B) O direito de resistência
Um outro direito de inegável relevância que se verá duramente aviltado pela proibição da aquisição e porte de armas e munições é o direito de resistência. A essência deste direito foi magistralmente preconizada por John Locke, em sua obra Segundo Tratado Sobre o Governo. Eis o sumo: "Quem quer que use força sem direito, como aquele que deixa de lado a lei, coloca-se em estado de guerra com aqueles contra os quais a usa; e nesse estado invalidam-se todos os vínculos, cessam todos os outros direitos, e todos têm o direito de defender-se e de resistir ao agressor". [13]
Trata-se de um direito político irremovível de qualquer sociedade organizada. É proveitoso deixar claro que, apesar de ser a sua apreciação de natureza eminentemente teórica, existe – ou deve existir – como integrante do acervo que compõe um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Se assim não fosse, a ordem constitucional, que com tanto esforço se instaurou, estaria, juntamente com os cidadãos impotentes, posta à mercê do primeiro político megalomaníaco que, contando com o apoio das forças armadas, decidisse aniquilar preciosas conquistas cívicas e humanitárias por caprichos, interesses particulares ou convicções deturpadas. A seu respeito, pronunciou-se Thomas Jefferson com profunda eloqüência: "O espírito de resistência ao governo é tão valioso em certas ocasiões que eu desejo que ele sempre seja mantido vivo".
O direito de insurreição ou de resistência, defensável com esteio na sólida doutrina de Locke, foi amplamente reconhecido por pensadores e políticos de notoriedade inquestionável. Nada tem de perverso e anti-social. Não se volta à desordem e nem à rebeldia sem causa. Não se fala, aqui, em anarquismo de qualquer espécie. Muito ao contrário, falamos de resistência ao retrocesso, isto é, da recusa à perda do status humanitário, dos direitos e garantias fundamentais, das conquistas principiológicas arduamente consolidadas ao longo da História. Muito longe de apregoar a subversividade, devemos exemplificar hipóteses em que se justificaria, como medida extrema, a insurreição: a eliminação das cláusulas pétreas constitucionais; a adoção de práticas abusivas e violadoras da dignidade da pessoa humana; a opressão por políticas discriminatórias; o retorno às barbáries (como a imposição de penas degradantes e cruéis de modo arbitrário, sem oportunização da ampla defesa e em desprezo ao devido processo legal).
Em sucintas considerações, havemos de recordar que a implantação do Estado, numa explanação simplista, é oriunda de um contrato, por intermédio do qual se estabelecem variados fenômenos de substituição, delegação e representação. A mera violação do contrato – que presenciamos ocorrer a todo instante, com insuficientes atuações estatais em todas as áreas de sua incumbência – não pode justificar o rompimento; as capciosidades políticas, econômicas e sociais certamente impedem o estabelecimento de um Estado ideal, utópico, verdadeiramente livre, justo, seguro, igualitário. Suscitar a quebra do contrato por não aceitar a natural falibilidade do Estado e dos governantes é alienação, intransigência e subversão. "Será possível, pois, opor-se às ordens de um príncipe? Poderá alguém resistir-lhe sempre que julgar ter sofrido um agravo, só porque acha que não lhe foi feita justiça?", perguntou Locke; sua resposta, no sentido do texto, foi a seguinte: "Agindo assim se desarranja e subverte qualquer governo e, em vez de governo e ordem, só reinará anarquia e confusão. Minha resposta é que só se deve opor a força à injustiça e ao abuso". [14]
Caso o contrato seja grosseiramente violado, entretanto, e as conseqüências deixem de ser apenas o descumprimento de algumas cláusulas para passar a ocasionar a implementação de ideologias e práticas diametralmente contrárias a todas aquelas que fundamentaram o pacto, deve subsistir para os pactuantes a possibilidade da insurreição. Assim, diz-nos Locke que "as revoluções não acontecem por qualquer pequeno desvio dos administradores. O povo suporta, sem revolta ou murmúrio, erros mesmo grandes dos governantes, desatinos e inconveniências das leis, e as faltas da fraqueza humana. Mas se repetindo longamente os abusos, prevaricações e falcatruas, apontando para um mesmo fim que se torna patente ao povo, este perceberá o que o ameaça e para onde está indo, e não será pois de admirar que se revolte e queira confiar o mando em mãos que lhe garantam o cumprimento dos fins primários do governo. Sem isso, os antigos nomes e formas viciosas seriam muito piores do que o estado de natureza ou a pura anarquia – com inconvenientes também grandes e parecidos, mas com o remédio mais longínquo e mais difícil". [15]
Em resumo, caso o governo instaure uma ordem que destrua os valores e princípios mais caros e fundamentais ao homem, ou que reduza a cinzas o Estado Democrático de Direito, é um direito natural e imanente, inarredável – e quiçá um dever – a faculdade de oposição. Para ser exercida, nas condições apontadas, não prescinde do uso de armas. Para Thomas Jefferson, aliás, "a mais forte razão para que as pessoas detenham o direito de manter e portar armas é, em última instância, para protegerem-se contra as tiranias no governo".
