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O direito talmúdico como precursor de direitos humanos

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Agenda 06/11/2005 às 00:00

3. Os direitos humanos integrados à história

A compreensão do jushumanismo não pode ser realizada satisfatoriamente através dos postulados metafísicos ou do jusnaturalismo, seja porque estas correntes deixam de considerar o aspecto eminentemente histórico-social em que se circunscreve o tema, seja porque tende a última corrente para o fixismo determinista. Os direitos humanos não são obra divina, mas o resultado de planificações de bem-viver, que se sedimentam nas culturas jurídicas através da tradição ao longo dos séculos. E hoje transmitem-se no mundo globalizado com incrível velocidade, embora travestidos simbólica e, talvez, inconscientemente, de intenções como a que se refere ao "politicamente correto" – isto que se tornou lugar-comum e gera riscos de insatisfação devido ao policiamento ideológico levado a efeito pelos seus defensores.

Os direitos humanos são, assim, o produto do acúmulo de projetos, idealizações e concretizações levados a efeito pelas sociedades ao longo de sua história, em meio a qual se inscrevem certas circunstâncias determinantes. E quem duvidará de que o modelo ético dos antigos hebreus, que formou seu corpus iuris hoje milenar, ainda empregue no Estado de Israel, terá decorrido das adversidades encontradas ao longo das inúmeras sujeições a povos estrangeiros no decorrer de sua história? Da escravidão e da opressão pode ter surgido a necessidade de preservação da identidade judaica e uma violenta crítica – em forma de normas ético-religiosas – contra tudo ao que os judeus viram e entenderam como errado. Concordamos, pois, com a Professora Fariñas Dulce quando refere que o enfrentamento do tema dos direitos humanos prende-se a um conceito de caráter histórico, "[...] marcado especialmente por la conciencia de su propia historicidad y relatividad, lo cual no permite la construcción – al amparo de los derechos humanos – de dogmas absolutos o suprahistóricos, cargados de idealismo [...]" [18]. E prossegue a jusfilósofa da Universidade Carlos III de Espanha:

[...] a parte de las diferentes fundamentaciones [o estudo dos direitos humanos] requiere también una comprensión sociológica, histórica e, incluso, antropológica de los mismos, que contribuya a desmitificar las concepciones metafísicas e iusnaturalistas de los derechos humanos, los cuales – sin cuestionar su significación e importancia histórica en la lucha por la dignidad y por la libertad del ser humano – son, en la actualidad, difícilmente sostenibles desde una perspectiva teórica y, además, no dan una respuesta suficientemente aceptable a las concretas situaciones socio-históricas y socio-culturales planteadas, especialmente, en las últimas décadas y en los diversos contextos sociales. [19]

Da mesma forma, entendemos possível estabelecer uma ponte que liga o antigo direito hebreu, mais tarde sistematizado no que se conhece como direito talmúdico, às planificações de direitos humanos presentes no direito constitucional-processual penal moderno. Suas estruturas são as circunstâncias históricas que formaram o tronco cultural judaico-cristão das sociedades modernas, como adiante tentaremos demonstrar.


4. O direito hebreu

Os judeus da antigüidade formaram seu corpo de normas ético-religiosas ao longo de séculos mas, sem dúvida, só encontraremos os primeiros traços de sistematização normativo-jurídica no período em que estiveram sob o domínio babilônico. Pode aventar-se uma série de circunstâncias que conduziram os judeus para a elaboração de um direito relativamente avançado para sua época e que se notabilizou pela preocupação com a eqüidade, como a referida ao elemento psicológico deste povo a determiná-lo para a crença e, sobretudo, para o estudo, dois fatores que se entrecruzam, mas têm sua raiz numa norma. Afinal, o estudo, refere Falk, "[...] é o mandamento mais importante na vida judaica. Somos sempre estudantes e, quando concluímos o estudo de um certo texto, imediatamente iniciamos outro. Se a pessoa estudou na sua juventude, deverá continuar até a velhice" [20]. Este verdadeiro ספר עם (a’m hasefer, povo do livro), terá tido alguma vantagem cultural na elaboração de seu sistema jurídico em relação ao que se observa na história de outros povos da antigüidade do oriente médio, pois vinha ao longo dos anos refletindo sobre as normas de caráter ético-religioso e ético-social contidas na Torah, através das leituras dos rolos com textos sagrados em ocasiões especiais e a cada Shabat. Surgiam as interpretações dos comentadores, até a formação da Lei Oral que se tornou fonte do direito talmúdico. Entendemos, contudo, que a circunstância que melhor favoreceu o desenvolvimento do direito hebreu, mais especificamente do direito talmúdico [21], terá sido a política adotada pelo rei Ataxerxes, da Pérsia. Com efeito, este monarca, talvez – imaginamos nós – por entender impossível a completa subjugação do povo judeu, determinou que o escriba Esdras nomeasse juízes locais para a administração da Justiça, autorizando o ensino tanto da Lei de Israel, quanto da Lei do Império Persa [22]. Esta decisão político-administrativa, repercutiu no aparecimento da classe dos escribas, que ao longo do séc. IV a.C. teve grande importância para a comunidade judaica.

