Sumário: Introdução; 1) Planejamento sucessório e empresa familiar; 2) Dos prós e os contras dos instrumentos do Código Civil para as transmissões de quotas ou ações das empresas familiares 2.1) Da manutenção do controle societário na sucessão de quotas ou ações em vida versus o uso do testamento; 2.2) Da partilha em vida para transmissão de quotas ou ações e a necessidade de colação para igualar os direitos à legítima; 2.3) Da doação com reserva de usufruto; 2.4) Da validade da doação causa mortis na transmissão de quotas ou ações societárias; 2.5) Dos regimes de bens, pactos antenupciais e escrituras públicas de união estável; 2.6) Das cláusulas restritivas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade; Conclusão.
Introdução
O planejamento sucessório encontra na empresa familiar tema que vem de encontro ao Direito Civil pois o código possui uma variedade de intrumentos que fazem as vezes da transmissão de bens causa mortis no contrato social da empresa. Nestes estudos buscamos breves aspectos da terminologia empresa familiar, no que vamos à melhor forma de direito na aplicabilidade dos institutos típícos do Código Civil para sucessão do patrimônio familiar.
1 – Planejamento sucessório e empresa familiar
O fator coesão, proteção e perpetuação do patrimônio familiar era o fundamento no Direito Romano ao estabelecer o critério do princípio da distinção das dignidades para divisão e repartição dos quinhões hereditários. Não se tratava apenas de transmissão dos bens hereditários, mas da possibilidade de se concentrar as riquezas em um único herdeiro, pois, ao eleger por digno o primogênito, na realidade, era a concentração de riquezas na governança e o empoderamento do patria potestas que estava em jogo. Buscava-se evitar o fracionamento do patrimônio entre os demais herdeiros, pois isto implicaria em queda de poder da família[1].
Nos dias de hoje a empresa é um modo de concentração de riquezas em que se poderá favorecer o crescimento do patrimônio familiar. O planejamento sucessório da empresa deve conciliar tanto a boa administração dos negócios, quanto à preservação dos laços familiares, os quais passam a sererm regidos por uma gestão corporativa, otimizando a economia de empresas.
A empresa familiar, em sua terminologia, combina a empresa à família, o que nos leva a uma realidade transdiciplinar.[2] Dizemos “realidade transdisciplinar” pois os estudos estão aquém da compreensão unidisciplinar em uma área científica, pois é da essência do universo empresarial a apreensão de ciencias distintas - Família, Propriedade e Gestão de Empresas.[3]
O tema é muito amplo e, quando vamos à ramificação da Ciência Jurídica, temos várias disciplinas, a exemplo do Direito Empresarial, do Direito Tributário e do Direito Civil, todos a interagir aos aspectos da Propriedade. Vejamos o princípio do regionalismo tributário, o qual poderá trazer vantagens (como exemplo, a redução do Imposto de Renda para pessoa jurídica em comparação a pessoa física)[4], ou ainda, vejamos questões societárias, como as decisões dos membros da família que serão agora exercidas na qualidade de sócios da empresa e que nesta qualidade podem vir a se socorrer do Judiciário, estabelecer quóruns de deliberações, conselhos consultivos e pactos parassociais. É possível por meio do regime societário escolhido na empresa estabelecer direitos de ações sem voto, de modo que as decisões fiquem para os demais familiares, favorecendo aquele que tem mais vocação para o negócio. Enfim, estes temas são complexos e demandam estudos aprofundados que fogem o breve escopo desta análise, em que o foco está nos instrumentos típicos do Código Civil, como a doação, o testamento e os direitos patrimoniais de família.
O planejamento sucessório da empresa familiar por meio dos instrumentos típicos previstos no Código envolve uma série de desafios, desde a divisão de quinhões hereditários, como a consideração da metade indisponível aos herdeiros legítimos, a proteção contra credores, a perda patrimonial da empresa diante da dissolução do casamento de um dos herdeiros, a reserva de um patrimônio mínimo daquele que se desfaz de seus bens por liberalidade. Ou seja, existe uma complexidade de interesses que são solucionados por termos a compor o contrato social da empresa. o qual utiliza dos instrumentos que o Código proporciona.
