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Divulgação e enaltecimento ao nazismo é crime?

A legislação brasileira possui disposições claras e suficientes para o combate ao nazismo?

INTRODUÇÃO

O regime nazista de Adolf Hitler foi um período pavoroso e sombrio da história humana. As práticas e os dogmas ali propostos levaram a consequências catastróficas, tal como o Holocausto. Sob o viés nacionalista, o terceiro reich empreendeu um grande genocídio a judeus, ciganos, eslavos e negros.

Após anos, o mundo ainda sofre com a presença de grupos seguidores do ideal nazista, os quais pregam de forma aberta os ideais do regime, partindo, em alguns casos, para as vias de fato cometendo barbáries, enquanto outros se limitam a propagar tal doutrina com a finalidade de atrair seguidores.

O direito como um instrumento de controle da sociedade não está alheio a tais situações, dado que o fim último deste é a harmonia e a paz social, fazendo com que tais atos, que representam desvios, sejam combatidos sob o fundamento dos princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana. Tem-se no art. 5°, inciso XLII, que a prática do racismo é um crime inafiançável e imprescritível, ou seja, pode ser julgado e sentenciado a qualquer momento, independentemente da data  em que foi cometido. Por meio da Lei 7.716/1989, foram cominadas as penas para as condutas racismo e preconceito, encontrando-se disposto no art. 20, §1°, o crime de divulgação do nazismo.

Pensando nisso, este trabalho tem por escopo observar se no ordenamento jurídico brasileiro a divulgação e o enaltecimento ao nazismo são condutas passíveis de retribuição penal, bem como verificar se os instrumentos existentes são suficientes para a retribuição da conduta em espécie.

O limiar entre a divulgação do nazismo e a prática efetiva do racismo é fraca, mostrando-se dificultosa a aplicação da penalidade referente à disseminação e propagação do ideário. Além disso, mostra-se dificultosa punir condutas de divulgação e enaltecimento, sem a prática direta do racismo.

Assim sendo, busca-se por meio desta pesquisa traçar de forma adequada as condutas e os limites de aplicação dos instrumentos hábeis de modo a facilitar a compreensão e aplicação da normas em análise.

Diante disso, com o objetivo de elucidar tais questões, buscou-se na legislação pátria os fundamentos legais aplicáveis. Analisou-se, ainda, a Lei 7.716 de 1989, no que toca ao crime de racismo e à qualificadora relativa à divulgação do nazismo. Ademais, observa-se o julgamento do Habeas Corpus 82.424/2003, considerando a pertinência temática de tal jurisprudência com a discussão posta. Por fim, verificou-se as disposições cabíveis a conduta em análise na Lei 7.710 de 1983 (Lei de Segurança Nacional).


1. PANORAMA GERAL DAS DISPOSIÇÕES NORMATIVAS CONSTANTES NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O horror provocado pelo partido socialista alemão reverbera até os dias de hoje. A propagação de tais ideias, bem como a prática de delitos sob influência de tais preceitos não encontra respaldo no sistema jurídico brasileiro.

A Constituição Federal em seu art. 3°, inciso IV, estabelece como um objetivo fundamental da república “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Neste sentido, o art. 5°, inciso XLII, estabelece ainda que a "prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei". Cabe ainda a menção aos arts. 215 e 216 da Carta Magna, os quais protegem a manifestação cultural das etnias que formam o povo brasileiro.

Por conseguinte, cabe ressaltar o art. 2° da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação (Decreto n° 65.810/1969), no qual o Brasil se compromete a adotar uma política de eliminação da discriminação racial em todas as suas formas e por todos os meios possíveis.

Sendo assim, ante aos compromissos firmados em tratados e na própria constituição federal, os poderes devem agir de modo a sanar a problemática. O combate a condutas racistas e preconceituosas instaladas nos meandros de nossa sociedade é um grande desafio.

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Neste contexto, apontamos a existência da Lei 7.716/1989, a qual dispõe sobre o crime de racismo (art. 20, caput), bem como sua qualificadora, o crime de divulgação do nazismo (art. 20, §1°). Ademais, tem-se a Lei 7.710/1983 (Lei de Segurança Nacional), defendemos a aplicação analógica desta aos casos de divulgação e enaltecimento do nazismo.


2 DAS LACUNAS PRESENTES NO ART. 20, §1°, LEI 7.716 DE 1989 – CRIME DE DIVULGAÇÃO DO NAZISMO

Os efeitos jurídicos penais do compromisso firmado foram exposto na Lei n° 7.716/1989, definindo-se os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. No sistema jurídico brasileiro outras legislações tocaram na temática, porém os estudos da referida lei se faz interessante, tendo em vista que encontra-se disposto no art. 20 e parágrafos a tipificação de crimes relacionados a propagação do ideário nazista.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.Pena: reclusão de um a três anos e multa.

