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Crimes dolosos, praticados por militares dos Estados, contra a vida de civis:

crime militar julgado pela Justiça Comum

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Agenda 15/10/2005 às 00:00

1. Introdução

            Desconsiderando ilações acerca das razões que levaram o Poder Constituinte derivado a alterar a competência da Justiça Militar Estadual, com o advento da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, surgiu no universo jurídico uma nova roupagem para os crimes dolosos, praticados por militares dos Estados, contra a vida de civis que encontrem tipicidade no Código Penal Militar.

            Transcendendo uma visão puramente crítica e inconformista, devemos absorver a nova realidade buscando delinear suas conseqüências práticas para os operadores do Direito Penal Militar, substantivo e adjetivo.

            As linhas que se seguirão, abertas a críticas construtivas que possam enaltecer o debate, terão o escopo apenas de evidenciar uma visão possível acerca da nova ordem, sem a intenção de sacramentar idéias, estabelecer dogmas intransponíveis ou mesmo de impor uma análise puramente corporativista, que coloque acima do Direito interesses comezinhos repudiáveis.


2. A situação vigente antes da Emenda Constitucional

            O parágrafo único do artigo 9º do Código Penal Militar, acrescido pela lei 9.299, de 07 de agosto de 1.996, in verbis, dispõe que os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da Justiça Comum.

            Para boa parte da Doutrina, para não dizer sua totalidade, ao assim dispor, a lei 9.299/96 apresentou inconstitucionalidade patente, porquanto sua edição apenas suprimiu a competência da Justiça Militar, expressa no art. 124 (Justiça Militar Federal) e no § 4º do art. 125 (Justiças Militares Estaduais), da Constituição Federal.

            Com efeito, no que concerne ao deslocamento de competência para a Justiça Comum para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, perpetrados contra civis, a lei 9.299/96 apresentou flagrante inconstitucionalidade. O raciocínio para essa conclusão é bastante simples, bastando uma simples reflexão acerca do princípio da supremacia da constituição e da idéia de uma constituição rígida. Nesse sentido, Alexandre de Moraes, de forma precisa e clara, argumenta que "a existência de escalonamento normativo é pressuposto necessário para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo. Além disso" prossegue o insigne autor –", nas constituições rígidas se verifica a superioridade da norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo, no exercício da função legiferante ordinária" [01]. É dizer, em outros termos, que nenhuma norma infraconstitucional, pelos postulados supra, pode afrontar a Lei Maior ou, do contrário, deverá ser rechaçada por inconstitucionalidade.

            No caso da lei 9.299/96, o que se viu foi a materialização dessa inconstitucionalidade, vez que referida lei, lei ordinária, alterou competência de julgamento de crimes militares dolosos contra a vida de civis que, constitucionalmente, era conferida às Justiças Militares, relativizando e conspurcando o princípio do juiz natural.

            A propósito do princípio do juiz natural, dispõem respectivamente os incisos XXXVII e LIII do art. 5º da Constituição Cidadã, que não haverá juízo ou tribunal de exceção e que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. O princípio em relevo deve ser interpretado de forma plena, vedando-se "não só a criação de tribunais ou juízos de exceção, mas também de respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e imparcialidade do órgão julgador." [02]

            De se notar nesse cenário que o texto do parágrafo único do art. 9º, nitidamente norma de Direito Penal Militar adjetivo, em um compêndio que pretende ser de Direito Penal Militar substantivo, não exclui o crime doloso contra a vida praticado contra civil da esfera dos crimes militares.

            Ora, se o crime era militar e tal crime, por previsão expressa da Lei Maior, era de competência da Justiça Militar, o deslocamento do julgamento para a Justiça Comum, materializada por lei ordinária, resultava na submissão do jurisdicionado a autoridade não competente. Interpretações diversas desta, com a devida vênia, lastraram-se em quaisquer outros critérios, menos um critério técnico-jurídico.

