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Direitos transindividuais do consumidor em juízo e os princípios fundamentais

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Agenda 04/02/2006 às 00:00

3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A TUTELA JURISDICIONAL DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS

            A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto um rol de princípios que visam a tutela de interesses, direitos e deveres individuais e coletivos. O legislador constituinte fez referência aos direitos do consumidor entre os direitos e as garantias fundamentais [67], e nos princípios gerais da atividade econômica [68], visando conceituar, proteger e garantir os direitos individuais ou coletivos daqueles que a lei infraconstitucional qualificou como vulneráveis e hipossuficientes.

            A sociedade de consumo é pedra fundamental do sistema capitalista, sendo que, pelo fato de ser a condição econômica critério prevalecente nas definições de poder, o consumidor, individual ou coletivamente considerado, acaba se tornando a parte mais vulnerável. "Isso naturalmente abre larga brecha na economia de mercado, que se esteia, em boa parte, na liberdade de consumo, que é a outra face da liberdade do tráfico mercantil fundada na pretensa lei da oferta e da procura" [69]. SARLET, a respeito do dever de proteção do Estado aos direitos e garantias individuais, diz:

            Verifica-se, contudo, que boa parte desses direitos em franco processo de reivindicação e desenvolvimento corresponde, na verdade, a facetas novas deduzidas do princípio da dignidade da pessoa humana, encontrando-se inteiramente vinculados (à exceção dos direitos de titularidade notadamente coletiva e difusa) à idéia da liberdade-autonomia e da proteção da vida e de outros bens fundamentais contra ingerências por parte do Estado e dos particulares. [70]

            A idéia, a princípio, é proteger o cidadão garantindo-lhe o pleno exercício de seus direitos fundamentais, seja a título individual ou coletivo, e conter o abuso do poder econômico, que faz com que esses direitos sejam preteridos em relação aos interesses do capital, que, segundo a doutrina consumerista, tem nos fornecedores de produtos e serviços o conhecimento técnico e o poderio financeiro que os consumidores dificilmente terão nas relações de consumo. Daí a necessidade de uma tutela protetiva ampla, garantidora dos direitos dos consumidores em sua plenitude, e ampliadora das possibilidades do acesso à justiça, seja em caráter individual ou coletivo.

            Mesmo com a necessidade de regulamentação por lei infraconstitucional, a inclusão dos direitos dos consumidores entre os direitos fundamentais e, portanto, como cláusula pétrea da CF, garantiu a sua permanência e efetividade no ordenamento jurídico brasileiro, eis que não é possível suprimí-la por meio de processo legislativo ordinário [71]. Em relação aos direitos do consumidor como um dos princípios gerais da atividade econômica, José Afonso da SILVA conceitua tal classe como "princípios de integração, porque todos estão dirigidos a resolver os problemas da marginalização regional ou social, [...] que é, também, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, III) [...]" [72].

            A defesa dos interesses coletivos em juízo pode se dar mediante substituição, que deve ser voluntária, como já aduzido, sob pena de ferir as garantias e direitos fundamentais do cidadão de acesso à justiça e o direito de não ser obrigado a associar-se ou permanecer associado, haja vista que, em certos casos, as associações têm legitimidade para substituir o consumidor individual em juízo. ARAÚJO FILHO diz que "não seria lícito conceber a completa subversão de princípios elementares do Direito para assegurar às entidades associativas (lato sensu) o poder desmedido de subjugar a defesa dos direitos subjetivos de seus associados" [73], o que significaria o desrespeito a outras garantias previstas na própria Constituição, como a da livre atuação dos próprios indivíduos, titulares dos direitos, pertinente em casos de direitos individuais homogêneos, em defesa de seus bens ou de sua propriedade [74].