A conclusão a que fatalmente chegamos é a de que um Estado Democrático que se preze deve zelar, inclusive, pela possibilidade de resistência, pois ela, além de poder ser usada em sua própria defesa, na tentativa da sua manutenção ou na oposição às arbitrariedades eventualmente impostas, consiste em direito do cidadão.
Uma população integralmente desarmada não pode combater o sufocante jugo de um governo opressor, razão pela qual não se lhe pode proibir a aquisição e a manutenção de armas, mas apenas controlá-las, conforme as finalidades do Estado, para o melhor atendimento das suas incumbências.
Por fim, não obstante nem de longe cogitemos a hipótese de um golpe de Estado, não podemos deixar de rememorar as valiosas lições que nos legou a História. A medida do desarmamento, com argumentos similares, geralmente precede a imposição de regimes tirânicos, ditatoriais, de segregação ou de imperialismo. Foi o que aconteceu na Índia, sob o domínio britânico; em Cuba, com Fidel Castro. No Japão, a estratificação social e a supremacia da admirada e temida classe dos samurais sempre se fundou na exclusividade do direito de portar armas (espadas) a estes. Na Alemanha, o próprio Hitler "justificou" a providência, no edito de 18 de março de 1938, afirmando que a pior dos equívocos que um conquistador pode cometer é permitir aos subjugados que portem armas.
Na visão de Aristóteles, "ambos os oligarcas e tiranos desconfiam do povo e, portanto, o privam de suas armas" [16]; na de Thomas Jefferson, "quando o governo teme o povo, isso é democracia; quando o povo teme o governo, isso é tirania". O desarmamento da população, historicamente, é expediente absolutista que visa à anulação de toda e qualquer capacidade de oposição e, muito mais que à simples concentração do poder, à sua detenção exclusiva. E isto, é inadmissível, posto que, no dizer de Locke, "não há quem deseje ter outrem sob seu poder absoluto senão para coagi-lo à força ao que é contrário à liberdade, isto é, torná-lo escravo. Escapar de semelhante opressão é a única certeza de preservação; e a razão nos diz para ter como inimigo da própria preservação aquele que tolher a alguém a liberdade que a garante". [17] Adotar esta medida, com ou sem golpe de Estado, é impor restrição injusta e regredir um largo passo no âmbito das conquistas democráticas.
Conclusão
Após todas essas considerações, concluímos pela irracionalidade da proibição da comercialização de armas e munições. Uma breve investigação teórica nos é suficiente à constatação do ultraje de pelo menos dois direitos fundamentais. Ainda que desconsideremos a fundamentação pragmática, tão questionável, a inconstitucionalidade da medida, por si só, é causa da sua conspurcação e imprestabilidade absoluta aos fins propugnados pelo Estado Democrático de Direito.
Não nos resta outra tarefa senão a de finalizar reafirmando que o pior aspecto deste engodo é a ardileza de usar o próprio cidadão para sancioná-lo, implementando-o sem a menor consciência do que faz e legitimando a incúria dos governantes.
Notas
01 CONSALVO, Antônio Eduardo. In: Estatuto do Desarmamento – Comentários e Reflexões. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 29.
02 IN: Periódico – RT Informa. Ano VI, nº 39 – setembro/outubro de 2005. São Paulo: RT, 2005, p. 5.
03 IN: Periódico – RT Informa. Ano VI, nº 39 – setembro/outubro de 2005. São Paulo: RT, 2005, p. 5.
04 BRANDÃO, Cláudio. Teoria Jurídica do Crime. 2 ed. Rio De Janeiro: Forense, 2002, p. 117-118.
05 MENDONÇA, Jacy de Souza et al. Estatuto do Desarmamento – Comentários e Reflexões. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 16.
06 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – Parte Geral, v. 1. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 384.
07 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. 1. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1949, p. 444.
08 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, v. 1. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 317.
09 In: Estatuto do Desarmamento – Comentários e Reflexões. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 29.
10 BRANCO, Fernando Castelo. In: Estatuto do Desarmamento – Comentários e Reflexões. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 135.
11 Estadista norte-americano.
12 IN: Periódico – RT Informa. Ano VI, nº 39 – setembro/outubro de 2005. São Paulo: RT, 2005, p. 5.
13 IN: Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 154.
14 IN: Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 140.
15 IN: Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 150-151.
16 IN: Política, Livro V.
17 IN: Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 32.