Artigo Destaque dos editores

O direito talmúdico como precursor de direitos humanos

Exibindo página 1 de 3
06/11/2005 às 00:00
Leia nesta página:

Time present and time past

Are both perhaps present in time future

And time future contained in time past.

T. S. Eliot, Burnt Norton


Sumário: 1. Introdução – 2. A história como sistema – 3. Os direitos humanos integrados à história – 4. O direito hebreu – 5. Possíveis relações entre o direito hebreu e o direito ocidental – Conclusões.

Resumo: O presente trabalho busca, nas fontes da história do direito, elementos que justifiquem o desenvolvimento do jushumanismo no ocidente através de preceitos contidos no antigo direito hebreu (especialmente os do direito talmúdico), que terão chegado aos nossos dias através de um inquestionável tronco cultural judaico-cristão. Para lograr tal fim, o autor destaca que os direitos humanos se inserem no plano histórico – desenvolvidos pelo espírito humano em razão de sua carga de experiências – em vez de serem depreendidos pura e simplesmente do direito natural.

Palavras-chave: direitos humanos – direito hebreu – história do direito – história como sistema – normas éticas.


1. Introdução

A história da humanidade faz-se como a projeção das ondas do mar sobre as areias, alternada, pois, entre os baixios e as cristas que mais tarde se arrebentarão e testemunharão a indesmentível sina que persegue o homem, que é esta de ter de refazer-se, sempre – para alguns, gerando o tedium vitae, para outros, talvez constituídos de melhor material moral, uma autêntica missão. O elemento que nas ondulações se inscreve é o mesmo: a espécie humana e todas as contradições que integram seu conceito. Seja visto do ponto de vista antropológico-existencial; sócio-cultural; filosófico; político ou, simplesmente, encarado como elemento constante que escreve a história, o homem encarna (e constrói) uma série de condições que o põe à prova a cada intersecção de seu curso, às vezes determinando a negação de valores supremos que ele mesmo engendra à guisa de bem-viver em sociedade. E já não lhe parecerá tão estranho recorrer à guerra e à crueldade, que enformarão o cadinho onde se misturam as esperanças de harmonia e paz sociais. Si vis pacem, para bellum, costuma-se dizer. E nenhuma paz se logra sem um bocado de confrontos, como se eles significassem a exasperação de um conjunto de circunstâncias do homem: a paz, que sobrenada as cristas das ondas, tende, inevitavelmente, para a arrebentação. Mesmo que consideremos as culturas seculares da velha Europa, sedimentadas no apreço da democracia, das liberdades e do respeito à diferença, lá, também, e, com maior razão, encontraremos a intolerância que colocará em causa o conjunto de valores ferreamente construído pela tradição ao longo de muitos anos. E diremos que a percepção deste estado de coisas é muito mais clara na Europa, justamente pelo fato de o homem europeu ter criado técnicas de controle do poder político, para refrear as tendências deletérias para a noção de bem-viver. Mas qual nossa surpresa quando constatamos que lá brotaram políticas segregacionistas, as grandes guerras mundiais, e a intolerância dos dias atuais, embora... embora o europeu persista em falar de direitos humanos.

O conjunto de normas que se enfeixa na idéia de direitos humanos e que bem podem radicar-se na axiologia, é a demonstração mais autêntica deste traço antropológico comumente referido como o princípio ou mecanismo de auto-preservação do homem. E por mais que a experiência histórica da vida humana conheça as guerras, holocaustos, chacinas em favelas ou as brutalidades de uma faxina étnica, sempre recorreremos a alguns princípios de hominidade que resgatam aquele mecanismo, a indicar que se existe uma missão inscrita na psicologia do homem é ela a da procura do aperfeiçoamento pessoal e social.

