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O que é soberania dos veredictos?

Agenda 10/11/2019 às 19:42

O estudo demonstra que a expressão “soberania dos veredictos”, como atributo do julgamento do conselho de sentença nos crimes da competência do tribunal do júri, não possui significado de intangibilidade ou de onipotência, muito menos de algo absoluto.

José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Juiz de Direito Titular da 8.ª Vara Cível em São Luís-MA. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.


 

O princípio da soberania dos veredictos diz respeito ao fato de que a vontade soberana dos jurados não pode ser, a princípio, afrontada pelo Juiz togado ou pelo tribunal de segundo grau. Todavia, tal princípio pode ser mitigado pela possibilidade de desconsideração do julgamento do mérito em grau de recurso, ainda que apenas uma vez, em face do princípio da unirrecorribilidade das decisões.

Da mesma forma, esse relevante princípio constitucional do tribunal do júri, pode ser desconstituído pela possibilidade de revisão criminal que, desde logo, possa absolver o indivíduo condenado, modificar a pena, afastar a qualificadora (alterando a classificação da infração) ou anular o processo. Esse entendimento pode ser justificado pelo fato de que a soberania dos veredictos é garantia individual prevista constitucionalmente e, por se tratar de proteção do indivíduo contra o Estado, não pode ser utilizada contra o apenado.

Atualmente temos acompanhado, no meio jurídico e no noticiário nacional, grande discussão envolvendo diversos setores da sociedade a respeito do significado da expressão “soberania dos veredictos”, como atributo do julgamento proferido pelo conselho de sentença nos crimes da competência do tribunal do júri.

A questão, por demais instigante, tem suscitado a opinião de várias pessoas, sejam juristas ou não, levando a maioria delas a atribuir à expressão supracitada significado que não condiz com o real objetivo previsto na Constituição Federal.

Situado topograficamente no capítulo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, o tribunal do júri tem a “soberania dos veredictos” como princípio primordial que visa garantir aos jurados autonomia, independência e imparcialidade para decidir o caso sem a interferência de qualquer autoridade do Poder Judiciário, inclusive do magistrado que preside a sessão periódica, porque eles representam a vontade popular.

Muito embora a soberania dos veredictos tenha essa finalidade, alguns profissionais de áreas estranhas à ciência do Direito, assim como membros do próprio Judiciário, ignorando essa característica peculiar do tribunal do júri, têm procurado ampliar o sentido dessa expressão, conferindo-lhe valor absoluto e outorgando-lhe o sinônimo de onipotência.

Quanto a isso não podemos concordar, porquanto é sabido que o tribunal do júri é constituído por pessoas leigas que decidem por convicção íntima e por maioria de votos sem a necessidade de fundamentar a decisão, haja vista que a resposta aos quesitos elaborados pelo juiz togado, que preside o conselho de sentença, é sigilosa e monossilábica.

Demais disso, o sistema constitucional brasileiro não concede a ninguém grau de abertura suficiente para interpretar e avaliar a aplicação do instituto em análise de acordo com suas próprias pautas valorativas. Destarte, nenhuma pessoa pode ignorar que o sistema jurídico se encontra vinculado, em definitivo, pela Constituição da República, e não pelas valorações pessoais do intérprete.

É que o ordenamento jurídico não permite que cada um seja pregoeiro da solução que mais lhe interessar. Se existe uma Constituição Federal ou nacional, que foi elaborada pelos representantes legais do povo, temos que aceitá-la e assumir o compromisso de cumpri-la e acreditá-la tal como se encontra, inclusive no âmbito internacional, porque constitui um documento histõrico, cujos princípios, normas e diretrizes não podemos ignorar.

Sabemos que não há necessidade, atualmente, de o Juiz togado revelar o resultado da apuração da votação dos jurados por inteiro, mas apenas apurar até o quarto voto, a fim de preservar a integridade física dos mesmos e o sigilo das votações. Um resultado unânime de cada série de quesito pode colocar em risco o sigilo hermético da votação e a própria vida do jurado.

