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Prisão domiciliar e a ausência de vaga em casas de albergado:

posição jurídica do condenado

Agenda 13/12/2005 às 00:00

A casa de albergado é o estabelecimento penitenciário destinado à execução do regime aberto de cumprimento da pena privativa de liberdade.

A casa de albergado deve ser posta em centros urbanos e não pode ter obstáculos para a fuga [01], haja vista que o regime aberto é fundado no princípio da responsabilidade e da autodisciplina do condenado [02]. Deve, ainda, ser dotada de aposentos para acomodar os condenados, além de instalações para o pessoal do serviço de fiscalização e orientação [03].

A questão, razão do presente artigo, surge quando inexiste vaga na casa de albergado. Qual a medida a ser tomada com os condenados que têm direito ao regime aberto pela progressão ou pela fixação de regime inicial?

Nossos tribunais propõem duas possibilidades de solucionar o problema: a)- o condenado deve aguardar, no regime semi-aberto, fechado ou em cadeia pública, a vaga em casa de albergado, b)- o condenado poderá cumprir o regime albergue em prisão domiciliar.

A primeira corrente afirma que não há outra saída ao Poder Público senão sacrificar o condenado, determinando que fique em condições mais rigorosas do que o estabelecido em lei. Argumenta, ainda, que a prisão domiciliar somente pode substituir o regime albergue em situações específicas, explicitadas no art. 117 da Lei 7.210/84, quais sejam: doença grave, maior de 70 anos, condenada com filho menor ou gestante. As situações, elencadas no artigo 117 da LEP, são taxativas. Assim já dispuseram o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

TJMG: "HABEAS CORPUS - CONDENAÇÃO - REGIME ABERTO - INEXISTÊNCIA DE CASA DO ALBERGADO - INOCORRÊNCIA DAS HIPÓTESES TAXATIVAMENTE PREVISTAS NA LEP - PRISÃO ALBERGUE DOMICILIAR - INADMISSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA" [04].

STF: "O plenário desta Corte, ao julgar o Habeas Corpus nº 68.012, decidiu que "nada justifica, fora das hipóteses taxativamente previstas na Lei de Execução Penal (art. 117), a concessão de prisão albergue domiciliar, sob o fundamento de inexistência, no local de execução da pena, de casa do albergado ou de estabelecimento similar." [05]

A segunda posição nega serem as condições, descritas no artigo 117 da LEP, taxativas. Afirma ser possível, em caso de inexistência de vaga na casa de albergado, impor a prisão domiciliar. Nesse sentido, segue o seguinte julgado:

STJ: "Inexistindo vaga em Casa de Albergado, o cumprimento da pena em estabelecimento destinado a condenados submetidos a regime mais rigoroso configura manifesto constrangimento ilegal. 2. Impõe-se a possibilidade de que o sentenciado a que foi determinado o regime aberto cumpra sua pena em prisão domiciliar, até que surja vaga em estabelecimento próprio. 3. Recurso provido" [06].

O Superior Tribunal de Justiça já chegou mesmo a reconhecer a possibilidade de concessão da prisão domiciliar quando inexistente a vaga no regime semi-aberto de cumprimento de pena. Senão vejamos:

STJ: "A inexistência de vaga no estabelecimento penal adequado ao cumprimento da pena permite ao condenado a possibilidade de ser encaminhado a outro regime mais brando, até que solvida a pendência. Se, por culpa do Estado, o condenado não vem cumprindo a pena no regime fixado na decisão judicial (semi-aberto), está caracterizado o constrangimento ilegal. Recurso especial DESPROVIDO" [07].

O choque entre as duas correntes, acima descritas, denuncia uma discussão bem mais profunda do que o caráter taxativo ou exemplificativo das condições dispostas no artigo 117 da LEP. A questão central acaba sendo reduzida à tensão entre a segurança pública e os direitos consagrados na lei de execução penal. O ponto nuclear da controvérsia tem raiz na posição jurídica do condenado: um sujeito de direito ou objeto da execução penal.

Os questionamentos, levantados no parágrafo anterior, na verdade, estão ocultos no tema do presente artigo. Quando um tribunal reconhece a inexistência de vaga em casas de albergado e determina que o condenado fique acautelado em situação mais gravosa do que lhe está garantido por força de lei, nos dá, como se pretende demonstrar, a uma clara mensagem: não concebo o recluso enquanto sujeito de direito.