O ambiente político-social era favorável, pois, à estruturação do direito talmúdico, que é até os dias atuais empregue em Israel especialmente na área do direito de família (normas sobre casamento, divórcio, pensão etc.). Mas o direito hebreu – no qual incluímos não apenas o direito talmúdico, mas suas fontes, que são a Torah (e tenha-se em mente o fato de que alguns judeus aplicavam tão-somente as regras nela contidas, como é o caso dos saduceus), os costumes do povo, a hermenêutica das fontes antigas – atravessa as fronteiras temporais e territoriais, influenciando na elaboração de inúmeras normas que bem podemos categorizar como pertencentes ao ramo dos direitos humanos. Examinemos algumas delas.

א) Entendemos que o processo penal no direito talmúdico abrandou as violências decorrentes da vingança, a partir de quando operou a transição do direito eminentemente privado para o público. A interpretação que os rabinos fizeram de Deuteronômio 13:10 ("Mas certamente o matarás; a tua mão será a primeira contra ele para o matar, e a mão de todo o povo no final" [23]), importou na norma que dispõe sobre a informação dos magistrados acerca da ocorrência de um crime sério, transmitindo a eles a incumbência de processar e julgar o criminoso.

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ב) O direito talmúdico não admitia a condenação de um réu baseado unicamente em sua confissão, exigindo o testemunho de duas pessoas. "Que nenhuma decisão seja feita sobre evidência apresentada apenas por uma testemunha", ensinou Maimônides [24]. Tal preceito impede julgamentos divorciados do princípio da eqüidade, além de evitar os riscos da tortura no processo penal.

ג) Os juízes deviam ouvir o queixoso e o acusado antes de admitirem a fase de instrução do processo. Em caso algum se permitia que as alegações de uma parte fossem feitas na ausência da outra, de maneira a preservar-se a igualdade de armas durante o processo.

ד) As audiências eram públicas, permitindo-se, inclusive, para os casos em que se punia com pena máxima, o testemunho de qualquer pessoa que pudesse "[...] apresentar um fato ou um argumento a favor do acusado" [25]. A pena máxima constituía espécie de ultima ratio do ordenamento jurídico-penal. Havia, ainda, o convencimento de que testemunhar se tratava de um dever cívico, como se depreende do seguinte preceito: "que aquele que esteja de posse de uma evidência, testemunhe no tribunal" [26].

ה) Nos casos punidos com pena de morte ou com pena de açoite, os cuidados com o julgamento eram maiores. Assim, preceitua-se: "não executar o réu se houver maioria de apenas um para a condenação, mas unicamente se, no mínimo, houver maioria de dois" [27], num tribunal composto por vinte e três juízes. Maimônides extraiu esta regra através da exegese de Êxodo, 23:2, afirmando que "[...] ao sentenciar a pena de morte você não deve fazê-lo por causa de uma maioria casual" [28]. Contudo, a absolvição podia ser obtida pela maioria mais um.

ו) Em Avot 1:6, há já o princípio da presunção de inocência no tratamento a ser dirigido ao acusado quando prescreve: "Ao julgar uma pessoa, incline-se para a suposição de inocência" [29]. E, de maneira muito próxima, encontramos algumas recomendações de Maimônides que se inclinam para o cuidado no julgamento. Assim, recomenda o filósofo talmudista: "sede circunspectos nos vossos julgamentos [...]" [30] e "[...] julga todos com indulgência" [31]. Em outro lugar, reproduz a lição de Hilel: "Não julgues o teu próximo até que te encontres na sua situação" [32].

ז) O direito talmúdico destacava algumas normas relacionadas às testemunhas, de maneira a evitar que elas prejudicassem o julgamento, como depreendemos da proibição de a testemunha sobre caso capital atuar como juiz e a punição do falso testemunho. Além do mais, "que nos casos de pena de morte e chicotadas, aquele que apresentou argumentos para absolvição, não argumente novamente pela condenação." [33]

ח) O processo com escassez de provas não poderia conduzir os juízes a uma sentença condenatória, como se verifica no preceito "não executar alguém sob suspeita" [34].

ט) Encontram-se muitas expressões no antigo direito hebreu do princípio da igualdade, a justificarem o que Belkin, baseado nas lições de Flávio Josefo, o grande historiador e do filósofo Filo de Alexandria (Philo Judaeus), denomina de um regime de governo Teocrático-democrático [35]. Assim, ao interpretar Tossefta San’hedrin 4:2 (do Talmud), onde está determinado que "Se ele [o rei] transgride qualquer das proibições positivas ou negativas, ou quaisquer outros mandamentos, ele é tratado em todas as questões como um hediot (homem comum)", Belkin refere que o rei "[...] não estava isento de observar a lei, mas devia submeter-se a ela como qualquer outro homem e estava sujeito ao mesmo padrão de punição aplicado a todos os homens" [36]. As pessoas levadas a julgamento deviam ser julgadas com imparcialidade, não devendo os juízes demonstrar compaixão em relação a alguém pelo fato de ser pobre, nem prestar reverência no julgamento de um "grande homem". E mesmo que se tratasse de um criminoso habitual, estavam os juízes proibidos de julgá-lo com parcialidade [37]. Ao comentar Êxodo, 23:3, Maimônides refere que "[...] um juiz fica proibido de ter piedade de um homem pobre e distorcer um julgamento em seu favor por piedade. Ele [juiz] deve tratar os ricos e os pobres da mesma forma, e fazer com que se cumpra a pena imposta" [38]. E mesmo que o litígio se estabelecesse entre estrangeiro e israelita, não deveria ocorrer distorção da justiça [39].


5. Possíveis relações entre o direito hebreu e o direito ocidental

As normas do direito hebreu são nossas conhecidas e fazem parte da experiência jurídico-constitucional ocidental, e comumente são relacionadas com os princípios dos direitos humanos. Podem ser identificadas na Magna Charta Libertatum, de 1215, quando ali se exalta o valor da liberdade física; ou na Bill of Rights, editada em 1689, logo após a Revolução Gloriosa, em que o Rei britânico perde os poderes absolutos e submete-se à lei, além de proclamar-se, por esta declaração de direitos, a vedação da execução de penas cruéis; ou na Declaration of Rights, da Virginia, de 1776, em que se reconheciam o princípio da igualdade e os direitos à vida, à liberdade e à propriedade. É, também, nesta Constituição que os norte-americanos instituem o due process f law, o contraditório e o direito à ampla defesa. Na Déclaration de Droits de l’Homme et du Citoyen, de 1789, proclamada na onda da vitória da Revolução Francesa que depôs o Ancien Régime, também encontramos os princípios da igualdade e da universalidade e o reconhecimento dos direitos às liberdades. De França esse ideário passa para a Península Ibérica e, mais tarde, para o restante da Europa continental e boa parte do mundo ocidental. Tudo convergindo para a idéia do jushumanismo, que é integral e universalista. O fenômeno pode ser facilmente explicado quando tratamos de sua dispersão pelo ocidente. França respirava os ares do iluminismo e os enciclopedistas propunham liberdades, inclusive a religiosa; o ambiente sócio-político era de grande tensão e abrigou o ideário de um Locke e de um Rousseau, que conheciam a experiência política inglesa. Os colonos ingleses, por sua vez, exigiam que no continente americano fossem adotados os mesmos direitos da metrópole, desenvolvendo um sistema bem estruturado de direitos de índole constitucional-processual. Mas ainda resta a questão problemática: terá o antigo direito hebreu exercido alguma influência sobre estes povos?