            Malgrado a construção supra, ao menos no âmbito estadual e isso com o respaldo do Excelso Pretório e do Superior Tribunal de Justiça, firmou-se posição jurisprudencial no sentido da constitucionalidade da lei, sendo a previsão em relevo aplicada em sua plenitude. Vejamos alguns julgados, extraídos do primoroso estudo elaborado por Jorge Cesar de Assis [03]:

            Supremo Tribunal Federal:

            Crimes dolosos contra a vida. Inquérito. Julgada medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil - ADEPOL contra a Lei 9.299/96 que, ao dar nova redação ao art. 82 do Código de Processo Penal Militar determina que "nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à Justiça Comum." Afastando a tese da autora de que a apuração dos referidos crimes deveria ser feita em inquérito policial civil e não em inquérito policial militar, o Tribunal, por maioria, indeferiu a liminar por ausência de relevância na argüição de ofensa ao inciso IV, do § 1º e ao § 4º do art. 144, da CF, que atribuem às polícias federal e civil o exercício das funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Considerou-se que o dispositivo impugnado não impede a instauração paralela de inquérito pela polícia civil. Vencidos os Ministros Celso de Mello, relator, Maurício Corrêa, Ilmar Galvão e Sepúlveda Pertence. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.494-DF – Rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, DJU, 20.04.97).

            Superior Tribunal de Justiça

            Ementa. Processo penal. Conflito de competência. Justiça Militar Estadual e Justiça Estadual Comum. Ação penal em curso. Lei 9.299/96. Aplicação imediata. Os crimes previstos no art. 9º, do Código penal militar, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, são da competência da Justiça Comum. (Lei 9.299/96). E, por força do princípio da aplicação imediata da lei processual (CPP, art. 2º), afasta-se a competência da Justiça Militar para julgar a ação penal em curso.

            Conflito conhecido para declarar competente o MM. Juiz de Direito da Vara do Júri. Unânime. (STJ – 3ª Seção – Conflito de competência 17.665-SP – Rel. Min. José Arnaldo, j. 27.11.96, DJU, 17.02.97)

            Tribunal de Justiça do Paraná:

            Ementa. Conflito de competência. Crimes de homicídio qualificado e facilitação de fuga de presos...o crime de homicídio qualificado, praticado por policial militar contra civil, em 26.06.93, cujo processo tramita perante a Justiça Castrense, passa à competência da Justiça Comum, sem que haja ofensa ao princípio do Juiz natural...(Ac. 3.036 – Confl. Comp. 54.932-8, de Palmas – grupo de Câmaras Criminais, Rel. Des. Trotta Telles, j. 18.06.97).

            Ementa. Conflito de Competência. Homicídio doloso na forma tentada, cometido por policial militar do Estado, contra civil. Competência da Justiça Comum. Aplicação da Lei 9.299/96. Incoerência de ofensa a dispositivos constitucionais. Os crimes previstos no art. 9º do CPM, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, com o advento da Lei 9.299/96, passaram à competência da Justiça Comum. Não é inconstitucional o art. 1º, § 1º, da Lei 9.299/96. (Confl. Comp. 67.824-6, de Realeza. Grupo de Câmaras Criminais. Rel Des. Trotta Telles, j. 16.09.98).

            Em adição, tome-se julgado oriundo de Minas Gerais, no seguinte sentido:

            Ementa:

- Convencido o Juiz Auditor da existência de dolo no ato praticado por policial militar de que resultou a morte de um civil, é correta a decisão que julgou a Justiça Militar incompetente nos termos da Lei. 9.299/96. (Rec. Sentido Estrito nº 226. Processo nº 16.348/2ª AJME. Rel. Juiz Cel PM Laurentino de Andrade Filocre. Recorrente: Ministério Público. Recorrido: O Juízo da 2ª AJME).