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Não há de se justificar a primeira corrente, aqui evidenciada, trabalhando com os conceitos de público e privado. Isso porque entraríamos em terreno falacioso. Não é possível sobrepor o direito à segurança às garantias reservadas ao condenado e consagradas na execução penal, justificando que o primeiro é de natureza pública e o segundo privada. O direito público subjetivo do condenado, no caso aqui estudado, tem também natureza pública porque se reduzi à legalidade da execução criminal. Todavia, o Ministro Nelson Jobim do STF, em voto proferido no HC 75.299-3, assim decidiu:

"O Supremo Tribunal já firmou entendimento de que a inexistência de estabelecimento adequado ao regime aberto não autoriza a aplicação da prisão domiciliar, em face da prevalência do interesse público na efetivação da sanção penal, em detrimento do interesse individual do condenado. Assim, a prisão domiciliar só tem cabimento nas hipóteses do art. 117 da LEP. Precedentes: HC 68118 e 72.997, entre outros. Denego a Ordem"

Se estamos tratando de dois direitos de natureza pública, dar primazia à segurança pública só teria sentido se considerássemos o condenado um objeto da execução penal. Um inimigo, como lamentavelmente já disse Jakobs [08], para o qual não se aplicaria o direito, mas a mera coação. O caminho para a segurança é o investimento no sistema penitenciário e não o sacrifício de garantias fundamentais.

Consideramos a legalidade da execução penal um corolário do princípio da legalidade da pena. Do contrário, chegaríamos ao absurdo de concluir que a pena não é algo certo.

Desconsiderar o condenado enquanto sujeito de direito é conseqüência de seu processo de demonização que nos remete às raízes mais autoritárias do direito. A segregação jurídica – despersonalização – acaba por acompanhar a física. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já proferiu a seguinte decisão:

TJMG: "O paciente, cumprindo pena em regime aberto, não se enquadra em nenhuma das hipóteses taxativamente previstas na LEP (art. 117), como se infere dos elementos trazidos à colação. Ademais, conforme se vê da cópia da sentença condenatória (fls. 25/28), é ele reincidente e portador de péssimos antecedentes, pelo que não é de se lhe conceder prisão albergue domiciliar, a pretexto de inexistência, no momento, de vaga em Casa do Albergado" [09].

A desconsideração do condenado, enquanto um sujeito de direito, não é algo novo. Nilo Batista, estudando o direito penal antigo dos povos nórdicos, assim leciona:

"A perda da paz (Friedlosigkeit) significa que o culpado não merecia mais integrar o seu ou qualquer outro grupo associado ao Bund, e poderia (deveria) ser morto impunemente. A perda da paz poderia atingir também qualquer parente próximo do autor consabido da ofensa. O homem sem paz se convertia num estranho, e só lhe restava uma sobrevivência solitária e errante." [10]

Saulo Carvalho, ao tratar da herança autoritária do contratualismo penal, no mesmo sentido leciona:

"É que, ínsito à mais conhecida corrente do contratualismo penal, há uma perspectiva de demonização daquele que violou a norma e foi condenado à sanção penal. Todavia, o que mais chama a atenção é o fato de que, na atualidade, a realidade normativa e empírica em muito pouco rompeu com essa tradução autoritária" [11]

Diante do aqui exposto, fica o questionamento: será possível impor ao condenado o ônus pela inexistência de vaga na casa de albergado? Será possível atribuir a alguém ônus pela incompetência que a ele não pode ser reputada?

Cuidado ao responder estas questões. Podemos reproduzir, sem nem mesmo saber, um discurso que a muito já devia estar sepultado. Devemos pensar: não estamos reproduzindo – obviamente sem consciência –, no trato de questões jurídicas atinentes ao condenado, um modelo de sociedade colonial. A tradição tem uma vertente nefasta: pode vir a tornar o nosso olhar opaco.


Notas

01 "O prédio deverá situar-se em centros urbanos, separado dos demais estabelecimentos, e caracteriza-se pela ausência de obstáculos para a fuga" (art. 94 LEP)

02 "O regime aberto baseia-se na autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado" (art. 36 do CPB)

03"Em cada região haverá, pelo menos, uma Casa de Albergado, a qual deverá conter, além dos aposentos para acomodar os presos, local adequado para cursos e palestras. Parágrafo Único. O estabelecimento terá instalações para serviços de fiscalização e orientação dos condenados."(art. 95 LEP)

04 HC n. 160.808-2/000(1) Rel. Des. Edelberto Santiado, Data da Publicação 17/11/1999.

05 HC n. 70.058-6, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ de 28.05.93, p. 10.385.

06 RHC n. 16649, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. DJ 18.04.2005 p.394.

07 Resp 574511/SP. Rel. Min. Paulo Medina. Data da Publicação 10/10/2005 p.451

08 Ler JAKOBS, Gunther. CANCIO MELIÁ. Manuel. Derecho Penal del Enemigo. Madrid:Civitas Ediciones.2003

09 HC 160.808-2 de Relatoria do Desembargador Edelberto Santiago. Data da Publicação 17.11.1999.

10 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I. 2a Ed. Rio de Janeiro: Revan. 2002 p.35.

11 CARVALHO, Saulo. Pena e Garantias. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2003. p.153

Sobre o autor
Tarcísio Maciel Chaves de Mendonça

advogado criminalista, professor de Direito Penal na Faculdade Estácio de Sá, mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDONÇA, Tarcísio Maciel Chaves. Prisão domiciliar e a ausência de vaga em casas de albergado:: posição jurídica do condenado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 893, 13 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7677. Acesso em: 22 nov. 2024.

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