1 INTRODUÇÃO O presente artigo, inicialmente, irá abordar sobre o crescente aumento da população carcerária nos presídios do país, bem como irá expor as razões que suscitaram a inserção da audiência de custódia no ordenamento jurídico brasileiro. Em seguida, ele irá apontar uma falha no sistema processual em vigor, pois demonstrará que os atos praticados pelo Delegado de Polícia na presidência do auto de prisão em flagrante são repetidos pelo Juiz de Direito na audiência de custódia, o que faz com que tal inovação comprometa as investigações criminais e acarrete inúmeros gastos à administração pública. Mais adiante, será demonstrado que a repetição de atos feita na aludida audiência, somada às demais dificuldades institucionais, comprometem o bom andamento da justiça, pois posterga a entrega da resposta jurisdicional que a sociedade tanto clama, e dificulta sobremaneira a investigação policial, visto que hoje a Polícia Civil mais atua de forma cartorária da polícia militar e da guarda municipal, do que cumpre sua atividade fim, colocada em segundo plano. Ao final, será proposta uma tese, que se aplicada, poderia ser uma das possíveis soluções para os problemas existentes: A substituição da audiência de custódia por um Juizado de Instrução, que além de atingir os fins a que se propõe a referida audiência, sanaria os entraves causados à polícia judiciária. 2 A CRISE CARCERÁRIA BRASILEIRA Atualmente, o Brasil vivencia um período no qual a sensação de injustiça cresce a passos largos. O sistema prisional do país sofre um colapso. A população carcerária exorbita a capacidade Estatal, e as prisões ilegais são cada vez mais frequentes. Diante desta situação, a morosidade processual torna-se uma agravante, o que contribui para a instauração da insegurança jurídica e para a descrença da sociedade quanto à atuação do Sistema Judiciário. De acordo com os números divulgados pelo Centro Internacional de Estudos Prisionais (2017), o Brasil até Fevereiro de 2017, possuía a quinta maior população carcerária do mundo, totalizando o número de 650.956 (seiscentos e cinquenta mil e novecentos e cinquenta e seis) prisioneiros, que corresponde, atualmente, a 37.7% da população total do país . Conforme ilustra a tabela abaixo, a população carcerária tem crescido de maneira vertiginosa, o que torna a situação ainda mais alarmante: Tabela 01 – Tendência da População Prisional (ano, população prisional total, taxa de população prisional). Ano População Prisional Total Taxa de População Prisional 2000 232.755 133% 2002 239.345 133% 2004 336.358 182% 2006 401.236 212% 2008 451.429 234% 2010 496.251 253% 2012 548.003 275% 2014 622.202 307% Fonte: INSTITUTE FOR CRIMINAL POLICY RESEARCH, 2017 Para atenuar a superlotação vigente o Presidente Michel Temer anunciou uma medida do governo federal : a construção de mais presídios em todo o país. Todavia, esta providência está longe de solucionar a vicissitude enfrentada pelo Poder Judiciário, vez que ela demanda tempo e grandes investimentos. Ademais, qualquer iniciativa adotada torna-se ineficaz enquanto as prisões cautelares progredirem de forma desenfreada. Em razão disso, o ordenamento jurídico em vigor aderiu à audiência de custódia, fazendo dela um instrumento para restringir os abusos de autoridade e a violação de direitos do preso. 3 A EFETIVAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO BRASIL A audiência de custódia foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro no dia em 15 de Dezembro de 2015, através da Resolução nº 213 do Conselho Nacional de Justiça. Sua realização tem por finalidade tutelar os direitos fundamentais do cidadão em face do Poder Persecutório do Estado, apresentando o preso, dentro de 24 horas, a autoridade judicial competente. Paiva, Defensor Público Federal , a conceitua da seguinte forma: Como o ato de guardar, de proteger. A audiência de custódia consiste, portanto, na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial que deverá, a partir de prévio contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a Defesa, exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, assim como apreciar questões relativas à pessoa do cidadão conduzido, notadamente a presença de maus tratos ou tortura. Assim, a audiência de custódia pode ser considerada como uma relevantíssima hipótese de acesso à jurisdição penal, tratando-se de uma das garantias da liberdade pessoal que se traduz em obrigações positivas a cargo do Estado. (PAIVA, p. 31, 2015 apud PIRES; MENDES, p.02). A regularização desta audiência foi feita em consonância com alguns