            Mesmo se, por acaso, algum dia ocorrer a revogação da norma infraconstitucional (CDC), os direitos do consumidor, por atingirem patamar constitucional de cláusula pétrea, atingem o status de princípios e, como tais, devem ter prevalência num sopesamento com outras espécies de normas ou até mesmo de princípios divergentes. Nas palavras de Juarez FREITAS:

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            Recorre-se, em todas as hipóteses, expressa ou ocultamente, ao princípio da hierarquização, até mesmo ao lidar com princípios e regras de prioridade, tendo em vista as exigências teleológicas do sistema, que reclama – para além de relativismos niilistas – solução das controvérsias, de maneira a concretizar a máxima justiça possível em face da dialética e saudável coexistência dos princípios fundamentais. [75]

            Há que se levar em conta, nesses casos interpretativos, a regra da proporcionalidade. Nesse sentido, a lição de Luís Virgílio Afonso da SILVA, de que "regras expressam deveres definitivos e são aplicadas por meio de subsunção, princípios expressam deveres prima facie, cujo conteúdo definitivo somente é fixado após sopesamento com princípios colidentes", sendo estes últimos "mandamentos de otimização" [76].

            Sob este prisma, a proporcionalidade visa, nas questões referentes ao dever de proteção do Estado ao consumidor, uma proibição de insuficiência que venha a ignorar a disparidade entre o consumidor e sua condição de vulnerável em face da tutela jurisdicional de interesses consumeristas. Necessária, portanto, a tutela coletiva de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos no sentido de dar força a um grupo organizado e legalmente constituído frente aos atos lesivos praticados em relações de consumo.

            A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais tem "uma estrutura racionalmente definida, com subelementos independentes – a análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito – [...] que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia da [...] mera razoabilidade" [77]. Esta proporcionalidade pode ser entendida como integrante do ordenamento jurídico no art. 5º, § 2o da CF.

            Em relação ao dever de proteção, este tem como destinatário apenas o Estado, detentor da tutela jurisdicional, no que CANARIS descreve como "eficácia externa mediata":

            Por outro lado, fica simultaneamente claro por que isso afeta outros cidadãos e porque os direitos fundamentais produzem efeitos também nas relações interprivadas, e isto, de certo modo, por via oblíqua: precisamente porque o Estado ou o ordenamento jurídico estão, em princípio, obrigados a proteger um cidadão contra o outro também nas relações entre si. [78]

            As relações de consumo, além de terem caráter individual ou coletivo lato sensu, podem requerer a tutela jurisdicional contra atos praticados pelo Poder Público (consumidor de serviço público) ou por fornecedores de bens e serviços de caráter privado. O consumidor tem previsto no texto legal a sua vulnerabilidade, mas a sua hipossuficiência deve ser reconhecida em juízo, em face do não conhecimento técnico ou meramente cultural a respeito da relação de consumo invocada.

            Por ser sempre vulnerável, a defesa dos interesses do consumidor em juízo deve ser ampliada ao máximo, a fim de não existirem disparidades injustas no sopesamento entre regras e princípios que regerão o decisum. A inversão do ônus da prova nos processos que versem sobre relações de consumo é fruto direto da responsabilidade objetiva do fornecedor, seja este privado ou o próprio Estado, e, juntamente com a regra da proporcionalidade, deve ser aplicado nas decisões jurídicas a fim de garantir: o princípio da lealdade processual; do interesse público e a correlata subordinação das ações estatais ao princípio da dignidade da pessoa humana; da proporcionalidade e da adequação axiológica e da simultânea vedação de excesso e de inoperância, ou omissões causadoras de sacrifícios desnecessários e inadequados; da segurança jurídica; da legitimidade; da ampla e irrestrita tutela jurisdicional a fim de resguardar direitos lesados ou ameaçados de lesão. [79]


CONCLUSÃO

            Os direitos do consumidor sempre tiveram sua tutela generalizada no ordenamento jurídico brasileiro anterior ao advento do CDC, em 1990. Princípios reguladores do direito privado, como a pacta sunt servanda e o do foro do ato jurídico ser competente para solucionar litígios dele decorrentes passaram a ser preteridos em relação a deveres mais eficazes de proteção por parte do Estado, num reconhecimento da desigualdade existente nas relações de consumo e da vulnerabilidade do consumidor frente aos fornecedores de bens e serviços.