            Como se verificou, por via concentrada, o Supremo Tribunal, em face de Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil [04], entendeu que a disposição em discussão era constitucional. Por outro lado, há decisões, por via difusa, que muito acertadamente afastam a constitucionalidade da lei 9.299/96, dentre as quais pode-se destacar posição do Superior Tribunal Militar, na seguinte conformidade:

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            Ementa

. Recurso Criminal. Competência da Justiça Militar da União.Inconstitucionalidade, declarada incidenter tantum, da Lei nº 9.299 de 1996, no que se refere ao parágrafo único do art. 9º do CPM e ao caput do art. 82 e seu parágrafo 2º do CPPM. Desde a sanção da Lei nº 9.299 de 1996, com o Projeto de Lei encaminhado ao Congresso Nacional para modificá-la, verifica-se que seu texto resultou equivocado. Enquanto não ocorre a alteração do texto legal pela via legislativa, o remédio é a declaração de sua inconstitucionalidade Incidenter tantum, conforme dispõe o Art. 97 da CF. Antecedentes da Corte (RCr nº 6348-5/PE). Provido o recurso do RMPM e declarada a competência da Justiça Militar da União para atuar no feito. Decisão unânime.(Acórdão nº 1997.01.006449-0 UF: RJ Decisão: 17/03/1998. Rel. Min. Aldo da Silva Fagundes).

            Dessarte, o entendimento jurisprudencial dominante era o de que os crimes em apreço deveriam ser julgados pela Justiça Comum. Essa realidade levou muitos à conclusão de que, se a lei não era inconstitucional (até mesmo na visão da Corte Maior), somente uma solução poderia ser dada ao problema: concluir, a fórceps, que os crimes dolosos contra a vida praticados por militares, contra civis, deixaram de ser crimes militares com o advento da lei 9.299/96. Por essa razão, muito bem observa Célio Lobão, acertaria o legislador ordinário se, simplesmente, utilizasse a seguinte redação: "os crimes dolosos contra a vida, praticados contra civis, não são crimes militares" [05]. O texto idealizado por Célio Lobão, de redação simples e direta, solucionaria, sem a necessidade de nenhuma construção metajurídica, a questão, porquanto o Poder Constituinte originário atribuiu ao legislador ordinário a definição do ilícito penal militar ("crimes militares definidos em lei", consignam os art. 124 e 125, § 4º da Constituição Federal).

            A práxis demonstrou que a interpretação por desnaturação do delito doloso contra a vida de civil para o catálogo dos crimes comuns era a mais adequada e viável, vez que as condenações de militares dos Estados após o surgimento do parágrafo único do art. 9º se deram com lastro no art. 121 do Código Penal e não no art. 205 do Código Penal Militar.


3. Crimes dolosos contra a vida de civis: crime militar julgado pela Justiça Comum

            3.1. Crime militar doloso contra a vida de civil, perpetrado por militares das Forças Armadas

            A situação esboçada permanece inerte no que concerne ao crime militar doloso contra a vida de civil, perpetrado por militares das Forças Armadas, já que a Emenda Constitucional nº 45/04 não alterou o art. 124 da Constituição Federal.

            Como se demonstrou, dois caminhos poderiam ser seguidos em face da realidade apresentada: desnaturar o crime do rol dos crimes militares ou considerar a lei 9.299/96, particularmente no que concerne ao parágrafo único do art. 9º, inconstitucional, isso pelo controle difuso de constitucionalidade.

            Felizmente, no âmbito da Justiça Militar Federal prevaleceu a racionalidade técnico-jurídica, afastando o Superior Tribunal Militar a aplicação do dispositivo reconhecendo sua inconstitucionalidade incidenter tantum, posição que deve ser mantida, salvo se a reforma do Poder Judiciário, que ainda continua em curso, alterar o cenário constitucional.

            3.2. A nova realidade das Justiças Militares Estaduais

            Em que pesem as justas críticas tecidas à nova redação do art. 125 da Carta Mãe, e nesse propósito muito feliz foi Jorge César de Assis [06], em um ponto o constituinte derivado parece ter mérito inconteste: caiu por terra a discussão acerca da inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 9º do Código Castrense no âmbito das Justiças Militares Estaduais.

