RESUMO: Analisa o princípio do juiz natural dentro da seara do direito processual civil contemporâneo, destacando a sua importância para o ordenamento jurídico pátrio, bem como a sua infringência diante da aceitação dos tribunais pátrios de atos que proporcionam a escolha do juiz da causa.
PALAVRAS-CHAVE: princípio – juiz natural – garantias dos magistrados - jurisdição.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A amplitude do princípio do juiz natural. 3. A relevância das garantias da magistratura para o princípio da naturalidade do juízo. 4. O princípio do juiz natural e o direito processual civil contemporâneo. 4.1. Violação à distribuição. 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Há muito tempo que o poder judiciário goza de um profundo descrédito perante a população, sobretudo diante da ocorrência de decisões que, segundo o consenso social, não espelham, nem de longe, a aplicabilidade da justiça.
Algumas vezes as sentenças decorrem de ingerências políticas e hierárquicas sobre os magistrados, ou seja, a jurisdição se presta para sobrepujar o direito dos menos favorecidos em benefício do interesse dos mais poderosos, perpetuando-se, com o crivo da coisa julgada, situações injustas.
Ciente da vulnerabilidade do magistrado, o constituinte disciplinou o princípio do juiz natural como o meio hábil a garantir o direito de todos serem processados apenas por juízes constitucionalmente competentes, pré-constituídos, imparciais e independentes por natureza, com fulcro no Estado Democrático de Direito.
Todavia, diariamente, constatam-se casos em que as partes conseguem escolher o juiz da causa, de acordo com os seus interesses, sabotando, sobremaneira, o princípio constitucional e processual do juiz natural. Muitas dessas escolhas são viabilizadas mediante a manipulação das regras processuais, sobretudo das atinentes à distribuição por dependência.
Não obstante reconhecer que o número de magistrados é insuficiente para o número de processos existentes, enfatiza-se que, em regra, os juízes não dão a devida importância à análise da distribuição por dependência, razão pela qual, corriqueiramente, juízes constitucionalmente incompetentes presidem feitos em todo o Brasil, malferindo a própria jurisdição.
Outro fato que merece destaque diz respeito às livres designações de magistrados substitutos, através de atos da presidência dos tribunais, ou seja, por critérios puramente discricionários, subjetivos e pessoais.
A discussão sobre o tema é de grande relevância para toda comunidade jurídica, sobretudo porque a garantia do princípio do juiz natural é um dos pilares do próprio Estado Democrático de Direito.
2. A AMPLITUDE DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
Antes de adentrar propriamente na análise do princípio do juiz natural, sabidamente de índole constitucional e processual, deve-se ter em mente a importância dos princípios constitucionais para o ordenamento jurídico, a fim de que se possa entender a sua real dimensão.
Os princípios constitucionais são regras jurídicas efetivas, de efeitos vinculantes, responsáveis pelas diretrizes básicas de todo o ordenamento jurídico. Neles se encontram os mais importantes valores consagrados no texto fundamental. [01]
Sem os princípios, a Constituição Federal, ou qualquer outro diploma normativo, seria apenas um emaranhado de normas que só teriam em comum o fato de estarem juntas no mesmo diploma legal. Seria uma árvore sem frutos, "um corpo sem alma".
A violação de um princípio, sobretudo constitucional, é, indubitavelmente, mais grave que a de um dispositivo legal específico: ofender um princípio é ofender uma das regras formadoras de todo o sistema jurídico.
Nessa linha de raciocínio, destaca-se que o Poder Judiciário atua sob a égide da função jurisdicional, atribuída por meio de regras de cunho constitucional, estipuladas conforme a natureza do objeto litigioso do processo. [02]
Consoante os ensinamentos do professor Fredie Didier Jr., percebe-se que a Jurisdição é a realização do direito; é a manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor suas decisões, por meio de terceiro imparcial (Estado-Juiz), objetivando a realização do direito justo. [03]
Tendo em vista que não se pode aplicar o direito ao caso em concreto sem que o aludido órgão julgador seja imparcial, entende-se que a imparcialidade do magistrado é a principal característica da jurisdição. Essa, inclusive, é uma das razões de ser do princípio do juiz natural em nosso ordenamento jurídico, ou seja, garantir a imparcialidade do magistrado.