Tratados e Convenções Internacionais assinados pelo Brasil, nos quais o país se comprometeu a honrar compromissos, que implicam na modificação de normas de direito penal e processual penal. Dentre os dispositivos internacionais que a República Federativa do Brasil tornou-se signatária, podemos destacar: A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), popularmente conhecida como Pacto de San José da Costa Rica , que prevê em seu artigo 7º, item 05: Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (BRASIL, 1992) Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 da ONU , que em seu artigo 9º, § 3º assevera: Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução da sentença. (BRASIL, 1966) Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas , que através do seu artigo XI, garante a apresentação sem demora do preso à autoridade judiciária competente: Toda pessoa privada de liberdade deve ser mantida em lugares de detenção oficialmente reconhecidos e apresentada, sem demora e de acordo com a legislação interna respectiva, à autoridade judiciária competente. (BRASIL, 2011) Estes Pactos, em tese, segundo o artigo 5º, §3º da Carta Magna (2004), para adquirirem força de Emenda Constitucional, deveriam ser aprovados por três quintos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação. Contudo, conforme o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal, os dispositivos internacionais supracitados enquadram-se como normas supralegais, e por versarem sobre Direitos Humanos, podem ser aplicados mesmo sem a aprovação do Congresso, como ratifica o HC nº 146.518/2009, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: HABEAS CORPUS Nº 146.518 - MG (2009/0173114-3) RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI IMPETRANTE : PATRÍCIA BREGALDA LIMA E OUTRO IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS PACIENTE : DIEGO DINIZ DOS SANTOS Habeas Corpus. Depositário infiel. Prisão civil. Não cabimento. Entendimento do STF. Status de norma supralegal. Pacto de San Jose da Costa Rica.- O STF definiu que os Tratados e as Convenções Internacionais sobre direitos humanos, aos quais o Brasil aderiu, tem "status" de norma supralegal. Diante disso, deve ser revista a posição do STJ. Incabível, portanto, a prisão civil do depositário infiel. Liminar deferida. DECISÃO Cuida-se de Habeas Corpus impetrado por PATRÍCIA BREGALDA LIMA E OUTRO em favor de DIEGO DINIZ DOS SANTOS. Ação: de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente, promovida pelo Banco Volkswagen S/A, em face do paciente. Sentença: julgou procedente o pedido e determinou a devolução do veículo em 05 dias, sob pena de prisão por 01 ano. Acórdão: negou provimento ao apelo, mantendo a determinação de prisão do paciente. . Habea (fls. 29/31) s corpus: pretende a revogação do mandado de prisão, tendo em conta o recente entendimento do STF que posicionou-se pelo não cabimento da prisão civil do depositário infiel. Relatado o processo, decide-se. O STF, nos julgamentos do HC 87.585/TO, Rel. Min. Março Aurélio, do RE 349.703/RS, Rel. p/ acórdão o Min. Gilmar Mendes, e do RE 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, todos realizados em 03.12.2008, adotou o entendimento de que os Tratados e as Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos, aos quais a República Federativa do Brasil aderiu, tem status de norma supralegal. Assim, por ter o Brasil aderido ao Pacto de São José da Costa Rica, que permite a prisão civil por dívida apenas na hipótese de descumprimento inescusável de prestação alimentícia, não é cabível a prisão do depositário infiel, qualquer que seja a natureza do depósito. Forte em tais razões, CONCEDO A LIMINAR e determino a expedição de salvo-conduto em favor do paciente. Comunique-se com urgência. Solicitem-se informações. Após, colha-se o parecer do Ministério Público Federal. Publique-se. Intimem-se. Oficie-se. Brasília , 09 de setembro d (DF) e 2009. MINISTRA NANCY ANDRIGHI, Relatora (STJ - HC: 146518, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Publicação: DJe 16/09/2009) Portanto, em razão da extrema necessidade de redução das prisões cautelares efetivadas e em respeito às regras dispostas nos Pactos recepcionados pelo país, a audiência de custódia passou a ser aplicada em todas as unidades da federação. 