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Diante desse quadro, não é possível concordar também com a opinião daqueles que defendem o cumprimento imediato da sentença penal condenatória pelo réu, porque a decisão dos jurados pode ser manifestamente contrária à prova dos autos. Além disso, pode-se imaginar que esse julgamento tenha resultado bem apertado, por exemplo, quatro votos pela condenação e três pela absolvição, já que os juízes leigos decidem por maioria simples e não há necessidade de esclarecimento quanto ao número de votos que constitui essa superioridade numérica.

É que a soberania dos veredictos não pode ser equiparada ao julgamento de Procusto, muito menos à bíblia de Hitler. Na verdade, a soberania dos veredictos representa limitação ao poder punitivo do Estado. Melhor explicando, significa dizer que seu contrapeso é o direito à liberdade individual como resultante dos princípios constitucionais do estado ou presunção de inocência e da plenitude de defesa.

Pondere-se também que a limitação ao princípio da soberania dos veredictos não visa proteger apenas os interesses do réu, mas também da sociedade; e, mais que isso, refrear os excessos e equívocos cometidos pelo conselho de sentença constituído, como se sabe, por juízes leigos investidos de poderes do Estado para decidir o caso.

Nessa perspectiva, percebe-se que concorrem entre si vários princípios de mesma hierarquia constitucional, dentre os quais destacamos a plenitude de defesa, a soberania dos veredictos e o princípio do estado ou presunção de inocência. Veja-se que todos se encontram localizados no capítulo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, mas apenas dois deles estão inscritos como específicos do tribunal do júri.

Apesar dessa constatação, não é correto privilegiar o princípio da soberania dos veredictos, emprestando ao vocábulo “soberania” significado semântico ou filológico que não se coaduna com o sentido técnico-jurídico do termo, muito menos com a interpretação sistêmica de nosso ordenamento jurídico. Essa soberania, por isso mesmo, não é absoluta; ao contrário, é relativa.

É natural que as expressões “tribunal e júri”, ambas substantivo coletivo, sugiram a noção de órgão composto por várias pessoas. Contudo, a Constituição Federal não outorgou-lhe status de órgão de instância superior, muito menos de revisor de decisões monocráticas. É essa a correta interpretação que a nossa Carta Magna empresta aos termos, e não a de órgão colegiado semelhante aos existentes nos tribunais de justiça.

Do mesmo modo, não é correto entender que a expressão “tribunal” que antecede o complemento “do júri” confere a esse órgão, repita-se, status de colegiado de segundo grau. A decisão proferida pelo conselho de sentença, ainda que condenatória, é originada em primeira instância. Por essa razão, não pode ser executada de imediato; ela não está imune à via impugnativa, nem constitui uma obra divina.

A decisão do júri é obra humana. E, por isso mesmo, pode vir carregada de vícios, erros, equívocos e imperfeições que a falibilidade humana não consegue evitar. O próprio CPP estabelece que cabe apelação para corrigir decisão do tribunal do júri manifestamente contrária à prova dos autos.

O uso da apelação para corrigir decisão manifestamente contrária à prova dos autos é a possibilidade prevista no art. 593, III, letra “d” do CPP, para desfazer o mito da soberania dos veredictos. Nada obsta que o tribunal de justiça acolha o recurso, anule a decisão, e determine que o réu seja submetido a outro julgamento com renovada composição do júri popular.

Esse recurso pode ser usado uma única vez, sob esse fundamento, tanto quando o júri condena, quanto quando ele absolve. Como sustentar o cumprimento imediato da pena resultante do veredicto dos jurados, se é possível a sua anulação pelo tribunal de justiça?

A prudência, neste caso, recomenda que seja observado o esgotamento das instâncias recursais, como manda a Constituição Federal, até porque os princípios asseguradores da garantia da inviolabilidade dos direitos do réu, no procedimento da competência do júri, estão escritos com os nomes de plenitude de defesa e soberania dos veredictos, cuja característica peculiar é equilibrar o sistema de pesos e contrapesos, não apenas com a participação democrática de representantes do povo no julgamento, mas também garantindo o direito inviolável do acusado de defender-se plenamente. Oriundos do mesmo preceito jurídico, ambos devem ser colocados nos pratos da mesma balança como símbolo da igualdade, do equilíbrio e da justiça.