O princípio do juiz natural surgiu no ordenamento jurídico anglo-saxão e se desdobrou para os constitucionalismos norte-americano e francês, até chegar ao nosso, ora identificando-se apenas como a proibição dos tribunais de exceção, ora também como a garantia do juiz competente. [04]
Para Liebman, a garantia do juiz natural surgiu "para evitar que uma controvérsia possa ser entregue a órgão judiciário diverso daquele que segundo a lei seria competente (...). O mesmo sentido têm os arts. 6º da Convenção Européia e 14 do Pacto Internacional, ao dizerem que o juiz deve ser estabelecido por lei". [05]
Segundo Ada Pellegrini Grinover, o princípio do juiz natural não é apenas um direito subjetivo da parte, mas sim a garantia da própria jurisdição, seu elemento essencial. "Sem o juiz natural, não há função jurisdicional possível". [06]
Hodiernamente, o princípio do juiz natural é proclamado no direito brasileiro diante da conjugação dos incisos XXXVII [07] e LIII [08], do art. 5º, da nossa Carta Política, tendo como preocupação central garantir a imparcialidade do judiciário e a segurança do povo contra o arbítrio estatal. [09]
Nesse sentido, pode-se afirmar, sem espaços para incertezas, que o juiz natural no ordenamento jurídico brasileiro é aquele constitucionalmente competente, ou seja, derivado de fontes constitucionais, portanto, imparcial por natureza. [10]
De acordo com Fredie Didier Jr., o exame do princípio do juiz natural reclama um aspecto objetivo, formal, e um aspecto substantivo, material. Quanto ao aspecto objetivo, entende-se que o juiz natural é aquele juiz competente conforme as regras gerais e abstratas já estabelecidas, vez que não é possível a determinação de um juízo post facto ou ad personam. Já o aspecto substancial do princípio do juiz natural pressupõe a imparcialidade e a independência do magistrado. [11]
Já para Nelson Nery Jr., a garantia do juiz natural tem três vertentes: a) não haverá juízo ou tribunal de exceção ou ad hoc; b) todos têm o direito de serem julgados por juiz competente, pré-constituído na forma da lei; c) o juiz competente deve ser imparcial. [12]
Aduzindo, Tribunal de exceção é aquele criado para julgar determinado caso, isto é, de encomenda, criado ex post facto para julgar com parcialidade, no ímpeto de beneficiar ou prejudicar alguém. Não se deve confundi-lo com prerrogativa de função, que é uma garantia assegurada à independência e imparcialidade da justiça, com supedâneo no interesse público geral. [13]
Doutra banda, perlustrando o preâmbulo da Constituição de 1988, [14] percebe-se que o intuito dos constituintes foi o de instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna.
Como bem disse Ihering, "o Estado de Direito só pode existir quando a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança". [15] Isso porque o Estado de Direito deve trilhar o caminho disciplinado pelo ordenamento jurídico, fazendo uso da força estatal apenas para lhe dar fiel cumprimento, sob pena de campear arbitrariedades.
Ademais, o direito a um juiz imparcial, além de constituir garantia fundamental para a administração da justiça em um Estado de Direito como o nosso, também serve de substrato para a previsão infraconstitucional de hipóteses de impedimento e suspeição de órgãos julgadores. [16]
Doutra forma, destaca-se que o princípio do promotor natural também foi previsto pela nossa Lei Fundamental, através do seu art. 129, I, o qual conferiu ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal pública. [17]
Ante o exposto, depreende-se que o princípio do juiz natural colima assegurar a todo o cidadão o direito de ser julgado por juiz constitucionalmente competente, imparcial por natureza, pré-constituído por lei, para o pleno desempenho da função jurisdicional. Além do mais, o aludido princípio refuta a criação de tribunais ex post facto, denominados tribunais de exceção, em homenagem aos preceitos do Estado Democrático de Direito, no ímpeto de aplicar justiça no caso em concreto.