Pois bem, poderíamos dizer que os mecanismos de auto-preservação do homem são ativados pelas normas éticas que são identificadas como integrantes dos direitos humanos e, por serem de todos os homens e de cada um dos indivíduos, não terão sido de privilégio deste ou daquele povo. Encontraremos ao longo da história do direito, expressões variadas de sua existência, mesmo no direito germânico que admitia o Blutrache, a vingança de sangue, que se justificava para a preservação de um clã. Ou na consciência popular da antiga civilização grega quando, mesmo visando à libertação do povo de uma tirania, votava o ostracismo do governante que se exilava por período limitado de até dez anos, mas tinha o direito de retornar à cidade-estado findada a sanção [01]. Ou no direito visigótico da alta Idade Média que autorizava ao juiz a concessão do perdão. E, ainda, encontraremos variadas manifestações político-jurídicas tendentes à garantia da liberdade, antes, muito antes do habeas corpus dos ingleses, na Roma antiga em que se recorria ao interdito de homine libero exhibendo e depois deles na Península Ibérica, com a carta de seguro dos portugueses e a manifestación de personas dos espanhóis [02]. Nestes e em muitos outros institutos jurídicos comuns aos povos, teremos referenciais normativos convergentes, mas que padecerão, tout court, de uma demonstração etiológica. Por outras palavras, dificilmente conseguiremos explicar, v.g., a trajetória de uma garantia político-jurídica da liberdade, como o habeas corpus e será muito precipitada a afirmação de que tal e tal sistema jurídico o implantou por influência de um tronco comum de direitos. Isto quase nos conduz a confirmar a teoria do imperativo categórico kantiano, que leva a cismar sobre a existência de um conjunto de normas éticas de valor universal. Existirá realmente a consciência ética universal?

Não nos propomos a adentrar a questão, embora seja ela instigante. Mas pretendemos demonstrar que os direitos humanos referidos no mundo ocidental democrático descendem diretamente de um tronco único de direitos que se desenvolveu a partir da Torah – fonte do antigo direito hebreu – e, posteriormente, com o cristianismo e com a exegese talmudista, ramificou-se até chegar aos nossos dias.


2. A história como sistema

A grande dificuldade enfrentada pelo investigador que se arroja pela história do direito é a de demonstrar que "O tempo presente e o tempo passado/Estão ambos talvez presentes no tempo futuro/E o tempo futuro contido no tempo passado", como sustentou T. S. Eliot, a figura de polimórfico humanista que era filósofo e poeta (dos bons!). Será mesmo possível estabelecer um elo entre as expressões de direitos humanos que havia entre os antigos e as atuais, dos ocidentais, com o propósito de justificar tudo o que se tem defendido não apenas no campo filosófico, mas, também, na normatização positiva que se lhe pretende e no que virá no porvir da política jurídica? O problema ganha foros de aceso debate e de opiniões controvertidas quando o radicamos na apreciação do princípio da dignidade da pessoa humana, que é o vetor filosófico para a estruturação de um sistema de direitos humanos. Muito antes de sua positivação no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, houve expressões que significavam já a preocupação com a dignidade da pessoa humana. É célebre o trecho da tragédia Antígona, de Sófocles, em que a protagonista contesta o decreto do Rei Creonte proibindo o sepultamento de Polinice, alegando, justamente, que "[...] a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas [...]" [03], e desta forma conduzindo-nos facilmente à idéia primeira de direito natural e, subliminarmente, quando refere sobre respeito aos mortos, a idéia de dignidade da pessoa humana; no início do cristianismo, São Paulo, quando escreve aos Gálatas, refere que "[...] não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea [...] (3, 28) indicando que todos são iguais, além de, em outra passagem, proclamar a liberdade do homem, cuja natureza é inviolável, mas dirigida a servir ao próximo, respeitando-o e sendo fraternal (Gálatas, 5, 13-14). No entanto, dificilmente poderemos dizer que os hebreus tenham aprendido com os gregos ou vice-versa. E o problema adensa-se mais quando uma corrente de pensadores proclama a existência de uma natureza humana – que estabelece traços comuns para todos os seres humanos – que, a rigor, independeria do acúmulo de experiências histórico-culturais para a formação do amálgama de referenciais dos direitos humanos. E voltamos, neste ponto à questão problemática: haverá mesmo uma natureza humana da qual decorrem referenciais éticos – verdadeiros imperativos categóricos – aptos a constituir uma legislação universal, ou, as identificações político-jurídicas constatadas entre povos e culturas distintas serão apenas reflexos psicológicos do acúmulo da carga cultural adquirida ao longo da história?