            O novo texto é claro ao consagrar a competência do Tribunal do Júri para processar e julgar os crimes militares dolosos contra a vida de civil, perpetrados por militares dos Estados.

            Vejamos o que consigna a nova redação do § 4º do art. 125 da Carta Magna:

            Compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças

(grifei).

            Nitidamente, o Tribunal do Júri, em uma situação excepcional trazida pela própria Constituição, passará a julgar crimes militares dolosos contra a vida de civis, ou seja, ao contrário do que se praticou até o advento da Emenda Constitucional em apreço, os processos deverão ter curso por incorrência do jurisdicionado nos art. 205 ou 207 do Código Penal Militar, ainda que o Tribunal do Júri seja expressão da Justiça Comum.

            3.3. A posição hierárquica da Emenda Constitucional

            "O poder constituinte pode ser conceituado como o poder de elaborar (e neste caso será originário), ou atualizar uma Constituição, através da supressão, modificação ou acréscimo de normas constitucionais (sendo nesta última situação derivado do originário)" [07].

            Como se vislumbra da proposição acima, o Poder Constituinte pode ser originário (direto, de primeiro grau, inicial, inaugural) ou derivado (indireto, de segundo grau, instituído, derivado ou secundário). Este interessa ao tema proposto, porquanto dele origina-se a emenda constitucional.

            O Poder Constituinte derivado altera a constituição em vigência, obedecendo as regras materiais e formais nela previstas ou estrutura, calcado na capacidade de auto-organização, a Constituição dos Estados-membros. Trata-se de um poder subordinado e condicionado, e com procedimento previsto na Constituição em vigor.

            A alteração do texto constitucional por emenda não é livre, limitando-se pelo que estabeleceu o próprio Poder Constituinte originário. Essa característica, ressalte-se, é o que confere à nossa Constituição, quanto à alterabilidade, as classificações de rígida e parcialmente alterável. Dessarte, o constituinte derivado deve observar limites para alterar a Lei Maior, sendo eles de natureza formal (quorum de aprovação e rito diferenciado para a alteração da constituição – art. 60, I, II e III, e § 2o, da Constituição Federal), circunstancial (art. 60, § 1o, da CF - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio), material (conteúdo material da Constituição que não pode ser alterado; são as cláusulas pétreas previstas no art. 60, § 4o – forma federativa de Estado; voto direto, secreto, periódico e universal; separação dos poderes; direitos e garantias individuais), e implícitos (veda-se a alteração das normas limitadoras de alteração constitucional).

            Primordial ressaltar que a "emenda à Constituição Federal, enquanto proposta, é considerada um ato infraconstitucional sem qualquer normatividade, só ingressando no ordenamento jurídico após sua aprovação, passando então a ser preceito constitucional, de mesma hierarquia de normas constitucionais originárias" [08].

            3.4. Competência de julgamento dos crimes militares e dos crimes militares dolosos contra a vida de civis

            A nova redação trazida pelo § 4º do art. 125 mantém a competência da Justiça Militar dos Estados para processar e julgar os crimes militares, a exceção de uma espécie, qual seja, o crime militar doloso contra a vida de civil, que passou a ser de competência do Tribunal do Júri, agora, por uma exceção límpida, o juízo natural para tal delito.

            Por estranho que possa parecer, essa é a nova realidade a ser reconhecida.

            A estranheza, no entanto, começa a se dissipar quando da incursão pelo caráter especial do Direito Penal Militar e quando da análise do Direito comparado.

            A especialidade do Direito Penal Castrense, em visão tradicional, evidencia-se pelo órgão especial que o aplica: as Justiças Militares. Nessa linha, desponta Mirabete afirmando que a distinção entre Direito Penal comum e Direito Penal especial "só pode ser assinalada tendo em vista o órgão encarregado de aplicar o Direito objetivo comum ou especial". [09]

            A especialidade (ius singulari), que não se confunde com excepcionalidade (privilegium), por esse critério, adviria das normas constitucionais (artigos 124 e 125, § 4º da Constituição Federal), que definem a competência da Justiça Militar.