Vejamos que a propriedade na empresa familiar pode tomar proporções em que a gestão ficará cada vez mais complexa pelo volume de bens da empresa. Como exemplos de pessoas jurídicas que se iniciaram como empresas familiares temos empresas multinacionais notórias no mercado[5], como a Walmart (família Walton), Ford (família Ford), Grupo Samsung (família Lee), Grupo LG (família Defforey), Fiat (família Agnelli), Peugeot-Citroen (família Peugeot), BMW (família Quandt), Bosch (família Bosch). Todavia, quando falamos em empresa familiar, não podemos nos ater ao porte destas grandes empresas multinacionais, mas devemos pensar também nas pequenas empresas, constituídas com a integralização de bens, que, por vezes, se confundem com a própria moradia da família, inclusive, alcançando a proteção legal do Bem de Família quanto à impenhorabilidade contida na Lei 8.009/1990, assegurando o mínimo existencial ao patrimônio da família[6].
Na empresa familiar, quando falamos em família, embora a expressão família nos lembre do conceito contemporâneo plural das “famílias”, não estamos aqui a limitar aos aspectos biológicos ou socioafetivos do núcleo familiar. Eduardo Goulart Pimenta e Maíra Leitoguinhos ao discorrerem sobre a família na empresa familiar têm que “esta sequer se restringe aos critérios de graus de parentesco, podendo ir além, desde irmãos, aos primos e até as grandes redes multifamiliares”. Para estes, não descaracteriza uma empresa familiar o fato de não englobar exclusivamente todos os membros do quadro societário em família, sendo o aspecto mais importante para sua caracterização a identificação de uma família na posição de controle:[7]
“Assim, é familiar a sociedade que possui pessoas da mesma família determinando as deliberações sociais, as diretrizes a serem seguidas pela sociedade, bem como a composição e atividade de administração. Ou seja, o grupo controlador deve ser familiar. Também é possível a existência de mais de um tronco familiar como participantes desse grupo de controle.”
O patrimônio da empresa familiar tem de modo intrínseco à função social da propriedade relacionada aos interesses da família. Ricardo Padovani Pleti relaciona a empresa familiar inclusive à hipótese de empresário individual{C}[8], pois ainda que não seja composta por membros da família, há de se compreendê-la como aquela em que as condições estruturais de propriedade e de gestão são consideravelmente influenciadas por questões concernentes ao parentesco de seus colaboradores.”[9]
Neste contexto complexo da realidade da empresa familiar no mundo empresarial dos negócios se fazem necessários cuidados com o planejamento sucessório para preservação do patrimônio familiar. Na transferência das quotas ou ações aos herdeiros, surgem diálogos entre os institutos do Direito Sucessório e do Direito Patrimonial de Família para organização da transmissão dos bens causa mortis. Maria Helena Diniz refere-se ao planejamento sucessório no mundo empresarial, não apenas como uma alternativa, mas como uma necessidade para as empresas, vindo a defini-lo como{C}[10]{C}:
“Planejamento sucessório seria a organização em vida da divisão do patrimônio entre os herdeiros e o estabelecimento de mecanismos de administração desse patrimônio”, sempre tendo em vista as limitações impostas pelo Código Civil quanto aos bens destinados aos herdeiros necessários e aos garantidos ao cônjuge (ou companheiro) sobrevivente para evitar futuras impugnações em juízo. Visa à continuidade da atividade empresarial e a dilapidação do patrimônio constituído pela empresa familiar”
Vejamos que planejamento sucessório é gênero e a própria empresa é uma espécie de o instrumentalizar. Porém a intrumentalização não se exaure aí, na consituição da empresa, pois, vamos ter a aplicabilidade dos dispositivos do Código de Direito Civil que devem dialogar com contrato empresarial para operabilizar a transmissão do patrimônio entre os sócios em caso de morte. Ainda, para melhor compreender o planejamento sucessório como gênero, podemos destacar em suas especies, a par do vehículo da empresa e dos intrumentos típicos do Código Civil, outras formas, como exemplos, a constituição de Fundo de Investimento Financeiro – FIV, regulamentado pelo órgão da Comissão de Valores Mobiliários, em que se poderá estabelecer a reserva de usufruto das quotas e doar estas a seus herdeiros, ou, ainda, os contratos de seguro, estabelecendo beneficiários. Estes mecanismo se encontram previstos em legislação extravagante ao código, de modo que o planejamento sucessório comporta vias diversas, resumindo-se em toda forma de organizar a trasmissão de bens em vida para o evento morte.
