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Resultado do referendo:

inteligência

Agenda 29/10/2005 às 00:00

1.Acabam de ser anunciados os números em que se manifesta a estrondosa vitória do não sobre o sim quanto à ansiada proibição do comércio de arma de fogo e munição no território nacional. Após a batalha desigual travada entre as frentes representativas das duas facções, sagrou-se vencedora a idéia defendida pelos mais humildes, que, a despeito disso, tiveram a coragem e a audácia de se oporem aos mais aquinhoados que se escudavam nos poderosos meios de comunicação, que não pouparam recursos pessoais e materiais na perseguição do próprio intento, agora amplamente rechaçado.

2.Como se sabe, o referendo, como tal realizado em 23 de outubro de 2005, é uma das formas de exercício da soberania popular, prescrita para os casos de suma importância nacional, a fim de que possa entrar em vigor uma decisão já tomada pelo legislativo, no caso a disposta no art. 35 da Lei n.º 10.826/03.

3.Apesar de o resultado da consulta haver ocorrido de forma a afastar qualquer dúvida quanto à real e insofismável vontade do povo brasileiro, multiplicam-se, entre os perdedores, aqueles recalcitrantes que procuram desmerecer a conquista alcançada pelos seus opositores, ao sustentarem, até, que o referendo em nada alterou a situação vigente, o que demonstra a inútil forma - obtusa, tacanha e teimosa, de procurar minimizar a importância e o alcance do ato cívico levado a efeito. Será que somente o resultado contrário teria relevante eficácia? Se assim fosse, o referendo teria sido totalmente despiciendo, configurando uma verdadeira farsa, teatralizada só para conferir ares de legitimidade à prévia postura legislativa. E quanto aos imensos recursos despendidos por este País? Teriam, tão somente, corrido o inútil risco de financiar o nada?

4.Estarrecido, assisti a algumas entrevistas de certos iluminados quando afirmaram que o resultado do referendo foi, afinal, inteiramente inócuo, já que, exceto o impedimento da vigência do art. 35 do Estatuto do Desarmamento, em nada teria alterado a legislação em vigor, que é por demais rigorosa, a ponto de quase impossibilitar a aquisição da arma pelo particular. Em outras palavras: qualquer que tivesse sido a resposta dada pelo povo, a arma de fogo e a munição estariam longe do alcance do homem comum.

5.Ora, ninguém, provido do mínimo senso ordinário, nem principalmente o jurista, que seja dotado do requerido senso jurídico, acataria tão estreita interpretação, digna dos rábulas e leguleios, que não merecem ser vistos senão como meros ledores de leis.

6.Algumas reflexões, então, devem ser feitas com o propósito de obstar tão apressada interpretação. A primeira delas é intuitiva e surge do exame das primeiras linhas do estudo da Hermenêutica Jurídica: a interpretação que leva o intérprete ao absurdo deve ser afastada de plano. Absurda não é a lei, mas a interpretação. Além do mais, cumpre que se perceba que o referendo, sendo um ato de exercício da soberania popular, é tão grandioso que o torna incompatível com a imprestabilidade de um zero à esquerda como resultado.

7.Outra reflexão surge do exame do artigo de lei não referendado, ou seja do art. 35 do Estatuto, que visava a proibir o comércio de arma de fogo e munição em todo território nacional. O teor do dispositivo, em realidade, diante da falta do referendo, transformou a proibição em permissão, já que a negação da negação transmuda-se necessariamente em afirmação. Assim, o referendo popular, proibindo que se proibisse, passou, a contrario sensu, a permitir o comércio de arma de fogo e munição em todo o território nacional, até que tal seja revogado por outro referendo ou por futura norma de hierarquia superior.

8.Mais uma reflexão que não pode ser descurada é a que diz respeito à teleologia da recusa do referendo à proibição do comércio legal de arma de fogo e munição. Qual teria sido, destarte, o propósito do povo ao não referendar dita proibição? Proteger a indústria brasileira de armas e munições? Não. Isso em nenhum momento foi lembrado por ocasião da consulta popular nem o próprio Estatuto do Desarmamento cogitou da proibição do fabrico desses produtos. Proteger as empresas que se ocupam do comércio de armas de fogo e munições? Também não. O intuito seria pequeno demais para justificar a objeção ao referendo.