Antes de mais, convém termos bem assente nesta linha de considerações a dificuldade de categorizar o próprio ser humano, pois a tarefa poderá incorrer em mero reducionismo esquemático, que deixa de lado a intrincada rede de aspectos psicossociológicos que integram sua substância. Assim, já não será admissível ver no homem um "espírito encarnado", como pretende Jorge Adame Goddard [04], nem um mero produto do ambiente, como queria a sociologia positivista, ambas posições errando pelo exacerbado determinismo. Por outro lado, a antropologia existencialista do jusfilósofo Baptista Machado [05], que se radica na idéia da inespecificidade instintiva do homem, que o estabelece como ser incompleto, por isso mesmo aberto aos seus semelhantes e solidário, tudo visando a auto-preservação, já não será contraditória se considerarmos estes fatores como a própria natureza do homem? Bem sabemos que o homem é mais que isto, embora as dificuldades filosóficas e científicas remetam-nos para a sua relativização, ou, pura e simplesmente, para mitificação sobre a origem sobrenatural. Se, de fato, o homem é mais que um "espírito encarnado" e nele convivem aspectos somáticos e psicossociais adquiridos, resta-nos ainda a dificuldade de sabermos se existe uma natureza humana, como algo que nos é predeterminado ou se somos apenas produtos da experiência sócio-cultural acumulada.

Uma olhadela no conceito de direito natural de Ulpiano, inserido no Digesto, dá-nos já uma pista para o desbaratamento do problema:

Ius naturale est, quod natura omnia animalia docuit: nam ius istud non humani proprium, sed omnium animalium, quae in terra, quae in mari nascuntur, avium quoque commune est. Hinc descendit maris atque feminae coniunctio, quam nos matrimonium appellamus, hinc liberorum procreatio, hinc educatio [...] (D. 1.1.1. 3).

O direito natural é, portanto, tudo aquilo que o ser humano depreende da natureza, dela decorrendo o ensinamento de que homens e mulheres devem se casar, procriar e educar seus filhos. E com esta lição dos romanos, voltamos ao ponto fundamental de que a existência humana se justifica numa missão, que é a de preservação da espécie (e disto ninguém duvidará). É como disse Ortega y Gasset: "A nota mais trivial, porém ao mesmo tempo a mais importante da vida, é que o homem não tem outro remédio senão fazer alguma coisa para manter-se na existência" [06]. Já é muito, parece-nos. E quanto ao mais – o substrato que dá estofo ao homem – já será difícil demonstrar que seja elaborado a partir da mesma matéria.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Pois bem, uma outra linha de raciocínio, que pode arrancar da mesma máxima de Ulpiano, considerará que o homem adquire o conhecimento ao longo de sua trajetória. Não terá sido isto que o jurisconsulto romano quis dizer ao referir que a natureza ensina ao homem? Então, este ser, que é inegavelmente falho, incompleto, como reconhece a antropologia existencialista e antes dela Ulpiano, tende ao aperfeiçoamento de si, ou, como em outro lugar dissemos, busca a auto-compreensão enfrentando ao longo de sua trajetória existencial tragédias renováveis [07], tudo em nome da preservação da espécie (abramos aqui um parêntese para nos anteciparmos ao leitor que pode cogitar tenhamos caído numa armadilha. A busca de aperfeiçoamento induz-nos a aceitar uma certa aptidão para o efeito, não negamos. Aptidão de todos os homens? Ou, por outras palavras, é da natureza do homem a busca incessante de aperfeiçoamento ou auto-compreensão? Ou, por outro lado, terão sido as circunstâncias que compeliram o homem para a busca de si mesmo – a auto-compreensão e o aperfeiçoamento? Tentemos, logo adiante, responder às questões subjacentes em relação ao problema principal).