3.1 ASPECTOS PRÁTICOS DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA A audiência de custódia é realizada com a finalidade de verificar a legalidade da prisão. Por meio dela, o magistrado terá que verificar se o preso não foi torturado, assim como deverá garantir que a prisão cautelar seja a última medida a ser aplicada. Afirma o Ministro Ricardo Lewandowsky : Outro objetivo importante é humanizar a justiça e prender apenas os que merecem e devem ser presos, que são violentos e representam um perigo. Aqueles que cometeram delitos de menor potencial ofensivo não têm antecedentes, emprego fixo, podem responder processo em liberdade ao invés de serem amontoados como animais nas nossas penitenciárias e serem aliciados pelo crime organizado. (PACHECO, 2015) Em virtude disso, qualquer pessoa presa em flagrante, após a protocolização e distribuição do Auto de Prisão, será apresentada ao Juiz competente dentro do prazo de 24 horas, conforme pauta pré-fixada pelo juízo . O autuado preso, antes de ser ouvido, será submetido ao exame clínico e de corpo de delito, no qual não poderá ser acompanhado pelo agente policial responsável pela sua prisão. Nas hipóteses em que o exame se demonstrar insuficiente, não cumprir os requisitos legais ou tiver sido realizado antes da prática da tortura, o magistrado deverá ordenar a realização de um reexame, conforme ilustra o artigo 8º, inciso VII, da Resolução 213 do CNJ : VII - verificar se houve a realização de exame de corpo de delito, determinando sua realização nos casos em que: a) não tiver sido realizado; b) os registros se mostrarem insuficientes; c) a alegação de tortura e maus tratos referir-se a momento posterior ao exame realizado; d) o exame tiver sido realizado na presença de agente policial, observando-se a Recomendação CNJ 49/2014 quanto à formulação de quesitos ao perito; (BRASIL, 2005). . Na audiência estarão presentes os representantes do Ministério Público e a defesa técnica, aos quais será dado acesso ao Auto de Prisão em Flagrante. Durante a oitiva da pessoa capturada as algemas não serão utilizadas, salvo nos casos em que o preso oferecer resistência ou apresentar indícios de perigo à integridade física própria ou alheia . O preso será informado sobre os direitos que possui, como por exemplo, a possibilidade de conhecer e contradizer os fatos narrados no auto de prisão, assim como a de permanecer em silêncio, se assim desejar . Em seguida, a autoridade judicial verificará se foi conferida ao indivíduo a oportunidade de exercer seus direitos constitucionais durante a lavratura do APF, particularmente, o de se consultar com um advogado ou defensor público, o de se comunicar com seus familiares e o de ser atendido por um médico . Verificará também as circunstâncias da prisão, questionando o tratamento dado pelo agente policial a pessoa detida, com o intuito de apurar se houve prática de tortura ou maus tratos Após a oitiva do preso, será conferida ao Ministério Público e a Defesa Técnica, nessa ordem, a oportunidade de fazer reperguntas ao detento, para que depois possam requerer: (i) o relaxamento da prisão em flagrante, (ii) a concessão de liberdade provisória, com ou sem imposição de medida cautelar, (iii) a decretação de prisão preventiva, ou (iv) a adoção de outras medidas necessárias à preservação da pessoa presa . Ao final, a sentença será proferida de forma fundamentada, sem adentrar ao mérito, como evidencia o artigo 8º, §3º da Resolução nº 213/20015 do CNJ : A ata da audiência conterá, apenas e resumidamente, a deliberação fundamentada do magistrado quanto à legalidade e manutenção da prisão, cabimento de liberdade provisória sem ou com a imposição de medidas cautelares diversas da prisão, considerando-se o pedido de cada parte, como também as providências tomadas, em caso da constatação de indícios de tortura e maus tratos. (BRASIL, 2015) Cabe salientar que as denuncias realizadas pelos presos serão apuradas, e as providências cabíveis para preservar a sua segurança serão tomadas, como assevera o artigo 11 da Resolução 213 do CNJ : Art. 11. Havendo declaração da pessoa presa em flagrante delito de que foi vítima de tortura e maus tratos ou entendimento da autoridade judicial de que há indícios da prática de tortura, será determinado o registro das informações, adotadas as providências cabíveis para a investigação da denúncia e preservação da segurança física e psicológica da vítima, que será encaminhada para atendimento médico e psicossocial especializado. (BRASIL, 2015) Segundo o Ministro Ricardo Lewandowski, desde a implantação da audiência já economizamos “meio bilhão de reais, deixamos de prender 6 mil custodiados, que não ofereciam perigo a sociedade, e deixamos de construir oito presídios novos” . Diante do exposto, concluímos que a audiência de custódia veio nos auxiliar a superar a chaga de sermos o quarto país que mais aprisiona no mundo , assim como promove uma economia de recursos, pois evita o custeio de detentos inócuos a sociedade, que muitas vezes ficam reclusos por longos períodos à espera de julgamento. 