            Recentemente, porém, a clássica abordagem vem sofrendo duras críticas, não sem um fundo de razão, deve-se assinalar.

            Célio Lobão, aproveitando os postulados, dentre outros, de Romeu de Campos Barros, entende que "classificar o direito penal especial em função do órgão judiciário encarregado de aplicar o direito objetivo, demonstra evidente confusão entre Direito Penal especial e Direito Processual Penal especial". Assevera ainda, após notável argumentação, que "o Direito Penal Militar é especial em razão do bem jurídico tutelado, isto é, as instituições militares, no aspecto particular da disciplina, da hierarquia, do serviço e do dever militar, acrescido da condição de militar dos sujeitos do delito" [10], concluindo adiante, com base na premissa acima, que apenas os crimes propriamente militares merecem o título de Direito Penal especial, sendo os crimes impropriamente militares, cometidos por militares ou por civil, delitos comuns que o legislador ordinário, entendeu por determinar a competência de julgamento às Justiças Militares.

            Assim, nas lições do caro mestre, os crimes de homicídio (art. 205 do CPM), lesão corporal (art. 209 do CPM) etc, não fariam parte do Direito Penal especial, mas do Direito Penal comum, ainda que a competência de julgamento seja da Justiça Castrense.

            Sem embargo, a premissa exposta pelo professor, qual seja, a de que a especialidade do Direito Penal Militar decorre do caráter sui generis do bem jurídico por ele tutelado é perfeita e irretocável. Entretanto, data maxima venia, parece equivocado o entendimento de que somente os crimes impropriamente militares possuem essa especialidade, justamente em razão da abordagem acerca do bem jurídico-penal militar.

            Vários bens, na acepção genérica de bem jurídico-penal, interessam ao Direito Penal Militar, destacando-se, obviamente, a hierarquia e a disciplina, hoje elevadas a valores tutelados pela Carta Maior. Dessa forma, além da disciplina e da hierarquia, outros bens da vida foram eleitos, a exemplo da integridade física preservada, do patrimônio etc.

            Por outro lado, é possível afirmar que, qualquer que seja o bem jurídico evidentemente tutelado pela norma, sempre haverá, de forma direta ou indireta, a tutela da regularidade das instituições militares, o que permite afirmar que, ao menos ela, a regularidade, sempre estará na objetividade jurídica dos tipos penais militares, levando à conclusão de que em alguns casos ter-se-ía um bem jurídico composto como objeto da proteção do diploma penal castrense. É dizer, e.g., o tipo penal do art. 205, sob a rubrica "homicídio" tem como objetividade jurídica, em primeiro plano, a vida humana, porém não se afasta de uma tutela mediata da manutenção da regularidade das instituições militares.

            Para afastar, sempre com a merecida reverência, a visão do mestre Célio Lobão, há casos mais gritantes de crimes impropriamente militares, em que a especialidade, pela tutela da regularidade da instituição, é inequívoca, como o caso do delito de violência contra sentinela (art. 158 do CPM). Ainda que possa ser perpetrado por qualquer pessoa, portanto um crime impropriamente militar, o que excluiria, na visão do autor, o delito do "catálogo" do Direito Penal especial, o tipo penal visa a integridade da instituição, em forma de preservação da autoridade e da integridade física da sentinela, aspecto externo da regularidade.

            Em conclusão, acerca da especialidade, é preferível, partindo da mesma premissa, entender que o Direito Penal Militar é especial em razão do objeto de sua tutela jurídica, qual seja, sempre a regularidade das instituições militares, seja de forma direta, imediata, seja de forma indireta ou mediata. Abarcar-se-ía, portanto, como crimes integrantes deste Direito Penal especial, todos aqueles capitulados no Código Penal Militar, ainda que impropriamente militares.