§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

Os §§ 1° e 2° do artigo citado, estabelecem sanções para os casos em que propaga-se a ideologia apresentada, seja ela em meio virtual ou não, através da fabricação, comercialização, distribuição e veiculação de ornamentos e distintivos, bem como propagandas que contenham a cruz suástica ou gamada, sob pena de reclusão de dois a cinco anos e multa. Nestes casos, têm-se uma espécie de apologia direta e que não gerará dúvidas a ocorrência de um crime, dado que o indivíduo utilizará símbolos característicos do regime.

De acordo com Santos (2008, p. 132), a redação do dispositivo é infeliz, pois a proibição se limita a cruz suástica ou gamada, e não menciona a divulgação por outros métodos.

§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência:

I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;

II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.

II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio;

III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.

§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido. (BRASIL, 2020a)

Ademais, os §§ 3° e 4° estabelecem medidas a serem tomadas para fazer cessar os efeitos do crime praticado. O juiz poderá determinar o recolhimento de objetos e fazer cessar o meio de propagação.

Como ressaltado, o objeto do crime são emblemas, ornamentos, distintivos ou propagandas que utilizem a cruz suástica. Tem-se como tipo subjetivo o dolo, com especial fim de agir. Sendo assim, há crime se a conduta é praticada com a finalidade de divulgação.

Afinal, pode-se interpretar o disposto no §1°, do art. 20 de forma extensiva, de modo a abarcar situações que não envolvem a divulgação do nazismo com a utilização de símbolos?  A exemplo de casos nos quais há a citação de determinadas falas retiradas de textos e discursos dos criadores do regime nacional-socialista, tal como o praticado em por Roberto Alvim, ex-Secretário Especial da Cultura do então Presidente da República Jair Bolsonaro, que utilizou parte do discurso de Joseph Goebbels em um pronunciamento em 17 de janeiro de 2020.

Neste contexto, se extrai da leitura do art. 20 e parágrafos, que a norma fora redigida de forma errônea, tendo em vista que ora restringe a aplicação em demasia, ora amplia seu sentido por demais. O autor Marcheri (2015, p. 139), aponta tal problemática:

Pondera-se que para a correta definição acerca do âmbito de aplicabilidade da norma penal é necessário que haja uma interpretação não adstrita ao tipo penal, mas também levando-se em conta a própria finalidade e destinação da Lei que o contém. De fato, o nazismo só passa a ser relevante ao Direito Penal, quando este violar o bem jurídico da igualdade em um contexto discriminante.

[...]

Não obstante, ora a norma é demasiadamente restrita (utilizando-se da vinculação à suástica), ora ela é excessivamente ampliativa (ao tipificar toda divulgação do nazismo), o que evidencia a falha técnica em sua redação.

Deste modo, não é possível ampliar o sentido da norma para abarcar situações de divulgação do nazismo não previstas, dado que o legislador dispôs de forma restritiva o seu conteúdo. Segundo Capez (2012, p. 106), a interpretação extensiva não cabe para situações em que o dispositivo é construído de modo restritivo, dispondo situações objetivas e precisas para a sua aplicação.

Observa-se que o caput do art. 20 estabelece, de forma abstrata, a prática, indução ou incitação à discriminação ou preconceito. Portanto, a conduta com conotação nazista sob a égide de seus preceitos e dogmas pode ser enquadrada em tal tipo penal, se exarada de modo racista e preconceituoso, não abarcando todas as situações de divulgação e enaltecimento do nazismo.

Adiante, passemos à análise do julgamento do Habeas Corpus 82.424/2003 do STF, para a compreensão da aplicação dos dispositivos em análise a um caso prático.

2.1. ANÁLISE DO HABEAS CORPUS 82.424/2003 DO STF

O tema relacionado a apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias, na forma propagada pelo nazismo, já foi objeto de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n° 82.424/2003. Neste caso, o editor Siegfried Ellwanger, foi condenado pela prática de racismo, porque publicava livros negando o holocausto.

A corte dispôs, em suma, que tal conduta nega a ocorrência de fatos incontroversos, com a nítida intenção de resgatar e dar credibilidade a ideias antissemitas, definidas pelo regime nazista. Tal conduta equivale a incitação da discriminação com acentuado conteúdo racista. Por fim, estabeleceu-se que: "A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem." (BRASIL, 2020b).

Observa-se que, no caso em tela, é possível verificar a materialidade do crime de racismo, e não a sua forma qualificada de divulgação do nazismo. Tendo em vista que, diante dos fatos apontados, a disseminação dos ideais nazistas era contundente nos livros publicados.

Depreende-se que a apologia ao nazismo é crime, podendo ser tipificado conforme o §1°, do art. 20, da Lei n° 7.716/1989, se o indivíduo atua com vistas a divulgação de seu ideário por meio de seus símbolos, no mais, para aqueles casos em que pratica-se tal conduta, sem a utilização dos símbolos característicos do regime, propagando dizeres ou atuando de modo racista ou preconceituoso, pode ser aplicado o crime de racismo, na forma do art. 20, caput, da referida lei.