4 A REPETIÇÃO DE ATOS NA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA Na audiência de custódia, como já destacado, o magistrado irá inquirir o acusado sobre os fatos que ensejaram a privação da sua liberdade. O preso, acompanhado da defesa técnica, terá a oportunidade de debater as circunstâncias que motivaram o seu cárcere, bem como informar qualquer abuso sofrido. Em seguida, caberá ao juiz proferir a sua decisão, optando pelo relaxamento da prisão, pela concessão liberdade provisória, com ou sem a aplicação de medida cautelar diversa, ou pela decretação da prisão preventiva, como dispõe artigo 8º, §1º da Resolução nº 213 do CNJ : § 1o Após a oitiva da pessoa presa em flagrante delito, o juiz deferirá ao Ministério Público e à defesa técnica, nesta ordem, reperguntas compatíveis com a natureza do ato, devendo indeferir as perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação, permitindo-lhes, em seguida, requerer: I – Relaxar a prisão em flagrante; II – Conceder a liberdade provisória sem ou com aplicação de medida cautelar diversa da prisão; III – Decretar a prisão preventiva; IV - Adotar outras medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa. (Brasil, Resolução 213/ CNJ, 2015, art. 8º, §1º). Observa-se que esta inovação veio sanar o problema da violação de direitos humanos, contendo os abusos de poder e evitando a realização de prisões cautelares desnecessárias. Contudo, demonstra ser um obstáculo à celeridade processual e ao cumprimento da justiça, visto que seu rito é muito similar ao realizado pela autoridade policial ao lavrar o auto de prisão em flagrante. De acordo com o Código de Processo Penal, inicialmente, caberá ao delegado de polícia ouvir o condutor da pessoa detida e colher sua assinatura o mais breve possível, entregando-lhe a cópia do termo e do recibo da entrega do preso. Logo após, deverá realizar a oitiva das testemunhas que acompanharam o condutor, para que assim ratifique os fatos por ele narrados. Por fim, interrogará o acusado sobre a imputação que lhe é feita, de modo a verificar se a prisão é legal . Ao final, a autoridade policial deverá decidir discricionariamente se irá: a) relaxar a prisão em flagrante, decretá-la ilegal e liberar o preso; b) efetuar a prisão nos casos em que estiver fundado em suspeita contra o conduzido, ou seja, quando existir indícios da materialidade e autoria do crime, ou c) Lavrar o auto de prisão, mas liberar o preso, se o crime permitir o pagamento de fiança ou se seguir a Lei de Contravenções Penais. O procedimento descrito está previsto no artigo 310 do Código de Processo Penal , in verbis: Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. (BRASIL, 1941) Nota-se, portanto, que o delegado de polícia faz a mesma análise da prisão que o magistrado efetua na audiência de custodia. Há uma repetição de atos, que faz com que a liberação do detento seja postergada pela lavratura do auto de prisão em flagrante, que poderá ser apresentado ao juiz competente em até vinte e quatro horas . Além da repetição apontada, cabe salientar outras dificuldades enfrentadas pelo sistema processual em vigor. A primeira delas é a falta de estrutura nas delegacias de polícia para acomodar os presos recebidos. Despreparadas, as repartições policiais não oferecem um ambiente adequado para a pessoa detida, que é obrigada a aguardar em uma cela, que não oferece nenhuma condição de dignidade, a realização da audiência de custódia. Outro obstáculo que deve ser observado é o altíssimo dispêndio gerado pelos plantões policiais ao erário público. A manutenção da estrutura organizacional da Polícia Civil demanda muitos recursos, que poderiam ser aplicados em outros setores de igual importância. A manutenção de funcionários públicos é outro desafio, pois em razão da baixa remuneração oferecida por alguns estados brasileiros aos policiais civis, o número de agentes foi reduzido. Os funcionários ativos, repletos de procedimentos burocráticos e realizando uma jornada de trabalho exaustiva para suprir o déficit de material humano, deixam de realizar diligências relevantes, comprometendo o bom andamento das atividades investigativas. Desse modo, a morosidade do Poder Judiciário fica evidente, pois as normas em vigor não acompanham as inovações trazidas pela audiência de custódia. A nova realidade clama por modificações no sistema processual, não somente para sanar os percalços existentes, como também para garantir a mais perfeita aplicação da justiça. 