            A existência de um Direito Penal especial, conclui-se, não clama necessariamente pela instalação de uma Justiça Militar competente para julgar todos os crimes militares perpetrados. Obviamente que, se ela estiver instalada no âmbito constitucional, sua competência, por todos os argumentos já aduzidos, há que ser respeitada.

            A insólita situação em que nos encontramos (crimes militares julgados pela Justiça Militar e, em alguns casos, pela Justiça Comum), aliás, não é privilégio de nosso País. No Direito comparado isso é percebido como aponta o próprio Célio Lobão, ao citar como exemplo a França que "extinguiu a Justiça Militar em seu território, mas autorizou sua manutenção junto às tropas estacionadas ou operando fora do território francês". [11] Dessa cisão, resultou a seguinte realidade: "a) estão sujeitos à jurisdição comum os crimes militares cometidos no território francês e aqueles cometidos por militares estacionados ou em operação em país estrangeiro, onde não foi instalado órgão da Justiça Militar; b) estão sujeitos à jurisdição especial, jurisdição militar, os crimes militares e os comuns de qualquer natureza, cometidos por militares integrantes de tropas estacionadas ou em operação em país estrangeiro ou por civis que nelas prestam serviço, desde que junto a essas tropas funcione órgão da Justiça Militar (conf. arts. 1º, alín. 1ª, 3, 5, 59, 60, do Cód. de Just. Militar francês)". [12]

            3.5. A Constituição como um subsistema

            A Constituição Federal, como já é sabido, compõe-se de um conjunto de proposições que, por uma análise pontual, levaria a uma irracionalidade de difícil composição. Disso decorre que deve ela ser interpretada de forma sistêmica, como, aliás, o deve ser o próprio Direito.

            Iniciemos o raciocínio, pois, pela noção elementar de sistema. Como muito bem ilumina Paulo de Barros Carvalho o sistema, em seu significado de base, "aparece como o objeto formado de porções que se vinculam debaixo de um princípio unitário ou como a composição de partes orientadas por um vetor comum. Onde houver um conjunto de elementos relacionados entre si e aglutinados perante uma referência determinada, teremos a noção fundamental de sistema." [13] Os sistemas, completa o caro mestre, podem ser reais ("formados por objetos extralingüísticos, tanto do mundo físico ou natural como do social, da maneira mesma que eles aparecem à intuição sensível do ser cognoscente, exibindo sua relação de causalidade. São grupamentos de entidades que se vinculam mediante laços constantes, e tudo subordinado a um princípio comum unificador" [14]. Ex.: sistema solar, sistema sanguíneo etc.), ou proposicionais (compostos por "proposições, pressupondo, portanto, linguagem" [15])

            Os sistemas proposicionais, por sua vez, podem ser cindidos em nomológicos (meramente formais, onde as partes componentes são "entidades ideais, como na Lógica, na Matemática etc." [16]) e nomoempíricos (compostos por "proposições com referências empíricas" [17]). Os sistemas proposicionais nomoempíricos, por fim, podem ser descritivos ("como no caso de sistemas de enunciados científicos" [18]) ou prescritivos ("como acontece com os sistemas que se dirigem à conduta social, para alterá-la" [19]).

            Assim, "as normas jurídicas formam um sistema, na medida em que se relacionam de várias maneiras, segundo um princípio unificador. Trata-se do direito posto que aparece no mundo integrado numa camada de linguagem prescritiva" [20].

            Na acomodação interna desse sistema, a lógica de funcionamento converge toda a estrutura para a norma fundamental que, por sua vez, é a base de derivação de todas as demais normas.

            Alerte-se que o direito posto não se confunde com a Ciência do Direito que, muito embora se configure em um sistema nomoempírico não é prescritivo, mas "teorético ou declaratório, vertido em linguagem que se propõe ser eminentemente científica" [21]. A Ciência do Direito tem seu foco temático repousado sobre o fenômeno lingüístico do direito posto, conjunto de enunciados prescritivos [22].