Esta vertente de pensamento rivaliza, logicamente, com todos os postulados reducionistas, que tendem para a absolutização de dogmas acerca da substância axiológica do homem – que, se perspectivada através da ótica jusnaturalista, seria formada por aquele conjunto de normas integrantes da própria natureza humana, depreendidas da Lei Natural através do uso da razão. Basta para confirmar isto um exame sobre alguns fenômenos sócio-culturais, que põem em xeque a consideração em termos absolutos de certos bens jurídicos que se aderem estreitamente ao campo ético(-social). A vida, v.g. Se é ela uma valor ético-social supremo, por que algumas comunidades de esquimós abandonam seus idosos para que morram? Ou, por outro lado, se a vida deve ser gozada em sua plenitude, com dignidade, o que impedirá a execução da eutanásia em relação a quem esteja em estado vegetativo, para além das restrições impostas pela moral religiosa? E o que diremos da antropofagia, como a relatada por Fuller, no caso dos homens que sacrificaram a vida de um companheiro para salvar a sua? Se, de fato, é ela um valor absoluto, será lídima a subtração de uma vida requerida por meio da sorte, com o lanço de dados, para o salvamento das demais? [08] Tais problemas permitem compartimentar as normas éticas segundo culturas e situações especiais? Além destas, muitas outras hipóteses poderíamos formular à maneira de dificultar a aceitação de imperativos categóricos – ditados pela autonomia moral do homem, que mesmo Kant preferiu não exemplificar por reconhecer as dificuldades de sua teoria [09]. No entanto, partamos para a explicação do que já no tópico acima nos propusemos, embora a metodização das idéias neste campo em que ingressamos seja complicada e tenha requerido as incursões que fizemos.

Quando o homem tornou sua vida mais complexa, passando do estado de nômade para o de ser gregário e sedentário, organizando-se em comunidades, surgiu aquilo que Nietzsche denominou de má consciência [10], adquirida através de todas as pressões exercidas contra a liberdade primitiva, tudo com o intuito de erradicar o egoísmo, ou, como diremos nós, para colmatar as brechas que ficam na ponte que erguemos entre a filosofia nietzscheana e a cosmovisão, para criar condições de vida harmoniosa e minimamente pacífica. O homem, este zoón politikón, que inevitavelmente tem de relacionar-se com seus pares na pólis – vivendo e necessitando da pólis – adquiriu nesse seu estágio de vida gregária maiores responsabilidades que implicam graus variados de coesão e de solidariedade, segundo a configuração evolutiva da comunidade. Assim, as comunidades primitivas praticamente aniquilavam o senso de individualidade, uma vez que seus integrantes formavam um organismo quase indissolúvel, capaz de resistir às ameaças externas. Não terá sido isto o que imaginou Platão nos seus diálogos sobre a República, uma cidade ideal em que os estamentos sociais eram estruturados de forma a que cada um exercesse proficuamente seu papel comunitário, no mesmo passo em que a classe dos soldados, vivendo um protótipo de comunismo, não tinha razões para sublevação? É bem provável que o discípulo de Sócrates e crítico do modelo social ateniense tenha sido mais perspicaz do que imaginaram seus detratores, incluindo Aristóteles. Pois bem, o senso desenvolvido de solidariedade e de coesão fez incutir nas culturas clássicas, tanto na helênica, como na dos romanos que tiveram um Cícero a seguir as linhas filosóficas dos gregos, preocupado com as virtudes e com a ética política (que devia ser praticada na civitas – note-se: a ética devia ser praticada ao invés de ser representada por artifícios retóricos) e, em outro canto, no oriente médio, entre os hebreus, princípios de Justiça. Que não era apenas o suum cuique tribuere, mas o sentido de temperança da pólis e do próprio indivíduo, que pretendia a felicidade – esta noção que é tão complexa e que não se compraz apenas com os prazeres sensuais. É mais que isto, disse-o Santo Agostinho [11].