5 A SUBSTITUIÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA PELO JUIZADO DE INSTRUÇÃO Diante da desinente repetição de atos processuais da audiência de custódia, sobrevém a necessidade de mudanças no arcaico sistema processual em vigor. Neste contexto, surge a tese da criação de um Juizado de Instrução Criminal, que viria a dirimir esta obsoleta situação processual. A proposta foi inicialmente desenvolvida pela doutrina com o designo de substituir o inquérito policial. O fundamento por ela suscitado é o de que as investigações realizadas pela Polícia Civil não possuem valor probatório, o que as tornam inaproveitáveis e custosas ao Estado. Em linhas gerais, o Juizado de Instrução seria o instrumento destinado à apuração das infrações penais. Presidido por um "juiz instrutor", ele colheria todas às provas que integram a instrução penal, outorgando à polícia, a exclusiva função de prevenir, investigar e realizar a repressão das condutas delitivas, obstando-se assim, a perda de tempo provocada pela repetição das provas. A matéria foi debatida por Álvaro Lazzarini, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que em seu trabalho intitulado “Juizado de Instrução”, alude às palavras de Mario Valiante da seguinte maneira: Nada, absolutamente nada, justifica que o policial, seja civil, seja militar, tenha truncada a sua atividade administrativa de polícia, com a obrigatoriedade de levar a ocorrência que atendeu a um órgão policial intermediário, de nítido e desnecessário caráter cartorário burocrático, para a elaboração do reconhecidamente anacrônico inquérito policial. O inquérito policial, sabido é por quem milita na Justiça Criminal, é uma mera peça informativa, de duvidoso valor jurídico, em que pese a respeitáveis opiniões em contrário de ilustres processualistas e demais interessados em manter esse retrógado meio de levar à Justiça Criminal, muito tempo depois, quando tudo está diluído pelo tempo ou pelas pressões, a notícia da pratica delitiva. (VALIANTE, 1975, p. 194/209 apud LAZZARINI, p. 199). O Juizado de Instrução segundo estes moldes é manifestamente utópico, considerando que a vasta extensão do território brasileiro atravancaria as investigações do processo. Igualmente, seria impossível investigar crimes de autoria desconhecida, haja vista que é infactível, por exemplo, atribuir ao Ministério Público à tarefa de acompanhar interceptações telefônicas e presidir demais diligências investigatórias. Estas tarefas demandariam um aumento do quadro de funcionários públicos que o Estado não pode comportar. Nada obstante, é importante enfatizar que esta linha de pensamento não deve ser totalmente rejeitada, pois ela é verdadeira em partes. Ela está correta quanto à burocratização da atividade policial. Por sua vez, quanto à repetição de atos processuais, demonstra-se imprecisa, pois a repetição é averiguada na audiência de custódia e não na fase inquisitorial. Destarte, levanta-se um novo paradigma de Juizado de Instrução, que poderia substituir a audiência de custódia, analisar a legalidade da prisão em flagrante e inaugurar a fase da instrução processual. Segundo o novo modelo, caberia ao agente responsável pela prisão encaminhar o preso, as testemunhas e objetos apreendidos ao Juiz, a quem entregaria um “termo circunstanciado” contendo todos os fatos e circunstâncias que provocaram a sua atuação. O magistrado, por sua vez, poderia seguir o mesmo rito da audiência de custódia, mas nada o impediria de adentrar ao mérito, pois ao ter contato direto com o preso após o seu cárcere, observaria detalhes imprescindíveis para a formação do seu convencimento. Ademais, o fato de o preso ser ouvido por uma autoridade judicial, de ser acompanhado pela defesa técnica e de poder permanecer em silêncio, já garantiria a aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa. O delegado de polícia, desobrigado de presidir o auto de prisão em flagrante, poderia se concentrar apenas no inquérito Policial, o que em tese, permitiria a solução de diversas infrações penais. Estaria assim, cumprindo a missão da Polícia Civil, que segundo a Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo, é investigar delitos e identificar a autoria dos mesmos : A Polícia Judiciária investigativa atua na defesa da sociedade e na preservação da ordem pública, promovendo e participando de medidas de proteção à sociedade e ao indivíduo, exercendo com excelência suas atribuições, ou seja, a