3. A RELEVÂNCIA DAS GARANTIAS DA MAGISTRATURA PARA O PRINCÍPIO DA NATURALIDADE DO JUÍZO
A Constituição Federal de 1988 disciplinou o judiciário de forma a garantir julgamentos imparciais e justos, através da atuação de magistrados independentes. [18] A garantia de independência assegurada ao Poder Judiciário desempenha um importante papel na sociedade contemporânea, mormente nos moldes do Estado Democrático de Direito, vez que possibilita a concretização da Teoria Tripartite de Montesquieu. [19]
As garantias do judiciário, nos dizeres de José Afonso da Silva, dividem-se em: - garantias institucionais; - e garantias funcionais. As primeiras fornecem ao judiciário autonomia orgânico-administrativa e financeira. Já as garantias funcionais são aquelas estabelecidas em favor dos juízes, no intuito de viabilizar que os mesmos possam proferir suas decisões de forma independente, sem sofrer qualquer tipo de pressão. [20]
As garantias funcionais, mais atinentes ao objeto de estudo deste artigo, são: a) garantias de independência dos órgãos do judiciário (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos); b) garantias de imparcialidade dos órgãos do poder judiciário. [21]
É nesse contexto que o princípio constitucional do juiz natural se relaciona com as prerrogativas do Poder Judiciário, tendo em vista que aquele garante a imparcialidade do magistrado, ao impedir designações arbitrárias de juízes para o julgamento de determinados processos. [22]
Porém, a livre designação de juízes ainda é prática corriqueira em alguns Estados, como São Paulo, Pernambuco e Ceará. Diante disso, a Associação Juízes para a Democracia protocolou, em meados de 2005, representação junto ao Conselho Nacional de Justiça, colimando a preservação do juiz natural e, portanto, das garantias inerentes à magistratura. [23]
Todavia, como bem nos ensina Piero Calamandrei, a expectativa de um juiz indiferente, nos exatos termos da imparcialidade almejada por muitos, não passa de uma ilusão. Segundo o aclamado processualista italiano, deve-se levar em conta que o magistrado, ao proferir uma sentença, não se baseia apenas em silogismos jurídicos, mas também em sentimentos. [24]
A questão gira em torno da "fragilidade humana" [25], vez que o juiz não é apenas juiz, mas também um cidadão integrante da sociedade, suscetível a frustrações, decepções, expectativas, anseios, antipatias, simpatias, etc., ou seja, o magistrado, durante o desempenho da atividade jurisdicional, não está imune aos sentimentos e experiências que a vida cotidiana desperta.
Doutra forma, ressalta-se que o conjunto de premissas postas em prática pelo magistrado leva também em consideração a sua índole ideológica, cultural, econômica, religiosa, etc, [26] gerando uma espécie de preconceito, apto a sugerir o rumo da decisão.
Mas é justamente essa "fragilidade humana" que coloca o magistrado como fiel da balança; como controlador efetivo da força da espada garantidora do direito. Não se pode esquecer que o direito muda com o passar dos anos, e somente um juiz independente e "imparcial", provido de sentimentos, preocupado com os anseios sociais de sua época, é capaz de perceber e agir de acordo com o que é prioritário para o ordenamento jurídico em dado momento histórico.
De outra banda, a aludida neutralidade do juiz não atende ao processo moderno, que reclama um juiz participativo e dirigente, sobretudo no tocante à colheita de provas. Isso porque o processo civil moderno não se contenta apenas com a verdade formal, provável, mas sim com a verdade real. [27]
Nesse espeque, a Constituição Federal, por meio do caput do art. 95, disciplinou garantias inerentes aos cargos de magistrado, colocando-os a salvo das intromissões políticas e hierárquicas, com o objetivo de lhes garantir a plena capacidade de solucionar os conflitos postos em juízo mediante o seu livre convencimento legal.