Através deste raciocínio, queremos dizer que antes de ser uma vocação predeterminada, a busca de paz e de harmonia sociais e o respeito pelo outro, são princípios que se estabeleceram na consciência do homem-coletivo. E em razão desta especificidade. É o que facilmente se depreende quando em Êxodo (6,XX, שמות) [12] se refere que as Leis são entregues a Moisés por D’us [13] com a promessa de que receberão Sua misericórdia até as duas mil gerações dos que as observarem. As leis, sublinhemos, foram dadas para o povo de Israel, quando já estabelecido em território determinado e sob uma autoridade político-religiosa e que, portanto, pretendia alguns objetivos comuns. São normas de caráter social e religioso, e devem ser cumpridas pelo homem, aqui inegavelmente descrito como um ser-em-sociedade, visando à misericórdia divina, que podemos interpretar sob múltiplos aspectos, inclusive no sentido de que propicia a preservação do povo.

Tudo o que se engendra em termos normativos, inclusive as normas éticas que darão conteúdo aos direitos humanos, portanto, é reflexo não de uma natureza humana, mas da carga histórica de experiências, costumes, que se propagam pela tradição, até que se tornem norma normada de um corpus iuris. Ortega y Gasset, após analisar o cientificismo que decorreu de Descartes e seu método de raciocínio geométrico, opõe-se de maneira veemente, bem ao seu estilo, contra as ciências naturais que pretenderam demonstrar a natureza humana, referindo que "O prodígio que a ciência natural representa como conhecimento de coisas contrasta brutalmente com o fracasso dessa ciência natural ante o propriamente humano. O humano escapa à razão físico-matemática como a água por uma peneira". E sentencia peremptoriamente: "A vida humana [...] não é uma coisa, não tem uma natureza, e, por conseguinte, é necessário decidir-se a pensá-la por categorias, por conceitos radicalmente diferentes dos que nos são esclarecidos pelos fenômenos da matéria" [14]. E para chegar ao seu ponto de vista, o filósofo espanhol descarta as teorias reducionistas, como aquelas que surgem nas Geisteswissenschaften, as ciências do espírito, que englobam as ciências morais e as ciências da cultura. O homem e a idéia que dele decorre imediatamente, a de homem-coletivo, como referimos, não podem ser vistos como apenas realidades espirituais. Mais que isto, o homem é um drama – a vida é um drama, terá dito o atormentado filósofo – de sucessivos acontecimentos, alguns implicando dificuldades, outros facilidades para existir, mas tudo a formar seu arcabouço moral que o arrimará na tarefa de viver – isto que se nos acomete e que não é dado pronto e acabado, mas, pelo contrário, está a se construir constantemente, a ponto de se poder dizer que "A vida é um gerúndio, e não particípio: um faciendum, e não um factum" [15]. Assim, o homem, na sua perspectivação mais lata, que é a de viver como um ser-em-sociedade, inventa projetos de vida segundo as circunstâncias, o homem orteguiano não será mais que produto das circunstâncias e das experiências que vai enfrentando ao longo de sua trajetória. Esta premissa leva Ortega y Gasset a afirmar que o nosso presente nada mais é do que o acúmulo de tudo o mais que passou: "Esse passado é passado não porque passou a outros, mas porque forma parte do nosso presente, do que somos na forma de ter sido; em resumo, porque é nosso passado" [16]. E chegado a este ponto, no qual fica claro que o homem é um produto sócio-cultural, e, para além disto, produto de todas as circunstâncias que determinaram suas idealizações e concretizações, numa palavra, um verdadeiro acúmulo de experiências, Ortega y Gasset refere que "A história é um sistema – sistema das experiências humanas, que formam uma corrente inexorável e única" [17].

Ora, se o homem – e, note o leitor, aqui o consideramos como homem-coletivo, homem-social ou um ser-em-sociedade – é mais do que corpo e espírito (uma coisificação segundo a abordagem estática típica do raciocínio geométrico), mas um autêntico produto do passado que se carrega no presente, englobando as esquematizações idealizadas e as concretizações boas ou ruins em sua trajetória – as experiências do constante faciendum que é a vida –, temos como possível demonstrar que os direitos humanos – aquelas planificações ético-normativas tendo por fim um pouco de paz e de harmonia sociais – também se inscrevem no sistema histórico. Avancemos, pois.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Isaac Sabbá Guimarães

promotor de Justiça em Santa Catarina, professor de Direito na UNISUL e na Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina, mestre em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. O direito talmúdico como precursor de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 856, 6 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7470. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos