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[não] A arma de fogo e o referendo:

o grande embuste

Agenda 13/10/2005 às 00:00

            O homem deve pensar, pode divergir, mas antes de tudo deve ser tolerante. Das idéias, nem sempre convergentes, brota a imensa variedade de pensamentos que norteiam a humanidade e lhe abrem o caminho da verdade.


Considerações gerais

            A Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, e suas alterações posteriores, proíbe a posse e o porte de arma de fogo e sua comercialização, inclusive de munições, em todo o território nacional, permitida sua utilização apenas pelas pessoas relacionadas no artigo 6º, distinguindo-se os integrantes das Forças Armadas, das guardas municipais, das empresas de segurança privada e de transporte, dos órgãos policiais, da carreira auditoria da Receita Federal, das entidades de desporto e algumas mais. Já, no início, nota-se significativo paradoxo.

            O Dicionário Aurélio identifica a arma como instrumento ou engenho de ataque ou de defesa ou qualquer coisa que sirva para um desses fins, especialmente no caso de certos animais. Arma de fogo, na expressão de Houaiss, é toda arma que lança projétil pelo efeito da deflagração de uma carga explosiva, e arma branca é aquela constituída essencialmente de uma lâmina e que se destina a cortar ou perfurar.

            As penas, pela violação da lei, são drásticas. Estão previstas a detenção, de um a dois anos e de um a três anos (posse irregular de arma de fogo de uso permitido, omissão de cautela), a reclusão de dois a quatro anos (porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, disparo de arma de fogo), a reclusão de três a seis anos (posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito). O comércio ilegal de arma de fogo é punido com a pena de reclusão de quatro a oito anos, assim como o tráfico internacional de arma de fogo, aumentando-se da metade, se os crimes (artigos 14 a 18) que menciona forem praticados por determinadas empresas e pessoas integrantes dos órgãos indicados nos artigos 6º a 8º.

            É vedada a concessão de liberdade provisória, nos crimes de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, de comércio ilegal de arma de fogo e de tráfico internacional de arma de fogo. A multa é cumulativa. Seu valor, contudo, não vem prescrito.

            É extremante louvável a postura dos que deflagraram a "guerra pela paz ou pela vida", contra a violência incontida da sociedade, no momento em que o ser humano vale menos do que um copo descartável ou um toco de cigarro – vício que inferniza e mata milhões de criaturas, impiedosamente! Quando a vida humana, bem mais precioso entre todos os demais, nada mais vale, é sinal de que o homem deve parar e fazer profunda reflexão, porque chegou ao fundo do abismo e há que se repensar o sentido de todas as coisas.

            O estatuto do desarmamento é brindado como o mais notável remédio para a preservação do ser humano. E, de fato, assim é, quando instituiu o SINARM – Sistema Nacional de Armas e o registro de armas de fogo, ou seja, o seu controle efetivo. Nada a opor. O legislador, neste particular, merece, de fato, os maiores encômios.


A INCONGRUÊNCIA

            Todavia, a incongruência da lei é patente. Há efetiva contradição entre seus dispositivos, tornando o referendo inócuo e absurdo, senão inconstitucional. Qualquer que seja a resposta que o eleitor der chocar-se-á com a essência desse diploma legal e com a Constituição.

            O legislador proíbe incisivamente o comércio de armas de fogo, salvo para as entidades previstas no artigo 6º. O artigo 35, todavia, para entrar em vigor, depende da aprovação popular, mediante referendo. Suponhamos que o eleitor soberanamente decida proibir a comercialização de armas de fogo. O artigo 35 não entrará em vigor. Entretanto, o artigo 4º dispõe que para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender os requisitos previstos neste dispositivo.

            Por outro lado, o certificado de registro de arma de fogo autoriza o seu proprietário a mantê-la no interior de sua residência ou domicílio ou no local de trabalho. Também os que residem em áreas rurais, comprovando que dependem do emprego da arma de fogo, para sua subsistência alimentar familiar, poderá portá-la na categoria de caçador. Esse dispositivo é um primor de técnica. Não fosse trágico, seria risível. Presume-se que o caçador somente utilizará sua arma para a caça e não poderá usá-la para sua defesa ou em caso de necessidade. A conclusão é óbvia: a proibição de portar a arma ou possuí-la não existe. É uma falácia. É enganosa.

            Surge a certeira indagação. Proibida a comercialização, em que lugar irá o tal interessado adquirir a arma? No Brasil, não poderá fazê-lo. E importar é crime. A lei estar-lhe-á abrindo as portas para a ilegalidade, para o crime, ou seja, permite-o possuir e portar a arma, mas não lhe dá opções quanto à aquisição, por meios legais.

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            Os bandidos também deixarão de possuir armas de fogo? Ou abastecer-se-ão de fontes não ortodoxas, como o fazem até agora? Ao infeliz povo não se permitirá nada. Nem se defender, em caso de legítima defesa ou em estado de necessidade. Como fica, então, o artigo 23 do Código Penal, ainda em vigor? Esta disposição não considera crime se o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento do dever. Interessam-nos os dois primeiros dispositivos. Afinal, a pessoa pode ou não praticar a legítima defesa? Com certeza, fa-lo-á com a arma branca, porque esta não está proibida nem sua comercialização vedada. Ironia maior não existe!

            A Constituição Federal garante às pessoas – brasileiros e estrangeiros residentes no País (a Carta não diz expressamente, mas não exclui, com certeza, aquele que aqui estiver, conquanto não resida no Brasil) a inviolabilidade do direito à vida, à segurança e à propriedade. E, ao garantir o direito à vida, evidentemente, deveria propiciar-lhe a segurança. Não o fazendo, está claro que o único caminho que lhe resta é a legítima defesa, em casos tais.