Isto implica também na garantia do réu insurgir-se contra o cumprimento imediato da pena, pois a ordem constitucional vigente destaca a presunção de inocência como um princípio que harmoniza o sistema legal, porque permite o manejo de recursos perante os diversos graus de jurisdição até o esgotamento das vias recursais.

Destarte, a soberania dos veredictos não foi assegurada ao tribunal do júri com um viés ditatorial. Ao contrário, ela deve ser aplicada mediante seu ajustamento aos demais princípios supremos da Constituição Federal, que garantem ao réu o direito de insurgir-se contra a decisão do conselho de sentença, a fim de que não sejam violados direitos que protegem seu jus libertatis. Com inteira razão, apostila Nelson Hungria1 in verbis:

 

A limitação da soberania do júri, entre nós, visou, principalmente, a coibir as escandalosas absolvições sistemáticas do tribunal popular e, portanto, salvaguardar o indeclinável interêsse da defesa social contra o crime. Resultou de uma experiência nossa, e não sob inspiração dos regimes políticos totalitários, segundo se assoalha com a mais requintada má-fé. É preciso acabar com êsse estribilho de que se trata de uma medida de sêlo fascista ou nazista.”

 

Merece registro, por oportuno, ponderar que a soberania dos veredictos não é o canto das sereias que seduz e atrai os incautos, nem a metáfora que simboliza o insuperável, conforme retrata Homero na Odisseia. O profissional do Direito denodado, ainda que se encontre, como o herói Ulisses, frente à possibilidade de perecer, reage sem fechar os olhos e sem tapar os ouvidos, seguindo em busca do seu objetivo que é alcançar a justiça, a qual nem sempre é obtida num primeiro julgamento, mas na reiteração do mesmo à vista de protestos, da interposição de recursos judiciais ou da revisão criminal.

Longe de ser um mito, a soberania dos veredictos deve ser encarada, conforme dissemos alhures, como um limite ao jus puniendi estatal na medida em que seu verdadeiro significado se situa no julgamento do réu por pessoas simples da comunidade que, embora possuam imparcialidade, independência e autonomia, são portadoras da falibilidade humana, atributo negativo que pode levá-las a erros e a equívocos, cuja correção deve ser feita pelo próprio tribunal popular, após reapreciação recursal do veredicto por instância superior, que determina novo julgamento, porque o júri proferiu decisão manifestamente contrária à prova dos autos.

Além disso, essa apregoada soberania dos veredictos pode também ser desmistificada a partir do julgamento da revisão criminal pelo tribunal de jurisdição superior, na forma do art. 621 do CPP, quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos.

Finalmente, necessário esclarecer que a soberania dos veredictos, como decisão condenatória do tribunal do júri, é retratada numa sentença, escrita por um Juiz togado, que é o presidente do referido tribunal. Esse ato decisório, repita-se, é chamado de sentença e contempla o exame dos fatos que foram apreciados pelos jurados (quesitos), bem como a dosimetria da pena, cuja errônea aplicação leva à revogação/anulação do julgado pelo órgão de jurisdição superior e submissão do réu a novo julgamento por outro conselho de jurados.

Sendo sentença condenatória, a mesma está sujeita à regra do art. 283, do CPP, segunda parte, o qual somente autoriza a prisão após o trânsito em julgado, salvo se o réu já estiver preso em razão de flagrante ou de preventiva.

Daí porque a ideia do cumprimento imediato da pena é equivocada. Destarte, mesmo a pena que for aplicada no âmbito do julgamento pelo tribunal do júri, salvante as exceções acima apontadas, somente deve ser executada quando a sentença proferida estiver transitada em julgado e se encontre afastada a possibilidade de qualquer ofensa ao princípio da segurança jurídica.

Para concluirr, e sem a pretensão de ser romântico ou de esgotar o debate, lanço mão da frase de Jorge Luis Borges que bem se adequa ao caso em estudo: “No creo en la creación absoluta, porque no hay nada absoluto: ni colores, ni líneas, ni formas.”

1 Comentários ao Código Penal. Vol. I. 2.ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Editora Revista Forense, 1953. p. 47/48.

 

 

 

 

 

 

Sobre o autor
José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Juiz de Direito Titular da 8.ª Vara Cível em São Luís. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

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