A garantia da inamovibilidade, que refuta transferências, suspensões, aposentadorias ou demissões, além de nomeações interinas, surge como pressuposto inalienável da independência pessoal dos juízes. [28]
A independência dos magistrados também se relaciona com a autonomia no exercício da jurisdição, porque nenhuma relação hierárquica no plano da organização judicial poderá ter incidência sobre o exercício, propriamente dito, da função jurisdicional. [29]
Ademais, o parágrafo único [30], do art. 95, da Constituição Federal de 1988, não obstante forneça a idéia de vedação, de proibição, na verdade, deve ser interpretado como forma de proteção ao juiz. [31] As vedações atuam como uma espécie de redoma, na qual os magistrados permanecem seguros, alheios às ingerências hierárquicas e políticas que poderiam surgir, caso não houvesse essa guarida jurídica.
O juiz deve ser o constitucionalmente competente, previamente constituído por lei, independente, imparcial, isto é, não deve ter qualquer interesse relacionado com o desiderato do processo. O magistrado, ao desempenhar a nobre função jurisdicional, precisa ter em mente o importante papel que ocupa no sistema jurídico, razão pela qual deve acusar qualquer fato que comprometa a sua imparcialidade, inerente ao pleno exercício jurisdicional, sob pena de malferir os postulados do Estado Democrático de Direito. Essa é a bandeira do princípio do juiz natural
Compulsando-se o parágrafo único [32], do art. 135, do nosso Código de Processo Civil, infere-se que o magistrado pode se declarar suspeito por motivo íntimo, sendo despicienda qualquer tipo de justificativa. Essa é mais uma demonstração de que o ordenamento pátrio assegura ao magistrado o direito, e a obrigação, de se abster de atuar em determinado processo quando lhe falte a imparcialidade exigida, sendo defeso qualquer tipo de represália.
Essa temática também não passou despercebida pelo grande constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho, que disciplinou:
"A independência dos tribunais pressupõe, igualmente, a exigência de os juízes ‘não serem parte’ nas questões submetidas à sua apreciação. Esta exigência de imparcialidade ou terciariedade justifica a obrigação de o juiz se considerar impedido no caso de existir uma qualquer ligação a uma das partes litigantes. Aqui se situa também a legitimidade do incidente de suspeição accionado pelas partes".
Ad argumentandum tantum, cita-se trecho do relatório do Ministro Celso de Melo, nos autos do HC nº 69.601/SP, no qual fora apreciado a alegação de vício na composição do órgão julgador:
"O princípio da naturalidade do Juízo - que traduz significativa conquista do processo penal liberal, essencialmente fundado em bases democraticas - atua como fator de limitação dos poderes persecutorios do Estado e representa importante garantia de imparcialidade dos juizes e tribunais. Nesse contexto, o mecanismo das substituições dos juizes traduz aspecto dos mais delicados nas relações entre o Estado, no exercício de sua atividade persecutoria, e o individuo, na sua condição de imputado nos processos penais condenatórios".
Perorando, malgrado a importância do princípio do juiz natural, não se concebe que a sua aplicação chegue a situações extremas, atentatórias à razoabilidade, como, por exemplo, nos casos de juízes substitutos, desde que designados por critérios objetivos, genéricos e impessoais, no intuito de unirem esforços com os juízes titulares das varas para garantirem a efetividade da prestação jurisdicional.
4. O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E O DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO
Como dito, o princípio do juiz natural colima assegurar a todo o cidadão o direito de ser julgado por juiz constitucionalmente competente, imparcial por natureza, pré-constituído por lei, para o pleno desempenho da função jurisdicional.
O princípio da naturalidade do juízo se aplicada, de igual forma, no processo civil e criminal, bem como no processo administrativo, denominado princípio do julgador natural, dimensão do princípio do juiz natural no direito administrativo. [35]
A invocação do princípio do juiz natural consagra conquista importante da humanidade. Não se deve esquecer que, ao longo de sua história, o poder judiciário, por diversas vezes, se mostrou arbitrário e subserviente a comandos ditatoriais, afrontando o conteúdo democrático do Estado de Direito. [36]
De acordo com o que reza o art. 87 do Código de Processo Civil, a estabilização da competência ocorre com o ajuizamento da ação (perpetuatio jurisdictionis), a fim de evitar que modificações supervenientes alterem o lugar do processo, prejudicando sobremaneira as partes. As exceções que o próprio dispositivo prevê são para os casos supervenientes que suprimem ou alterem a competência em razão da matéria ou hierarquia.