2) Dos pros e contras dos instrumentos do Código Civil aplicado às transmissões de quotas ou ações das empresas familiares
2.1) Da manutenção do controle societário na sucessão de quotas ou ações em vida versus o uso do testamento
A disputa pelo poder na administração dos negócios no momento após a morte é comum e, por vezes, pode ser agravada pela tensão familiar entre os herdeiros que querem o poder. Este é um dos problemas na transmissão das quotas da empresa familiar que pode vir a ser prevenido com o planejamento sucessório feito a transmissão das ações em vida, em alternativa ao uso testamento, o qual transmissão é subordinada ao evento morte. Opta-se pela transmissão em vida, momento em que o controle da sociedade ainda está sob a vontade da pessoa que será sucedida.
O testamento é o negócio jurídico que por excelência se destina para eficácia da vontade após a morte. Em um planejamento sucessório aplicado a empresa, este poderá ser utilizado, de modo a deixar legado de quotas ou ações. Todavia, em razão das possíveis desigualdades sobre o fracionamento da herança, o cumprimento da vontade após a morte, na transmissão de bens de uma empresa, poderá sofrer diversas complicações que não ocorreriam se fossem partilhadas em vida as mesmas quotas ou ações.
Observa-se que em caso de disposição testamentária, a liberdade de testar deve obedecer à metade correspondente à legítima dos herdeiros, ou seja, os 50% do patrimônio do testador deve ser aquinhoado entre os herdeiros necessários (art. 1.845 do CC), o que nada obsta que as frações finais sejam umas maiores do que as outras, desde que se preserve o percentual mínimo das frações ideais, que correspondem a participação igualitária na metade correspondente à legítima.
A metade disponível recai no que exceder ao percentual da parte legítima, de modo que uns podem ser privilegiados em relação aos outros, isto para o planejamento sucessório da empresa implica em estabelecer percentuais diferentes de ações, concentrando poderes para que se estabeleça o controle societário, assegurando o controle societário para após a morte. Observa-se quanto ao controle societário o artigo 1.010 do Código Civil, em que temos as decisões da empresa tomadas pela maioria dos votos, interpretando-se a maioria dos votos como a maior fração do capital social votante.
Todavia a administração pelo quadro futuro que irá se formar ficará suspensa até que se ultime o inventário. Quando feita a divisão pré-estabelecida em vida, estamos a prevenir as dificuldades de acordos após a morte, de modo que aquele que será sucedido na administração da empresa deixará, em vida, o quadro administrativo que irá lhe suceder, afastando futuras discórdias. Gladston Mamede e Eduardo Cotta Mamede colocam que[13]:
“a constituição da holding, em oposição, viabiliza a antecipação de todo esse procedimento e pode, mesmo, evitar o estabelecimento de disputas, na medida em que permite que o processo de sucessão à frente da(s) empresa(s) seja conduzido pelo próprio empresário ou empresária, na sua condição de chefe e orientador da família, além de responsável direto pela atividade negocial.”
Na sucessão testamentária, ou ainda, em hipótese de falecimento ab intestato, haverá necessidade de inventário para transmissão das quotas ou ações, o que poderá complicar em muito a vida da empresa pelas dificuldades em estabelecer o controle societário no inventário dos bens. Todas as mudanças no quadro societário e gerenciamento da empresa ficam a depender da morosidade dos trâmites e dos elevados custos de inventário o qual poderá levar muito tempo para se concluir, o que deixará a empresa instável na boa administração dos negócios.
2.2) Da partilha em vida para transmissão de quotas ou ações e a necessidade de colação para igualar os direitos à legítim
Dentre os meios de se estabelecer a transmissão inter vivos no planejamento sucessório da empresa há de se considerar alternativas para que se faça do modo mais econômico e célere, o que nos faz refletir nas possibilidades, vantagens e desvantagens de cada hipótese, sendo a partilha em vida uma das formas para que se ultime a propriedade plena para os herdeiros.