            Ora, o Estado é omisso quanto à segurança, por fatores os mais diversos. A violência, todos sabem, existe não por causa da arma de fogo, senão por razões elementares: injustiça, desemprego, impunidade, desigualdade, exclusão social, devassidão e decadência dos costumes. Não se exclui a arma como fator de violência também. Contudo, atribuir-lhe a causa final, é um grande equivoco.


OUTRO GRANDE EQUIVOCO

            O eleitor brasileiro vai manifestar sua opinião no referendo do dia 23 de outubro de 2005. Tudo pareceria normal não fosse o abismo entre o ideal e a realidade que o homem vive no seu dia a dia.

            Proibir o uso de armas de fogo é, realmente, uma maneira inteligente de evitar a violência e o morticínio que ocorre, em toda a parte, a cada minuto ou segundo. Será mesmo? É, repetindo uma piada comum, como o marido traído tirar o sofá da sala, para evitar o adultério praticado por sua esposa. Evitará mesmo? Pois bem, trata-se de um verdadeiro sofisma ou tese mirabolante, evitar o comércio tão só de armas de fogo, mas permitir a sua posse e o porte.

            E as armas brancas? Por que não proibir também as adagas, os punhais, os canivetes, as espadas, os facões, as facas pontiagudas da cozinha, as facas de cortar pão, as facas de cortar fumo, as facas de cortar o dedo, por descuido, as navalhas ou giletes, os tacões de bilhar, as enxadas, as toras, os pedaços de paus pontiagudos, os alfinetes, os estiletes, as cordas dos enforcados e tantos outros instrumentos, cujos nomes, se relacionados, ocupariam páginas e páginas.

            Alguém já pensou nisso? Diriam todos: é um absurdo criminalizar o uso de facas, de facões etc. Afinal, como as donas de casa iriam cortar as frutas, o homem do interior fumar seu fuminho? Até que seria bom este não pitar, pois estaria salvando sua saúde, seus pulmões.


O AUTOMÓVEL

            Mas existe outra arma, mais mortífera e perigosa, que nas mãos de irresponsáveis e horrendos criminosos causa a morte e a destruição de milhares ou milhões de vidas inocentes que não pediram para morrer ou serem mutiladas.

            O automóvel é mais mortífero que qualquer arma de fogo ou branca, quando dirigido por quem o utilize, sem a mínima cautela, abusando criminosamente da velocidade, varando ruas, avenidas e estradas, doidamente. O mau motorista, indisciplinado e arrogante, pode ser comparado ao terrorista insensível, merecedor da mais severa punição.

            Não será o caso de também vedar a fabricação, o comércio e o uso desse veículo da morte? Ou destruir esta arma? Ou fazer um referendo para conhecer a opinião do sofrido povo?


CONCLUSÃO

            A conclusão é clara, cristalina, sem rodeios ou elucubrações cerebrinas. A proibição jamais impediu delinqüentes de fazerem uso de quaisquer desses instrumentos do terror que conduzem à morte ou à mutilação. Os criminosos os detêm, com ou sem licença da lei ou do Estado. Adquirem as armas mais sofisticadas, que nem o Estado possui. Até mesmo as armas nucleares e os mísseis são lhe oferecidas.

            Bem, as pessoas honestas não necessitam de nada, pois estarão protegidas, pela graça divina e pelos bons propósitos do Estado todo poderoso e protetor. Que Deus salve os desprotegidos!

            É um grande embuste, não há dúvida, desnudar a população de qualquer arma, sem lhe dar o mínimo de proteção.

            Constitui fina ironia e uma grande farsa ver a população encharcada de sangue, sem lhe dar o mínimo de proteção contra os motoristas insanos – novos delinqüentes dos Séculos XX e XXI.

            Enfim, o decreto estatal pode tudo e faz lembrar o famigerado l’Etat c’est moi.

Sobre o autor
Leon Frejda Szklarowsky

Falecido em 24 de julho de 2011. Advogado, consultor jurídico, escritor e jornalista em Brasília (DF), subprocurador-geral da Fazenda Nacional aposentado, editor da Revista Jurídica Consulex. Mestre e especialista em Direito do Estado, juiz arbitral da American Association’s Commercial Pannel, de Nova York. Membro da membro do IBAD, IAB, IASP e IADF, da Academia Brasileira de Direito Tributário, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, da International Fiscal Association, da Associação Brasileira de Direito Financeiro e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Integrou o Conselho Editorial dos Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, da Editora Revista dos Tribunais, e o Conselho de Orientação das Publicações dos Boletins de Licitações e Contratos, de Direito Administrativo e Direito Municipal, da Editora NDJ Ltda. Foi co-autor do anteprojeto da Lei de Execução Fiscal, que se transformou na Lei 6830/80 (secretário e relator); dos anteprojetos de lei de falências e concordatas (no Congresso Nacional) e autor do anteprojeto sobre a penhora administrativa (Projeto de Lei do Senado 174/96). Dentre suas obras, destacam-se: Execução Fiscal, Responsabilidade Tributária e Medidas Provisórias, ensaios, artigos, pareceres e estudos sobre contratos e licitações, temas de direito administrativo, constitucional, tributário, civil, comercial e econômico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SZKLAROWSKY, Leon Frejda. [não] A arma de fogo e o referendo:: o grande embuste. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 832, 13 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7425. Acesso em: 5 nov. 2024.

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