Nesse contexto, a regra da perpetuatio jurisdictionis só se aplica às hipóteses de incompetência relativa. Nos casos em que for reconhecida a incompetência absoluta, os autos devem ser remetidos imediatamente ao juiz competente, reputando-se nulos os atos decisórios já praticados. [37]
Contudo, cabe glosar que a criação de varas especializadas, de regras de competência determinada por prerrogativa de função, a instituição de Câmaras de Férias em tribunais, não malferem o princípio do juiz natural, tendo em vista que "em todas essas situações as regras são gerais, abstratas e impessoais". [38]
Aduzindo, apenas no intuito de evidenciar a importância do tema atualmente, destaca-se a existência de uma corrente doutrinária, comandada por José Maria Tesheiner e Fredie Didier, que defende a possibilidade de decretação de nulidade de ato atentatório a preceito constitucional, até mesmo após o lapso de tempo de 02 (dois) anos previsto para a ação rescisória (CPC, art. 495), por meio de ação autônoma denominada querela nullitatis. [39] Essa teoria também pode ser aplicada nos caso de ofensa ao princípio do juiz natural.
Todavia, com arrimo na legislação pátria, após a coisa julgada material, a ação rescisória é a única forma de correção de defeitos dessa natureza, salvo nos casos decorrentes de falta de citação, já albergados pelo art. 741, I, do Código de Processo Civil. [40]
Nesse liame, com o fito de melhor atender ao objetivo desse trabalho, mencionam-se alguns fatos atentatórios ao princípio do juiz natural que se repetem diariamente nos palácios de justiça, sem qualquer tipo de controle.
4.1.Violação à distribuição
Os arts. 251 e 252, ambos do Código de Processo Civil, tratam da necessidade de distribuição de todos os processos onde houver "mais de um juiz ou mais de um escrivão", de forma alternada, obedecendo à rigorosa igualdade.
A distribuição serve para estabelecer a competência do juízo, de forma objetiva, genérica e impessoal, sendo, na verdade, um fruto do princípio do juiz natural. Em sendo assim, as regras de divisão interna de atribuições e funções, onde houver mais de um juízo abstrativamente competente, devem impedir que as partes possam escolher o juiz de sua preferência para julgar o seu processo. [41] Hodiernamente, a fim de garantir a alternatividade e igualdade, a distribuição tem sido realizada por um sistema informatizado.
Entretanto, diariamente, constatam-se situações em que são utilizados artifícios escusos para escolher o juiz da causa, burlando dessa maneira as regras de distribuição e, por via de conseqüência, o princípio do juiz natural; seja em virtude de se ter conhecimento do posicionamento do magistrado naquele tipo de causa, seja por inúmeras outras razões.
Algumas vezes a tentativa de burlar as regras de distribuição chegam a níveis assustadores, como nos casos de manipulação do sistema de informática pelo próprio distribuidor, ou de ajuizamento de várias ações idênticas, com o futuro pedido de desistência de todas elas, ou de outra forma que o valha, com exceção daquela distribuída no juízo pretendido.