Buscando a compreensão do conceito de partilha em vida, esclarece Flávio Tartuce que esta “constitui a forma de partilha feita por ascendente a descendente, por ato inter vivos ou de última vontade, abrangendo seus bens de forma total ou de forma parcial, desde que respeitados os direitos da legítima (art. 2.018 do CC).” [14] Em ordem de preservar a necessidade de subsistência do doador, prossegue: “Cite-se ainda que o estipulante viva com dignidade, na linha do estatuto jurídico do patrimônio mínimo, que pode ser retirada, por exemplo, do artigo 548 do Código Civil, dispositivo que veda a doação universal, de todos os bens, sem a reserva do mínimo para sobrevivência do doador.”[15]
A partilha em vida tem previsão expressa no Código Civil nas disposições relativas ao inventário, o que permite que esta seja levada aos termos de a abertura deste, todavia, nada obsta que também se aplique o regime jurídico da partilha em vida de modo que se ultimem os seus efeitos jurídicos em vida, na transmissão da propriedade. Em análise a questão de que momento deve ser direcionada a partilha em vida, se deve ser feita em inventário ou se poderá ocorrer anterior ao óbito, Giselda Maria Fernandes de Novaes Hironaka nos diz que[16]
“não se trata de uma divisão amigável, pois não são os herdeiros que assim a compõe de acordo com suas vontades. Esse permissivo legal guarda maior intimidade, na essência e no conteúdo, com as formas de disposição patrimonial possíveis de serem promovidas pela pessoa em sua vida (doação ou testamento)”.
Nas lições de Zeno Veloso temos que a partilha em vida é meio tanto para que se opere a divisão a ser feita no momento do inventário de bens causa mortis, como é meio para que se faça uma doação antecipando os direitos que recaem após a morte, doação-partilha[17]. Desta forma aplicam-se as regras da doação, ocorrendo na realidade o adiantamento da legítima. Ou seja, não se poderá distribuir quinhões de forma que não se respeite a parte correspondente à legítima, afastando-se a doação inoficiosa, mas poderá contemplar frações distintas, resultando em frações desiguais. Todavia, neste contexto, temos que na antecipação dos bens hereditários, quanto ao patrimônio adquirido posteriormente, também haverá necessidade de igualar os direitos à legítima, o que significa riscos à partilha oferecida que poderá sofrer aumentos ou reduções, não eximindo os herdeiros do dever de colacionar.
Arnoldo Wald, quanto ao regime jurídico da partilha em vida, vem a diferenciar esta do contrato de doação, pois, “embora deva respeitar os direitos à legítima dos herdeiros necessários, visa atender a totalidade do patrimônio e não se trata de hipótese de doações sucessivas, devendo estar presente todos os herdeiros”.[18] Por esta razão Arnoldo Wald vem a acrescentar que a partilha em vida é ato que visa afastar os deveres de colação de bens, não sendo uma doação-partilha, mas sim um instituto sui generis, lembrando que não é o nome que define o instituto, mas sim o seu conteúdo.
O Superior Tribunal de Justiça ao apreciar a questão no REsp 730.483/MG, Rel. Min Nancy Andrigui, j. 3.5.05, Dje 20.6.05, entendeu que quanto à partilha em vida “a dispensa do dever de colação só se opera por expressa e formal manifestação do doador, determinando que a doação ou ato de liberalidade recaia sobre a parcela disponível de seu patrimônio.” Ou seja, elimina-se a necessidade de colação de bens apenas quando sair da metade disponível do patrimônio, por aplicar-se o regime das doações.
2.3)Da doação com reserva de usufruto.
Como meio alternativo, ao lado do testamento e partilha em vida, temos o instituto da doação com reserva de usufruto, na possibilidade de manter a administração e frutos da empresa para o doador, outorgando aos donatários apenas a nua-propriedade. Este instituto guarda diferença da partilha em vida na medida em que não se transmite a plena propriedade, ficando o donatário desprovido do jus fruendi. Mostra-se vantajosa a doação com a reserva de usufruto ao doador porque este vai continuar a gerir e ter lucros com a empresa constituída, de modo que a empresa não sairá de seu controle até que este venha a falecer. Com o evento morte as ações ou quotas sociais passaram à fruição dos donatários.
Na doação com reserva de usufruto repetem-se as observações anteriores quanto à partilha e distribuição dos quinhões hereditárias em adiantamento da legítima, havendo vedação à doação inoficiosa (art. 549 do CC). Todavia, através da reserva do usufruto não há de se preocupar com o mínimo existencial, de modo que se poderá dispor integralmente do seu patrimônio sem incidir em doação universal (art. 548 do CC).
Com o fim do usufruto pelo evento morte, o domínio das quotas se torna pleno nas mãos dos herdeiros, ingressando estas, automaticamente, na propriedade dos donatários sem a necessidade de se recorrer ao inventário, economizando tempo e custos. Para consolidação do domínio, a certidão de óbito é suficiente para instrumentalizar a averbação do cancelamento do usufruto e a consolidação de todos os poderes de propriedade no registro imobiliário, havendo a dispensa do inventário.
Ainda, quanto à doação, permite-se que se tenha clausulado o direito de reversão, nos termos do artigo 547 do Código Civil, de modo que “o doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário”. Estando vivo o doador ao tempo da morte do donatário, o bem retornará ao seu domínio, permanecendo na empresa familiar. Trata-se de um mecanismo para preservar o patrimônio da empresa familiar, de modo que não se opere a transmissão causa mortis ao consorte ou companheiro do donatário.
2.4) Da validade da doação causa mortis
Outra alternativa suscetível ao planejamento sucessório das empresas familiares é a transferência das quotas e ações por meio da doação causa mortis. Embora pareça contraditório ter a morte como termo, o qual pressupõe evento futuro e certo, não estamos, nesta hipótese, em incorrer em fato jurídico que está indefinidamente em aberto, o que comprometeria a validade da disposição[19]. Não é este o caso, pois a morte virá a ocorrer, neste sentido valem os apontamentos feitos por Euclides de Oliveira que[20]: “A morte é um evento futuro e certo e, portanto, pode ser aposta em determinados contratos como o elemento acidental denominado de termo.”
Um aspecto que deve ser afastado quanto à polêmica da licitude da doação causa mortis seria a vedação ao pacta corvina. Embora pareça em sua primeira impressão ser ato ilícito, em ofensa a regra do artigo 426 do Código Civil, pelo qual “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”, neste caso específico, em que a liberalidade recai no próprio patrimônio do doador, não se trata de bens de uma herança futura, a receber de terceiros, mas sim de bens em nome próprio, em que há o princípio da disponibilidade em matéria de direito de propriedade afastando qualquer ofensa de índole moral.
Euclides de Oliveira explica que não há incidência do artigo 426 neste caso, pois a razão da vedação legal está para “a proibição de que sejam transmitidos direitos que ainda não existem”[21], de modo a concluir que, quanto à hipótese de pacta corvina:{C}[22]:
“Seria a hipótese de compra e venda, doação ou qualquer outro negócio objetivando o futuro direito de herança da pessoa que pratica o ato ou de terceira pessoa, a significar mera expectativa de direito hereditário." A proibição do pacto sucessório, com o apelido de “pacto corvino”, atende a regra legal e moral de que não se pode dispor sobre bem alheio ao patrimônio do contratante, regra essa que representa um admissível avanço em um direito de herança que é de conquista eventual e futura.
Não é o caso do doador que faça a atribuição de bem integrante de seu patrimônio pessoal, com inteira liberdade de agir e dispor, apenas estabelecendo um termo para sua eficácia, assentado no evento morte.”
Desta forma, com o implemento do termo, temos a aquisição do exercício do direito, ingressando os herdeiros no domínio pleno das quotas ou ações que foram doadas, sendo suficiente a apresentação da certidão de óbito para aquisição do exercício dos direitos. Reitera-se o que já foi dito quanto à economicidade que, por ser a doação meio de transmissão inter vivos, não haverá preocupações com o inventário.
Ainda quanto à legalidade da doação causa mortis, Euclides de Oliveira nos remete aos precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgamento proferido na 3ª Câmara, A.I. nº 224.914-4/0-00, da Comarca de São Paulo, segundo o voto do Des. Ênio Santarelli Zuliani, em que se analisa a transação abrangendo quotas societárias relativas à parcela dos bens da herança, não sendo o caso de pacta corvina. Como fundamento na decisão estão as lições de Pontes de Miranda, quando examinou a possibilidade de serem firmados pactos antenupciais que disciplinam o dote[23]:
“Se os pactos que têm por objeto quotas futuras, na ordinariedade dos casos, são dissimulados contratos de herança, não assim os que recaem em determinado bem, que o proprietário, no momento de doar, vender resoluvelmente, etc...”
E ajunta que:
“não se trataria, em tais espécies, de pacta corvina, disposição de herança de outrem, nem de pacto sobre a própria sucessão, que fizesse perigar a liberdade de testar”.
Segundo o parecer, em hipótese de atos de disposição de bens em que o proprietário pode doar, não são contratos de herança, no que permitisse, sem perigar, a liberdade de dispor.
2.5) Dos regimes de bens, pactos antenupciais e escrituras públicas de união estável
No acervo de bens da empresa, os efeitos da comunhão de bens dos herdeiros, seja em razão da comunhão gerada pelo matrimônio ou em caso sucessão causa mortis, deve ser resguardado de eventuais separações ou divórcios que venham a dilapidar o patrimônio familiar confiado ao regime empresarial. Os possíveis efeitos jurídicos do regime de bens da comunhão entre cônjuges ou companheiros, haja vista o direito à meação destes pelo término do relacionamento, é uma preocupação que pode ser atenuada ao se fazer o planejamento sucessório amparado por meio de pactos antenupciais híbridos.
Quanto aos direitos aos frutos na comunhão de bens em caso do rendimento da empresa e do aumento do capital social da empresa, por regra, se comunicam aos cônjuges ou companheiros. Maria Helena Diniz expõe que “se o regime for de comunhão parcial ou universal, as quotas sociais adquiridas, onerosamente, inclusive com o saldo do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) – BAASP, 2680:184311, durante o casamento por um dos cônjuges poderão se comunicar ao outro, devendo ser partilhadas”.
Todavia, para excluir o cônjuge ou companheiro da comunhão no capital social da empresa, Rubia Carneiro Neves, propõe como alternativa a formação de regime híbrido[24]:
“mesclar os regimes de bens ou criar regime próprio, isto é, criar um regramento peculiar e interessante ao casal, para regulamentar a aquisição onerosa de bens durante o casamento, podendo o mesmo ser combinado com uma planejada redação social do contrato ou estatuto social, podendo ser redigida uma cláusula de bens pertencentes ao virago e aqueles de titularidade do varão”
(...)pode-se estabelecer que quotas ou ações que foram ou que vierem a ser integralizadas com recursos exclusivos do trabalho de um dos nubentes, não será partilhado com o outro, nem no que se refere ao aspecto patrimonial, muito menos quanto ao aspecto relacionado aos frutos ou rendimentos da referida participação societária.”
Sendo da vontade dos cônjuges, ao eleger regime híbrido, podem estes separar o patrimônio comum, formando duas massas patrimoniais: uma com origem na comunhão de bens dos aquestos; outra com os bens da empresa. Como consequência, teremos o regime de separação convencional de bens para os bens da empresa, enquanto para os demais bens, integrarão o patrimônio comum, de acordo com a escolha pelo regime de comunhão parcial ou da comunhão universal de bens.
A escolha do regime de bens tem por finalidade não apenas regrar a origem, direitos e obrigações dos bens, mas também encontra uma relação com os aspectos dos problemas vindos da administração da empresa. Ao regrar o regime de bens dos membros da empresa familiar, seja por meio de pacto antenupcial ou por meio de escritura pública de união estável, nada obsta que sejam conciliados no pacto maiores regramentos, disciplinando de modo preventivo questões como: da propriedade sobre participações societárias; definir com mais clareza questões de bens adquiridos antes do início da união estável ou casamento; arrolar a existência de dívidas anteriores ao patrimônio comum; estabelecer eventuais indenizações por meio de alimentos transitórios em caso de dissolução da relação; estabelecer transmissão de quotas e ações causa mortis por pacto antenupcial com doações causa mortis; enfim, atuar de modo aos interesses da empresa estarem firmes e ajustados, não apenas para comunhão, mas nas hipóteses de meação ou sucessão.
Quanto à publicidade e eficácia do clausulamento dos bens da empresa familiar, para se obter a interação do regime de bens com o contrato social, se faz necessário, conforme dispõe o artigo 979 do Código Civil que: “Além do registro civil, serão arquivados e averbados, no Registro Público de Empresa Mercantis, os pactos e declarações antenupciais do empresário, o título de doação, a herança, ou legado, de bens clausulados de incomunicabilidade”. Ou seja, para validade das relações obrigacionais contraídas no regime de bens perante terceiros que contratem com a empresa, seja o regime de bens contraído por meio de pacto antenupcial ou por meio de escritura pública de união estável, a certidão deve ser apresentada na Junta Comercial (para sociedade empresarial), ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas (para a sociedade simples).
2.6) Das cláusulas restritivas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade
A aposição de cláusulas restritivas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade, para a empresa familiar, em um planejamento sucessório, tem utilidade em afastar os direitos do cônjuge ou companheiro sobre o patrimônio da empresa em caso do fim da sociedade conjugal por razões de separação e divórcio. Estas podem ser apostas em doações ou pactos antenupciais, quando realizadas doações no corpo deste aos nubentes. Todavia, o ordenamento resguarda a qualidade de herdeiro necessário ao cônjuge, companheiro, direito este que não poderá ser preterido na aposição destas cláusulas restritivas por razões da ordem de concorrência sucessória.