9.O verdadeiro propósito, a real pretensão exteriorizada pela imensa parcela dos eleitores brasileiros não se liga à defesa do comércio em si, ou seja, da venda, mas da proteção da compra, ou seja, da aquisição, por parte do cidadão, da arma de fogo e respectiva munição. Em última análise, a teleologia do não referendo circunscreve-se ao desiderato de autorizar àquele que comprou, que adquiriu a arma e a munição, possa, a qualquer tempo, tê-las consigo, em sua residência ou em seu local de trabalho, para os fins de defesa pessoal e patrimonial. Afastadas, evidentemente, conseqüências outras, principalmente quanto ao porte desautorizado, fora de casa, o que, por sinal, não foi defendido por ninguém, seria incompreensível e ilógico que alguém pudesse adquirir arma e munição sem que lhe fosse permitido conservá-las adequadamente em seu poder.

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Mas as reflexões e conclusões não param por aí.

10.Contrariamente àqueles que, sem pensar, sustentam que o resultado do referendo teria sido inócuo, diante das incontáveis dificuldades e pressupostos previamente impostos pela lei para a aquisição de arma e munição, há de ser relembrada a importância e grandiosidade do ato de exercício da soberania popular. Segundo sustento, o resultado do referendo apresenta duas conseqüências importantíssimas, uma explícita ou expressa e outra implícita ou tácita, a saber:

a) negação de vigência ao art. 35 do Estatuto do Desarmamento (conseqüência explícita ou expressa);

b) revogação de todos os dispositivos legais que sejam incompatíveis com o resultado do referendo, isto é, daqueles que impossibilitem ou dificultem sobremaneira a aquisição e posse de arma e munição pelos cidadãos (conseqüência implícita ou tácita).

11.Os requisitos para a aquisição de arma de fogo de uso permitido encontram-se no art. 4° da Lei n.º 10.826/03 e no art. 12 do respectivo regulamento, Decreto n.º 5.123/04.

12. Alguns desses requisitos deveriam concernir não à aquisição, mas ao porte da arma de fogo. O interessado precisa comprovar, por exemplo, que não esteja respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, mediante a entrega de certidões fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral. Ora, alguém que, por acaso, esteja respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, fica inibido de poder exercitar o seu direito de defesa, o de sua família e o de seu patrimônio?

13. Outro requisito, também mais corretamente apropriado à obtenção do porte, é o relativo à exigência de demonstração, por parte do adquirente, de possuir aptidão técnica e psicológica para o manuseio da arma. Aqui, o legislador incorreu no esquecimento, por sinal muito comum entre os jejunos, qual seja, no fato de que, geralmente, numa casa, não reside uma só pessoa – exatamente o candidato a ser proprietário da arma. Nela, poderá habitar a mulher, acompanhada ou não dos pais, filhos, genros, noras e netos, todos isentos de comprovação da idoneidade, aptidão psicológica e capacidade técnica de manuseio. Qual a solução para o impasse? Será que os demais moradores da casa estarão impedidos da co-habitação ou ser-lhes-á defeso o uso da arma, mesmo diante da ocorrência de agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem?

14.Finalmente, cabe-me referir ao mais "importante" requisito para a aquisição da arma de fogo. Trata-se da imprescindível declaração de efetiva necessidade da arma. Essa declaração, que será renovada a cada três anos, deve explicitar os fatos e circunstâncias justificadoras do pedido, que poderá ser indeferido pela autoridade competente. Ora, penso que tal pressuposto, à luz do resultado do referendo, deixou de existir porquanto, no exercício de sua soberana vontade, o povo veio a afirmar, de maneira incontestável, que a arma de fogo e munição são realmente imperiosas, na residência ou no local de trabalho, para o exercício do legítimo direito de defesa das pessoas.

Sobre o autor
Dílio Procópio Drummond de Alvarenga

professor aposentado de Direito Penal na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond Alvarenga. Resultado do referendo:: inteligência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 848, 29 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7499. Acesso em: 22 nov. 2024.

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