passa por revisão histórica na tentativa de entender as razões de haver mudado para o lado holandês quando a conjuntura para estes eram demasiadamente desfavorável no país.

Em nossa história recente os fatos constantes em relatos que todo dia nos surpreendem novas publicações sobre o Golpe Militar de 1964 e seu recrudescimento a partir de 12 de dezembro de 1968 (Ato Institucional n º 05), inclui a delação em condições adversas por figurões de vida política brasileira ‘acima de qualquer suspeita’. Tudo isso indica o nível do problema que temos de enfrentar quando se implanta este instituto para fins de abordar uma criminalidade diferente da comum, como a praticada por organizações criminosas, principalmente nos crimes de ‘colarinho branco’ (Write collar crime), que não muito raro financia a transformação de votos em cargos políticos (SANTOS, Abraão. Soberania Popular e os financiamentos de campanha. www.abraao.com).

De origem americana a aplicada no episódio Kennedy e Nixon, o ordenamento brasileiro já possuía no Código Penal/1940 a atenuante genérica do art. 65, III, b, em que premia o infrator que tenha buscado, espontânea e eficazmente, logo após o crime, evitar ou minorar as conseqüências, ou mesmo antes do julgamento, haver reparado o dano. Outrossim, o mesmo diploma legal já previa no art. 15 o arrependimento eficaz beneficiando o acusado que impede voluntariamente a produção do resultado, vindo a responder somente pelos atos anteriormente praticados. Sem falar do art. 16, o arrependimento posterior que, mesmo condicionado a crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reduz o juízo de reprovabilidade sobre a pessoa do agente.

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Na legislação extravagante, à vista do incremento das atividades criminosas pela transnacionalização dos capitais e bens, a delação premiada foi inserida na lei dos crimes hediondos, Lei Federal n º 8.072, de 26 de julho de 1990, a inserção do instituto da delação no sentido de que a colaboração espontânea informando de forma precisa os demais componentes da organização criminosa com eficácia suficiente para contribuir com o esclarecimento de infrações penais e seus autores, pode haver a redução da pena referente ao delito previsto no art. 288 do Código Penal (mais de três pessoas formando bando estável para cometimento de crimes).

Depois tivemos em 03 de maio de 1995 a Lei Federal n º 9.034/95, versando a respeito da utilização de meios instrumentais de prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, considerando também como causa compulsória de diminuição da pena a delação de participantes na organização criminosa.

Por conseguinte, a Lei Federal n º 9.080/95, de Em 19 de julho de 1995, premia a delação aos envolvidos em crimes cometidos contra o sistema financeiro nacional ou contra a ordem tributária, econômica e as relações de consumo executados em quadrilha ou co-autoria. Ainda, temos a lei de lavagem de dinheiro, Lei Federal n º 9.613/98, de 03 de março de 1998, a lei de proteção a testemunhas, Lei Federal n º 9.807/99 e, a nova lei de tóxicos, Lei Federal n º 10.409/02.

No entanto, a atual aplicação e eficácia deste instituto passam por questionamentos próprios de uma sociedade cada vez mais complexa, principalmente quando se lida com pessoas que, naturalmente, não são clientes do Direito Penal e as condições as quais essas informações são obtidas os Estado.


03- O CONTEXTO ÉTICO E A POSIÇÃO NO DIREITO COMPARADO E BRASILEIRO:

Pela própria etimologia das palavras como ‘colaboração espontânea’ nos diplomas legais verifica-se a tentativa do legislador de diluir a pesada tradição da palavra ‘traição’ e pior, premiar o que inicialmente soa como abjeto. Isso para não perder de vista que "...uma nação lida com a criminalidade em massa de seu regime anterior diferentemente da outra. Conforme a experiência histórica e a autocompreensão coletiva, elas optam pela estratégia do perdão e do esquecimento ou pelo processo de punição e recuperação da memória (...) considerando essas questões ético-políticas, vale a sentença ‘outras culturas, outros costumes’ (HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 55).

O resgate deste preconceito histórico demonstra a ineficácia deste instituto no país, seja pela impotência do Estado em garantir a integridade sequer das vítimas, menos ainda dos delatores e seus familiares, seja pela impregnação do consciente coletivo de que ninguém pode buscar beneficiar-se der sua própria torpeza. Os questionamentos quanto à eficácia do bargain nos Estados Unidos da lei seca e do pattegiamento na Itália das mãos limpas, recomenda que a utilização deste instituto pode criar um sentimento de anomia por parte de populações marginalizadas quanto ao Poder Judiciário, tendo em vista que a estes é aplicado o Direito Penal por serem os ‘clientes’ desde o Brasil colônia, conforme já escrevemos:

"Mesmo com sua importância histórica, o marco teórico crítico encontra-se saturado, prescindindo de novos contornos que abarquem a complexidade das relações na sociedade contemporânea. Diante do desafio epistemológico da criminologia de trabalhar dados e conceitos na perspectiva da dogmática penal bem como da política criminal, tal operatividade patente no aspecto do controle social, deve ter sempre em vista a construção de um Estado Democrático de Direito que visa manter os riscos de suas pretensões e não mais buscar justificações de ordem metafísica. O "crime de colarinho branco", conforme denominação empregada por Sutherland (Une theorie sociologique du comportament crimenel, In Déviance e criminalité. Paris: Colin, 1970, 396p.), surgiu no bojo da sociedade norte-americana através de estudos ligados às ciências sociais (escola de sociologia) preocupada em resolver os conflitos gerados pela acumulação rápida de capital e a massiva mobilidade populacional principalmente para o norte do país. Atualmente não apresenta uma resposta tão satisfatória como outrora, mesmo que, em sua época, vislumbrara uma multiplicidade de grupos com pautas culturais diferentes, quebrando assim a vertente mertoriana de unidade cultural. (...) Ao refletir sobre a divisão de trabalho nas sociedades complexas, Durkheim observou que a evolução da solidariedade mecânica para a orgânica (divisão de funções), faz que com que tais mudanças sociais geram aspectos anômicos onde as pessoas perdem seu referencial cultural.(...) Ao inverter a ordem de investigação até então voltada para o consenso social, Durkheim demonstra que só pode haver tipos diferentes de suicídios na medida em que as causas de que eles dependem sejam elas próprias diferentes, definindo assim os tipos sociais do suicídio, não classificando-os diretamente conforme suas características previamente descritas, mas classificando as causas que os produzem (...) Nesse sentido, a criminalidade é produto de uma desproporção entre os objetivos socialmente fomentados e os meios postos ao alcance das pessoas para alcançar tais objetivos (goals) através da estrutura social existente. Quando os meios lícitos para alcançar estes objetivos não são suficientes, isto provoca uma série de reações nesta relação as quais Merton tipificou como sendo: reação de conformidade (aceita os objetivos e os meios de forma positiva), inovação (aceita os objetivos mas repele os meios institucionais, trata-se de um criminoso por excelência), ritualismo (não persegue os fins sociais mas aceita os meios, não arrisca, é o típico "funcionário público" no sentido pejorativo da palavra), apatia ou retrativismo (nega tanto os objetivos sociais quanto os meios, é o "outsider" em sua essência) e por final, a rebelião (nega os objetivos e os meios, no entanto, busca substituí-los, é o típico revolucionário)." (SANTOS, Abraão Soares. Contribuição para uma recolocação constitucionalmente adequada do controle democrático do financiamento de campanhas políticas em face do atual conceito de soberania popular. Dissertação (mestrado, UFMG – Disponível: www.abraao.com ).

A política criminal entendida como a eleição de "...interesses e idéias diretivas do tratamento reservado à enfermidade social que é o crime...(GALVÃO, Fernando. Política criminal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, pp. 23) à vista da crescente sofisticação da criminalidade dotou o aparelho investigatório deste instituto. O risco da polícia judiciária e do Ministério Público tomar a delação premiada como a panacéia de oportunidade e conveniência é menos plausível se comparada à sua aplicação nos Estados Unidos onde a negociação entre os delatores e o Estado sequer passa pelo crivo do judiciário. No Brasil esse instituto tem o caráter plúrimo e é notadamente vinculado por dados objetivos e passível de controle pela própria sociedade e a opinião pública.


04 – CIRCUNSTÂNCIAS EM QUE A VONTADE DEVE SER DEMONSTRADA BEM COMO SUA EFICÁCIA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO DELATOR E DELATADO:

No que se refere à manifestação espontânea da vontade, identifica-se duas espécies de delação: a.aberta e a fechada. Esta é firmada pela existência de algum temor iminente por parte do delator, estando muitas vezes já preso cautelarmente. Já na aberta o delator surge com o fito a favorecer-se de alguma forma: redução de pena, caso esteja envolvido na infração, recebimento de recompensa pecuniária, perdão judicial ou até mesmo tirar algum desafeto do caminho. Não nos esquecendo de outros motivos particulares como vingança por ser preterido em alguma posição, seja no crime, na vida empresarial e no status da burocracia estatal, como no caso garganta profunda, muitas vezes marcados pelo anonimato.

A modalidade mais preocupante é a fechada visto que as condições do delator lhe são completamente desfavoráveis: mesmo que não esteja sofrendo coação física como manda a tradição nacional, sua situação mental não comporta outros prolongamentos do que salvar a si próprio, ditado pelo instinto de sobrevivência numa sociedade cada vez mais individualista. Ora, se um indivíduo que não seja um ‘cliente’ comum do Direito Penal como os próprios diplomas legais apontam, se vê algemado, de ‘macacão’ amarelo e em depoimento secreto: ‘Dá uma vontade danada de trair’

O pior é quando o segredo do depoimento dura até a autoridade investigante ver o primeiro jornalista na sua frente: ‘Dá uma vontade danada de aparecer’. Essa distorção em muito atrapalha a finalidade da delação. Obtida a informação, o que o legislador buscou foi a imediata checagem de sua credibilidade, visto que o criminoso está sempre à frente das investigações. O que se buscou com a delação foi aproximar as investigações do calor dos fatos e autores. A quebra do sigilo, a não ser que seja uma contra-informação para confundir os investigados, interrompe por completo a finalidade do instituto, devendo ser evitada ao máximo, já que é imanente na história guardar segredos por tempos mais prolongados.

No âmbito dos direitos e garantias fundamentais o delator deve que sua ‘espontaneidade’ distinta do peso da tradição autoritária brasileira que associa a defesa dos ‘direitos humanos’ à ‘defesa de bandido’ ou a à ‘cassetetes escritos de corretivo’, de forma que passamos a conhecer os direitos fundamentais de respeito à integridade física e mental (art. 5º, inciso XLIX, da CF/88) mais pelo descumprimento do que por sua efetividade.

Por sua vez, não se pode fazer descurar dos direitos dos delatados, principalmente quando repassado por delatores em situações adversas. Por isso o segredo é imprescindível nesta fase até que seja devidamente comprovada a eficácia de informação, preferencialmente num procedimento judicial devidamente formalizado por, no mínimo, uma denúncia ministerial, tendo em vista as garantias fundamentais da dignidade de pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF/88) e o direito à integridade de sua imagem (art. 5º, inciso V, da CF/88). Em épocas de CPI’s em tempo real, temos que sair do reino da ‘fofoca’ oficiosa que tantos males já causaram a inocentes pré-julgados que arcaram com um dano irreversível às suas vidas como o caso ‘Escola de Base’.


05 – CONCLUSÃO:

Assim, ao constatarmos que "...não obstante todos os avanços ideologicamente motivados do neoliberalismo, as tarefas e responsabilidades do Estado Democrático aumentam nas condições atuais de uma sociedade crescentemente complexa." (MULLER, Friedrich, In ‘Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais’, nº 04, Ed. Del Rey) verificamos que a utilização afoita do instituto de delação premiada além de criar um descrédito por parte das minorias marginalizadas, causa um prejuízo incomensurável na prevenção geral ao disseminar uma noção de que a justiça só funciona para beneficiar os economicamente privilegiados (exclusão gera exclusão, na dicção de Niklas Luhmann).

Por isso não podemos importar de forma mecânica instrumentos adotados em países com histórias particulares como se a história também fosse passível de copiar. Levar em conta as especificidades históricas diante das pretensões dos investigantes e dos delatores sem descuidar dos direitos fundamentais deste e de seus delatados é o segredo para guardar o segredo imprescindível à eficácia desde instituto. Do contrário, o abuso de em sua utilização é inevitável e passa a produzir resultados contrários aos quais foi criado para combater, eis a modernidade da modernidade: descobrimos que a luz também pode cegar.

Sobre o autor
Abraão Soares dos Santos

advogado em Belo Horizonte (MG), especialista em Direito Público, mestre e doutorando em Direito Constitucional pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Abraão Soares. A delação premiada no contexto de uma sociedade complexa:: riscos e condições de possibilidades na democracia brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 820, 29 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7353. Acesso em: 23 dez. 2024.

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