Quando realizada a doação, com os devidos encargos tributários, estas cláusulas restritivas podem vir a integrar o próprio corpo do contrato social ou estatuto social da empresa de modo que façam parte da redação destes. Poderá se apor cláusulas restritivas no contrato social sobre a fração do capital social, no que haverá a incidência destas inclusive quanto aos bens que a empresa posteriormente vier a adquirir em aumento de capital social.
Observa-se que em caso de serem bens que compõe a parte legítima da herança, nos termos do artigo 1.848 do Código Civil, deverá ser aposta justa causa. Definir justa causa não é uma questão com ampla liberdade subjetiva aquele que impõe a razão, devendo ser motivo sério e plausível, pois poderá ser tornada sem efeito a restrição mediante processo de revisão judicial.
A legítima é matéria de ordem pública e, como norma de ordem pública, tem o propósito de o Estado intervir de modo a proteger a instituição familiar, não podendo ser clausulada livremente, não cabendo impor termos, encargos ou condições que onerem a parte correspondente ao patrimônio da metade indisponível, permitindo-se apenas que se imponha as restrições previstas no código, artigo 1.848 (incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade), e que somente serão aceitas se houver declarada a justa causa.
Quanto aos direitos sucessórios dos cônjuges daqueles que recebem os bens gravados com cláusulas de incomunicabilidade, o gravame não tem eficácia restritiva e o direito sucessório permanece, segundo Carlos Alberto Dabus Maluf, temos que “as clausulas restritivas não privam o cônjuge de seus direitos sucessórios, a sucessão patrimonial do cônjuge ocorrerá ainda que clausulada a incomunicabilidade dos bens”[25].
Não é possível ter cláusula restritiva que perdure por mais de uma geração. Ao limitar a extensão temporal, impede-se o clausulamento em segundo grau, o que já foi apreciado pela Corte Suprema no Ac. Unânime da 3ª T., REsp. 1.101.702, Rel. Min. Nancy Andrigui, j.22.9.09, DJe 9.10.09. Todavia, não necessariamente o clausulamento será vitalício. Quanto ao prazo, permite-se que este seja estabelecido em meses ou anos, mas desde que não ultrapasse uma geração[26].
A legítima no Código Civil de 1916 não incluía a presença do cônjuge entre os herdeiros necessários, relata Zeno Veloso que “a mudança seguiu a esteira do Código Civil Italiano (art.536, com a reforma de1975) e do Código Civil Português (art. 2.157, com a reforma de 1977)”.[27] Estes países tem base na formação romano-germânica, assegurando a preservação de quota hereditária aos herdeiros necessários. Porém, com a mudança de paradigmas para uma feição democratizada da família, em uma análise contemporânea da sociabilidade do direito, podemos falar hoje na existência da função social dos Direitos Sucessórios, onde os valores do Código Civil de 1916 da família patriarcal matrimonializada foram superados na recodificação do Código Civil 2002.
A dependência econômica e o caráter submisso da esposa acabaram, foi neste sentido que os direitos sucessórios passaram a também assegurar o cônjuge como herdeiro necessário, tudo isto foi resultado de uma família igualitária em que a mulher é autossuficiente. Não há nos moldes da atual legislação como excluir da sucessão dos bens particulares o cônjuge e também o companheiro pela mudança jurisprudencial{C}[28], pois, estes, segundo a regra que se extrai do artigo 1.829: onde não meiam herdam, onde herdam, não meiam.
Voltando-se à função social da herança, em resguardar os direitos à legítima, não se trata de sentimentalismo apenas, guiado pelo afeto das relações de família, mas, como norma de ordem pública, encontra seu fundamento no princípio da solidariedade, sendo fundamental à subsistência do lar. Marcelo Truzzi Otero, em uma perspectiva civil-constitucional da legítima tem que esta “constitui, pois, uma das formas tutelares do Estado para com a família, impedindo que o desatino, o desmando ou a falta de consciência prevaleçam sobre o afeto e a solidariedade que devem nortear o universo das relações familiares[29]{C}.
A intervenção do Estado no Direito Sucessório deve servir de meio para que se alcance a dignidade da pessoa humana em bens e direitos fundamentais, o que nos traz a relação de solidariedade entre ascendentes, descendentes, cônjuge e companheiro.