            Pois bem, a ordem jurídica pátria, na linha de raciocínio do mesmo autor, constitui-se em um sistema de normas que podem ser de comportamento (voltadas para as condutas das pessoas, enumerando o conteúdo deôntico do sistema, do dever ser) ou de estrutura (aquelas que dispõem sobre órgãos, procedimentos e estatuem o modo de criação e extinção das regras).

            Este sistema jurídico é composto por "subsistemas que se entrecruzam em múltiplas direções, mas que se afunilam na busca de seu fundamento último de validade semântica que é a Constituição do Brasil. E esta, por sua vez, constitui também um subsistema, o mais importante, que paira, sobranceiro, sobre todos os demais, em virtude de sua privilegiada posição hierárquica, ocupando o tópico superior do ordenamento e hospedando as diretrizes substanciais que regem a totalidade do sistema jurídico nacional" [23].

            Como se verifica, os subsistemas do ordenamento jurídico devem ser desenvolvidos e interpretados como fenômeno de linguagem, de forma integrada no sentido de conformar a relação jurídica com o mote imposto pela Constituição Federal.

            Em sentido paralelo, também se deve ter em mente que ela, a Constituição Federal, por seu conjunto de normas de comportamento e de estrutura, estas em predominância, constitui-se em um subsistema que possui lógica própria, ou pelo menos uma lógica não condicionada por outro subsistema. No interior desse subsistema, figuram proposições diversas que, por vezes se colidem, exigindo uma interpretação entrelaçada dentro do próprio subsistema. Essa colisão poderá ocorrer mesmo por normas constitucionais decorrentes de Emendas, já que integram, a partir do transcorrer de seu iter de concepção, o próprio texto constitucional, com a mesma hierarquia. É dizer que, nessa lógica, as permissões, restrições, imposições etc. devem interagir de modo a tornar o subsistema congruente, o que é perfeitamente viável, porquanto o subsistema constitucional pode se auto-limitar.

            À guisa de exemplo, o direito à greve expressa essa inter-relação de proposições dentro do próprio subsistema. A amplitude conferida no art. 9º, segundo o qual é assegurado o direito à greve, encontra limitação no próprio Texto Maior no que concerne aos militares, já que o inciso IV do § 3º do art. 142, veda expressamente aos militares o exercício desse direito.

            Aplicando o raciocínio exposto ao tema da presente construção, teríamos que os subsistemas penal ou processual penal jamais poderiam afrontar validamente o subsistema constitucional, como o fez a lei 9.299/96. Em mesmo sentido, o subsistema constitucional conferiu, em nome do Estado de Direito social e democrático, o direito ao autor de um injusto penal capitulado como doloso contra a vida de ser julgado por leigos, que entenderiam, por serem pares, as peculiaridades afetas ao fato [24], porém, o próprio subsistema excepcionou a regra ao tratar dos crimes militares conferindo às Justiças Militares a competência de julgamento para os crimes militares, inclusive aqueles dolosos contra a vida. Com o novo texto do § 4º do art. 125 da Constituição Federal, o constituinte excepcionou para as Justiças Militares Estaduais, agora em sentido oposto (ao menos no que concerne aos atos perpetrados contra a vida de civil), retirando destas a competência de julgamento e deslocando-a para a Justiça Comum (Tribunal do Júri).

Sobre o autor
Cícero Robson Coimbra Neves

Promotor de Justiça Militar em Santa Maria/RS. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP (2008) e em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar de São Paulo (2013). Foi Oficial Temporário do Exército, de Artilharia (1989 a 1991), e Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo, ingressando na Reserva não Remunerada no posto de Capitão (1992 a 2013). Foi professor de Direito Penal Militar na Academia de Polícia Militar do Barro Branco (2000 a 2013).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Crimes dolosos, praticados por militares dos Estados, contra a vida de civis:: crime militar julgado pela Justiça Comum. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 834, 15 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7416. Acesso em: 23 dez. 2024.

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