A demonstração de que o direito hebreu influenciou direta ou indiretamente na elaboração dos princípios do jushumanismo moderno é tão complicada quanto a sustentação da tese de Maritain, segundo a qual o reconhecimento por católicos e não católicos, cristãos e não-cristãos dos valores humanos inscritos no Evangelho propiciará a consciência da dignidade humana e dos direitos da pessoa, de modo a conduzir-nos para a promoção do bem comum (que "é a boa vida humana da multidão") [40]. Da mesma forma que será tarefa quase impossível asseverar que o direito hebreu foi feito ex nihilo, um direito original, nascido da consciência moral-social dos antigos judeus, afinal este povo sofreu várias conquistas, inclusive dos gregos e romanos, os primeiros inventores da filosofia e estes da idéia mais bem acabada de direito. Mas podemos dizer que o direito gestado na Terra de Israel é resultado do amálgama de muitas experiências, inclusive as negativas, que provocaram projetos de vida, reflexões e críticas sobre as circunstâncias que determinaram a construção da história do povo judeu. Por isto, concordamos com Falk quando refere que "Muitas de suas leis não teriam se desenvolvido em sua forma atual sem o impacto de um outro sistema legal que requeria rejeição, reação, reconhecimento ou receptividade por parte do Direito Talmúdico" [41]. Assim, v.g., o direito talmúdico estabeleceu algumas normas para a libertação dos escravos, inclusive a alforria do direito romano [42]. E com esta mesma convicção de que as experiências jurídicas se entrecruzam, podemos inferir que o caudal de normas jushumanistas dos judeus terá, por muitas vias, chegado ao ocidente, contribuindo para a elaboração do direito moderno.

Lembremos, em primeiro lugar, que por longos séculos os judeus disciplinaram a vida social baseados na aplicação das normas ético-religiosas inscritas na Torah. Que não eram suficientes, devido ao seu caráter fragmentário. Por isso, no período em que se elaborou a Lei Oral, a modo de preencher as lacunas, os comentadores, homens letrados que conheciam as leis estrangeiras tão bem quanto a própria Torah, podem ter sofrido influências externas. E de igual modo é possível terem semeado um pouco de sua cultura por entre os povos conquistadores. No período da cultura helênica, os judeus utilizavam-se não apenas do hebraico e do aramaico para redigir seus documentos, mas, também, do grego, o mesmo idioma de trânsito livre entre os judeus da diáspora e que serviu para a redação da Septuaginta, mais tarde difundida pelo ocidente.

Em segundo lugar, o cristianismo – que bebe da fonte do judaísmo – difundido pelos apóstolos e, com maior força, por S. Paulo, chega ao ocidente através de Roma, onde é considerado devastador (talvez tão devastador para sua cultura quanto às invasões dos bárbaros). E muda o eixo sócio-cultural do ocidente, preconizando a existência de um único D’us, impondo o teocentrismo e muitos dos princípios que são presididos pela dignidade da pessoa humana, como o da igualdade e da universalidade. A patrística, encabeçada S. Agostinho e a escolástica, cujo maior representante foi S. Tomás de Aquino, difundiram os preceitos do tronco judaico-cristão, cimentando-os no ocidente da Idade Média.

Em terceiro lugar, a diáspora do povo judeu ocorrida no ano 70, leva a filosofia judaica para os mais diversos pontos do ocidente, especialmente da Europa, onde surgem os comentários do Talmud. Um dos trabalhos de maior relevo desta categoria trata-se da Mishné Torah, que é a sistematização do direito talmúdico realizada por Maimônides (1135-1204), no século XIII. O filósofo neo-aristotélico judeu teve grande importância não apenas para sua cultura, mas para outros estudiosos não-judeus, inclusive S. Tomás de Aquino, por meio de quem ganha projeção. E é possível que o Doctor Angelicus tenha sido influenciado pela filosofia de Maimônides. Lembre-se, ainda, que para além da filosofia judaica, o direito talmúdico foi estudado durante a Renascença por cristãos, como Grotius e chegou a apoiar algumas posições do direito canônico (mais particularmente no que se refere à anulação do casamento). Mais tarde, no século XVIII, os judeus da diáspora inauguram, com Mendelsohn, a Hascalah, o movimento iluminista judaico, que garante a incursão de filósofos judeus no mundo europeu.

Sobre o autor
Isaac Sabbá Guimarães

promotor de Justiça em Santa Catarina, professor de Direito na UNISUL e na Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina, mestre em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. O direito talmúdico como precursor de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 856, 6 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7470. Acesso em: 21 nov. 2024.

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