No mais, para a possível responsabilização nos casos em que a divulgação e o enaltecimento ao nazismo não possuem conotação racista ou preconceituosa, aplica-se o art. 22, incisos I e II, art. 23, inciso I, primeira parte e artigo 24, da Lei de Segurança Nacional.


3 A POSSIBLIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI DE SEGURANÇA NACIONAL AOS CASOS DE DIVULGAÇÃO E ENALTECIMENTO DO NAZISMO – LEI 7.710 DE 1983

A Lei 7.710/1983 comina penas para condutas que atentem e exponham a risco a segurança nacional. Sua aplicação a conduta proposta para casos de divulgação e enaltecimento do nazismo, quando o indivíduo não incorrer no art. 20, caput ou art. 20, §1º, da Lei 7.716 DE 1989.

Sendo assim, Carvalho (2019) defende que se pode aplicar o disposto no art. 22, incisos I e II, artigos 23, inciso I, primeira parte e artigo 24 da Lei de Segurança Nacional, utilizando-se a analogia, de modo a suprir as lacunas existentes.

Art. 22 - Fazer, em público, propaganda:

I - de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social;

II - de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa;

[...]

Art. 23 - Incitar:

I - à subversão da ordem política ou social;

II - à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis;

[...]

Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

Art. 24 - Constituir, integrar ou manter organização ilegal de tipo militar, de qualquer forma ou natureza armada ou não, com ou sem fardamento, com finalidade combativa.

Pena: reclusão, de 2 a 8 anos. (BRASIL, 2020c)

Partindo da premissa de que o regime nazista é diametralmente oposto a forma de governo e estado constante no Brasil, bem como se opõe aos fundamentos e princípios basilares em nossa constituição, a sua defesa vai de encontro ao sistema posto.

De certo, a Lei de Segurança Nacional não foi criada com tal viés, mas sua redação permite a criminalização de condutas, as quais tenham por objetivo a defesa do regime nazistas, seus dogmas e princípios, posto que representam uma afronta ao estado democrático de direito.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto, para os casos cuja divulgação do nazismo se dá por meios em que não estejam presentes a cruz suástica ou gamada, a conduta é considerada atípica, se pensarmos no disposto no art. 20, §1°. Dessa forma, para tais casos, devemos observar o discurso empregado e a finalidade, para possível tipificação nos moldes do art. 20, caput, incorrendo na prática do crime de racismo, nos moldes do Habeas Corpus n° 82.424/2003 – STF.

De outro modo, para as situações em que há a divulgação e enaltecimento do nazismo dissociado de discurso racista ou preconceituoso, pode-se utilizar o disposto no art.  art. 22, incisos I e II, art. 23, inciso I, primeira parte e artigo 24 da Lei de Segurança Nacional.

Com isso, percebe-se que a legislação brasileira não possui disposições claras e suficientes para o combate ao nazismo. Urge a criação de uma lei própria cominando penas e abordando as mais diversas condutas de divulgação e enaltecimento do nazismo com a finalidade de propagar tal ideal bárbaro e ultrapassado.


REFERÊNCIAS

BRASIL, Lei nº 7.716, de 5 janeiro de 1989. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm. Acesso em 20 jan 2020a.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82424 RS. Relator: Moreira Alves. DJ 19/03/2004. Disponível em: Acesso em: http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfJurisprudencia_pt_br&idConteudo=185077&modo=cms. Acesso em: 20 jan 2020b.

BRASIL, Lei n° 7.710, de 14 de dezembro de 1983. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm. Acesso em 20 jan 2020c.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 19ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

SANTOS, Christiano Jorge. Crimes de preconceito e discriminação. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2017.

MARCHERI, Pedro Lima. O Nazismo, Neonazismo e Outras Espécies de Discriminação no Sistema Penal Brasileiro. 2015. [S. l.], 2015. Disponível em: http://aberto.univem.edu.br/handle/11077/1316. Acesso em: 21 jan. 2020.

CARVALHO, Rodrigo César Picon. Divulgação e enaltecimento do nazismo e a legislação penal brasileira. 2020. Disponível em: https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/798964338/divulgacao-e-enaltecimento-do-nazismo-e-a-legislacao-penal-brasileira. Acesso em: 23 jan. 2020.

Sobre os autores
Leonardo Silva de Oliveira Bandeira

Advogado. Graduado em Direito pela Faculdade da Amazônia Ocidental. Pós-graduado em Prática da Advocacia Cível, com habilitação em Docência do Ensino Superior pela Faculdade da Amazônia Ocidental.

Víctor Torchi Esteves

Graduando em direito pela Faculdade da Amazônia Ocidental. Estagiário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BANDEIRA, Leonardo Silva Oliveira; ESTEVES, Víctor Torchi. Divulgação e enaltecimento ao nazismo é crime?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6056, 30 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79128. Acesso em: 22 dez. 2024.

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