            Tratar desigualmente os desiguais é a regra do CDC, que prevê a condição de vulnerável e hipossuficiente do consumidor, regendo, inclusive, atos procedimentais em favor deste quando postulante em juízo. Dentre esses atos, a fim de ampliar ainda mais as garantias de defesa dos interesses do consumidor, o CDC permitiu a tutela coletiva, antes somente regulada pelas leis da Ação Popular e da Ação Civil Pública, definindo, pela primeira vez de maneira precisa, a distinção entre direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

            O CDC prevê a existência de interesses difusos quando pertencerem a um grupo indeterminável, forem indivisíveis e tiverem origem em uma mesma situação de fato, como, por exemplo, os espectadores de uma mesma propaganda enganosa. Já os interesses coletivos são aqueles pertencentes a um grupo determinável, mas com interesses indivisíveis, e frutos de uma relação jurídica comum, como, por exemplo, pessoas que assinam o contrato de adesão idêntico e buscam a desconstituição em juízo de uma cláusula abusiva. Por fim, os interesses individuais homogêneos são descritos no CDC como pertencentes a um grupo determinável, sendo de caráter divisível e com uma origem comum, como, por exemplo, pessoas que compram produtos defeituosos em razão de uma mesma propaganda enganosa.

            O procedimento judicial descrito no CDC alterou, inclusive, o texto original da LACP, mas a jurisprudência e a doutrina entendem que ambos se complementam, numa relação de subsidiariedade e interdependência. Assim, se no CDC está previsto somente a defesa em juízo dos interesses individuais homogêneos, e na LACP os interesses difusos e coletivos, ambos regem a ações que versem sobre quaisquer tipos de interesses coletivos lato sensu decorrentes de relação de consumo subsidiariamente.

            Nesses casos, o grupo legitimado para propor a ação deve ser legalmente constituído ou o ente público legitimado, como o MP, por exemplo, não sendo possível ao cidadão propor pessoalmente a ação em nome coletivo, por ilegitimatio ad causam. As ações civis públicas ou as ações coletivas têm por escopo a tutela de interesses coletivos em juízo, visando uma condenação da ré em indenizar, fazer ou deixar de fazer algo, quando procedente, em caráter genérico. Nos casos de interesses individuais homogêneos, cada lesado deverá propor liquidação de sentença e posterior execução individualmente a fim de garantir seu direito pessoal.

            A Ação Popular legitima o cidadão a propor a ação que versará sobre a tutela de direitos coletivos em juízo. Porém, não é cabível para direitos individuais homogêneos ou condenação a indenizar, servindo, somente, para desconstituir atos administrativos que venham a lesar interesses difusos e coletivos. Razão essa (interesse público) pela qual não são cobradas custas ou ônus sucumbenciais ao autor, exceto se comprovada a sua litigância de má-fé.

            Os direitos coletivos passaram a ter maior cobertura por parte do poder do Estado com o advento do CDC, protegendo, assim, os princípios que regem os indivíduos singular ou coletivamente, e que são cláusulas pétreas da CF. Um maior controle nas políticas de consumo e na ordem financeira estão nas mãos dos cidadãos, que têm o poder de invocar o Estado para proteger seus interesses frente às ameaças oriundas das relações mercantis da sociedade capitalista.

            John RAWLS, ao descrever os princípios da justiça, diz que "todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases da auto-estima – devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos" [80], e essa máxima encontra guarida na busca da mais ampla tutela aos interesses do vulnerável consumidor.


REFERÊNCIAS

            ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

            CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil, vol. I. Campinas: Servanda, 1999.

            FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 4a ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

            ______. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3a ed., São Paulo: Malheiros, 2004.

            MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos, conceito e legitimação para agir. São Paulo: RT, 2001.

            MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 16a ed., Saraiva: São Paulo, 2003.

            MILARÉ, Édis (coord.). Ação Civil Pública, Lei n. 7.347/1985 – 15 anos. 2a ed., São Paulo: RT, 2002.

            PECK, Patrícia. Direito digital. São Paulo: Saraiva, 2002.

            RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

            SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5a ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

            ______(org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

            SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9a ed., São Paulo: Malheiros, 1994.

            SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. in revista RT/Fasc. Civ., v. 798, ano 91, abril de 2002.

            THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, vol. I. Teoria geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 30a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999.

            ______. Direitos do consumidor, a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do Direito Civil e do Direito Processual Civil. 4a ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004.

Sobre o autor
Luiz Gustavo Lovato

advogado, especialista em Direito Privado pela UNIJUÍ, corretor de imóveis, mestrando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOVATO, Luiz Gustavo. Direitos transindividuais do consumidor em juízo e os princípios fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 946, 4 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7920. Acesso em: 23 nov. 2024.

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