O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar caso dessa envergadura, entendeu ser possível, de ofício, a condenação do culpado nas penas correspondentes à Litigância de má-fé, senão vejamos:
PROCESSUAL CIVIL – PREQUESTIONAMENTO – AUSÊNCIA – SÚMULAS 282 E 356/STF – LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – IMPOSIÇÃO DE OFÍCIO – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO-CONFIGURADA – 1. Para a satisfação do prequestionamento é necessário que as questões nele abordadas tenham sido objeto de decisão no acórdão recorrido. 2. Desde a mudança efetivada no art. 18 do CPC (Lei nº 9.668/98) o Juiz pode, de ofício, impor multa por litigância de má-fé. 3. A nefasta prática do ajuizamento de diversas ações idênticas no intuito de burlar o Princípio do Juiz Natural configura a litigância improba. 4. A divergência jurisprudencial além de atender às formalidades do Parágrafo único do art. 541, do CPC, deve demonstrar a similitude fático-jurídica entre o acórdão recorrido e o paradigma. 5. Regimental improvido. [42]
Alhures, as regras de distribuição também são manipuladas mediante a utilização incorreta do instituto da distribuição por dependência, previsto no nosso Código Adjetivo Civil, em seu art. 253. Com a distribuição por dependência, passam a ser irrelevantes os critérios de alternatividade e igualdade, vez que é a própria parte quem direciona o processo ao juízo entendido como competente para o julgamento da causa, cabendo a este, contudo, o deferimento da distribuição por dependência ou não, conforme o direito.
De acordo com o inciso I, do artigo sobredito, distribuir-se-á por dependência toda causa que se relacionar por continência ou conexão, com outra já ajuizada. O magistrado deve ter muito cuidado ao apreciar pedido de distribuição por dependência baseada nesses institutos, vez que o deferimento fora das hipóteses legais configurará verdadeiro atentado ao princípio do juiz natural, eivando de nulidade todos os atos decisórios já praticados.
A conexão, com fulcro no art. 103, do Código de Processo Civil, acontecerá sempre que duas ou mais ações tiverem em comum o objeto ou a causa de pedir. Já a continência, com base no art. 104, do mesmo Diploma Legal, ocorrerá entre duas ou mais ações quando houver identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o objeto de uma abrange o da outra.
Todavia, inúmeros são os casos em que a conexão é deferida fora da previsão legal, por desatenção, ocasionando a reunião de processos em flagrante desobediência ao princípio do juiz natural. Eis alguns exemplos: - ação de revisão de alimentos e ação de divórcio; - ação de prestação de contas e ação de execução de duplicatas; - ação de separação de corpos e ação de investigação de paternidade; etc.
Quanto ao inciso II, do art. 253 do Código de Processo Civil, da mesma forma que o anterior, também tem sido utilizado de forma a possibilitar a escolha do magistrado que julgará o processo. Segundo este dispositivo, toda vez que houver desistência de uma demanda e for ajuizada outra com pedido reiterado, a distribuição deve ser realizada por dependência, mesmo que se trate de litisconsórcio.
Apenas a título de exemplo, imagine-se que um advogado possua diversos clientes aptos a integrarem uma mesma demanda na condição de litisconsórcios facultativos. Todavia, sendo sabedor de que apenas um dos juízes competentes para julgar o processo se filia à tese por ele defendida, o causídico ajuíza várias ações, com as mesmas causas de pedir e pedidos, só que com Requerentes fictícios, apenas com o fito de obter a distribuição de uma delas no juízo desejado. Após, desiste de todos os processos e, utilizando-se do que reza o inciso II, do art. 253 do CPC, ajuíza novamente a mesma ação que havia sido distribuída na vara pretendida, com a mesma parte fictícia, desta vez acompanhada por todos os clientes reais, na forma de litisconsórcio, com pedido de distribuição por dependência. Logo mais, tão logo ocorra o deferimento do pedido de distribuição por dependência, pede-se a desistência do autor fictício e prossegue-se o processo quanto aos demais autores reais, burlando-se assim a distribuição alternativa e igualitária, através da manipulação do nosso sistema processual.
Além dessas formas maquiavélicas [43] de escolher o juiz da causa, ainda existem outras mais simples, como, por exemplo, nos dizeres de Fredie Didier: "a postulação em períodos de recesso ou em plantões, com a ciência de qual tal juiz será o responsável pela decisão, quer com a burla ao sistema informatizado de distribuição". [44]
Como se pode perceber, os magistrados devem estar bem atentos para não permitirem uma distribuição por dependência fora dos padrões permitidos, travestida de legalidade; sendo inclusive aconselhável a condenação do improbus litigator, nas penas previstas no art. 18 do Código Adjetivo Civil, como forma de desestimular condutas dessa natureza, a bem do princípio da naturalidade do juízo.