apuração das infrações penais e a identificação de sua autoria. (SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2017) Para consolidar esta premissa, tomemos a título de exemplo, a Polícia Federal, que atuando predominantemente por meio de prisões preventivas e temporárias, comanda atualmente a maior investigação da história do país: a Lava Jato. Cabe frisar que esta modificação conferiria aos policiais civis uma jornada de trabalho mais compatível com a remuneração que recebem, pois livres dos serviços cartorários dos plantões policiais, não teriam que cumprir horas extras para suprir a falta de funcionários públicos, assim como teriam tempo hábil para promoverem investigações mais eficientes e exercerem o direito que possuem ao lazer e ao descanso semanal. Esta proposta é de tal modo congruente, já que impediria a desnecessária reanálise da prisão em flagrante, bem como atingiria os fins a que se propõe a audiência de custódia, sejam eles: analisar a legalidade da prisão, defender a integridade física e psíquica do preso e reduzir medidas cautelares prescindíveis. A sua adoção, todavia, encontra diversos obstáculos, pois contraria interesses corporativistas e esbarra na dificuldade histórica que encontramos em nosso país de levar a cabo modificações institucionais, que causam receio às carreiras que seriam atingidas por tais inovações. Entretanto, a questão deve ser discutida levando-se em conta a preponderância do interesse público, vez que as instituições devem acompanhar o desenvolvimento social, permitindo que o Poder Judiciário evolua de acordo com a realidade apresentada, de modo a oferecer ao cidadão contribuinte a resposta que almeja. Caso não seja viável a adoção desta proposta, outra solução para o melhor aproveitamento das instituições atuais seria a valorização da figura do delegado de polícia, a quem poderia ser atribuída à função de um juiz de instrução, quando da sua atuação na presidência do auto de prisão em flagrante delito, o qual já teria um caráter contraditório e provas com valor probatório, lembrando os processos judicialiformes, aplicados antes da promulgação da Constituição de 1988, nos delitos culposos e nas contravenções penais, que autorizavam o delegado de polícia a realizar toda a instrução, com o devido contraditório, remetendo-a, em seguida, ao juiz competente que prolatava a sentença. 6 CONCLUSÃO Diante do exposto, chegamos ao entendimento que a audiência de custódia, nos moldes em que foi concebida, acaba por repetir atos da polícia judiciária, fazendo com que o trabalho da autoridade policial seja praticamente jogado a um plano meramente cartorário. O legislador ao permanecer inerte diante deste quadro caótico, de nítido desperdício de reursos públicos e humanos, faz com que o atual ordenamento processual penal caia em descrédito, já que não permite que os policiais civis se dediquem com exclusividade a investigação criminal e, por conseguinte, a repressão aos delitos já cometidos. Desta forma, o combate efetivo ao crime organizado, as formações de quadrilha, ao tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, aos crimes contra o sistema financeiro nacional e tantos outros que dão sustentação a mais variada gama de delitos secundários, fica prejudicado. O ordenamento jurídico posto, requer modificações estruturais, pois com o atual desenho, tende a descumprir o princípio doutrinário da adequação social do Direito Processual Penal. O Delegado de Polícia ou se dedica tão somente à investigação criminal, ou se transforma em juiz de instrução, pois o que não se pode permitir é que uma autoridade com tamanha experiência e capacitação jurídica, seja colocada de lado a ponto de ser desvalorizada. A questão é de suma importância e deve ser debatida levando-se em consideração os interesses públicos. O cidadão deve receber a contraprestação que almeja, isto é, uma justiça célere e econômica, pois fazendo uso das palavras de Rui Barbosa: “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta ”. REFERÊNCIAS ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 16 de Dezembro de 1966. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm > Acesso em: 04. Maio. 2017. BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 213, de 15 de Dezembro de 2015. 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Substituição da audiência de custódia: criação de um juizado de instrução
02/01/2020 às 10:24
O presente artigo versa sobre a audiência de custódia e suas implicações na prestação da tutela jurisdicional.
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