Todavia, sendo os filhos autossuficientes, como deverá ser interpretada a função social nos valores contemporâneos quanto à manutenção da legítima na transmissão de bens causa mortis? Mario Luiz Delgado propõe “revisitar a legítima dos ascendentes e descentes” em o sentido crescente dos argumentos antilegitimistas, que, diante o afastamento da família da sua antiga função de unidade de produção, destaca, entre os mais apontados argumentos pelos doutrinadores, estar “descabendo invocar o princípio de solidariedade familiar em desfavor do autor da sucessão quando os herdeiros legitimários não necessitam daqueles bens para seu sustento”, em reflexão acrescenta: [30]
“Em tempos de afetos líquidos, de vínculos fluidos e de instituições familiares rarefeitas pela informalidade e pelo descompromisso, ampliar a liberdade testamentária não incentivaria mais uma solidariedade familiar autêntica, fundada no afeto em direção a uma herança conquistada em substituição a uma transmissão hereditária forçada?”
Nelson Rosenvald e Christiano Chaves Farias expõe que: “O que é mais importante em uma relação familiar é o laço de solidariedade, não a transmissão patrimonial. É violenta a limitação à liberdade de testar de um pai, por exemplo, que não sabe que os seus filhos são maiores e capazes e possuem um patrimônio, maior que o seu mesmo, e que, por isso, gostaria de beneficiar um irmão desafortunado. A liberdade humana deveria prevalecer, afinal cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, conforme acurada sensibilidade de Caetano Veloso (Dom de iludir).{C}[31]
Vejamos que o Projeto Lei 3.145/2015 busca acrescentar as causas de deserdação o inciso V do art.1.962, sendo que o anteprojeto do IBDFAM coloca como causas de deserdação: I- ofensa à integridade física ou psicológica; III – desamparo material e abandono afetivo voluntário do ascendente pelo descendente. A redação projetada confere novo tratamento jurídico as causas de exclusão da herança. Em comentários ao projeto lei Renata Maria Silveira Toledo expõe que a alteração “também se preocupa em esclarecer que é a relação amorosa que leva a deserdação”.[32]
Não é raro nos depararmos com hipóteses em que há o desvio de bens à empresa para afastar as regras da concorrência sucessória de herdeiros necessários. Todavia, a empresa não pode servir como meio para atos ilícitos no aporte dos bens em nome apenas de um dos filhos, de modo a fraudar os direitos do cônjuge e o companheiro e os demais herdeiros necessários. Neste sentido, Rolf Madaleno alerta que:[33]
“Ora, se possuindo bens em seu nome pessoal fica difícil subtrair de algum herdeiro legítimo a sua quota hereditária obrigatória, pois o herdeiro goza de mecanismos de mais fácil controle para apurar a integridade de seu quinhão e eventual restituição judicial, com efeito, que esta mesma facilidade e segurança desaparecem quando o caminho escolhido passa pelo uso indevido da via societária, no suposto de sua independência patrimonial e jurídica põe a salvo de qualquer perquirição sucessória.”
Práticas escusas como a nomeação de um “testa de ferro”, de terceiros ou de pessoas jurídicas à frente da administração, ocultando a fraude que está nas operações societárias, devem ser combatidas, o direito deve fazer esta distinção.
CONCLUSÃO
Ao adentrar as hipóteses previstas no código para transmissão causa mortis vimos que o testamento não se mostra como a melhor técnica de direito, pois não está a solucionar dificuldades de manutenção de controle societário para após a morte, pondo em risco a gestão da empresa.
Posto os aspectos semelhantes entre a partilha em vida e a doação com reserva de usufruto, vimos que estas encontram um ponto distintivo fundamental, o da não transmissão da propriedade plena na reserva do usufruto. Esta técnica de se organizar a transmissão sucessória se mostrou mais adequada por proporcionar o jus fruendi ao doador. Também vimos que os aspectos econômicos são favorecidos pela facilidade de conclusão do procedimento de transmissão pela simples averbação do óbito encerrando a reserva do usufruto. Igualmente, a doação causa mortis, é válida e se mostra com as mesmas vantagens que a doação com reserva de usufruto.
Quanto à complexidade dos efeitos dos regimes de bens, a aposição das cláusulas restritivas de direitos e a proteção aos direitos da legítima, concluimos que existe uma correlação que deve ser buscada para que se preservem direitos fundamentais ao indivíduo em solidariedade familiar.
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