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A Operação Carne Fraca à luz do princípio da publicidade

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Agenda 17/02/2020 às 21:40

2. REFLEXOS SoCIOECONÔMICOS

Um mercado em potencial foi colocado em xeque. Se analisarmos a trajetória do país nesse setor, temos o Brasil como segundo maior produtor de carne bovina do mundo e o maior exportador. A exportação de carne para a Europa iniciou-se no início dos anos 2000, mas somente no ano de 2016 conquistou a liberação para embarcar carne bovina in natura aos EUA - um dos mercados mais exigentes e rigorosos do mundo em termos de qualidade de produtos alimentícios.

Entre 2000 e 2016, as exportações de carne subiram de cerca de US$ 2 bilhões para aproximadamente US$ 14 bilhões. O setor vendeu para mais de 150 países no ano passado e agora deverá enfrentar uma série de impactos negativos suscitados pelo esquema de venda de carne adulterada.

Dias após a deflagração da “Operação Carne Fraca”, o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) divulgou dados apontando uma queda brusca nas exportações de carne brasileira. Segundo a pasta, o Brasil exportou US$ 74 mil do produto na terça-feira (21 de março de 2017). Antes do deflagre da operação, o valor médio das exportações no mês de março, por dia útil, foi de US$ 60 milhões, ou seja, um valor muito superior. De acordo com o ministério, no decorrer do mês de março, antes da operação, o valor diário das exportações variou de US$ 39 milhões a US$ 90 milhões.

 A reação foi imediata e ameaçou um mercado de US$ 3,5 bilhões em exportação. União Europeia, Coreia do Sul e China - principais países importadores - declararam restrições temporárias à entrada de carne brasileira. Estes juntos correspondem a 27% das exportações nacionais no ano de 2016. Além dos países supramencionados, Japão e Chile suspenderam a importação de produtos dessa categoria.

O modo de repercussão e divulgação das notícias, por sua vez precipitadas e carentes de precisão, colocou em risco a credibilidade de um mercado bilionário, gerando, portanto, um prejuízo incalculável e de difícil reparação ao país e aos empresários do setor, além de ameaçar uma afluência significativa de empregos, direta e indiretamente. A divulgação da operação pode ser vista por um “espectro” exagerado e desproporcional que pode provocar sequelas para o agronegócio brasileiro, especialmente no setor de carnes. Deve-se recordar que o setor é responsável por aproximadamente R$ 137,3 bilhões somente na produção de matérias-primas (Valor Bruto da Produção de 2017). As exportações beiram US$ 14 bilhões e são reservadas para cerca de 170 países.

Além disso, as empresas JBS S/A e BRF S/A sofreram fortes impactos em suas ações, fazendo com que perdessem bilhões em um único dia. A queda foi de 10,58% e 7,25%, respectivamente, no fechamento dos papéis gerando a perda de valor no mercado.


3. DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE DOS ATOS DO PODER PÚBLICO

Estão designados pela Constituição da República Federativa do Brasil no caput de seu artigo 37 como inerentes à Administração Pública os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência denominados princípios explícitos, determinando a obediência destes pelo Poder Público.

Neste artigo, discutiremos acerca do princípio da publicidade dos atos do Poder Público vinculado à Operação Carne Fraca.

Na esfera do Direito Administrativo, a publicidade é um requisito de eficácia e moralidade, configurando-se como a divulgação oficial dos atos para conhecimento do público em geral, além disso, o princípio impõe ao Poder Público o dever de agir com a maior transparência possível para que os administrados e os órgãos de controle tenham, a qualquer momento, conhecimento de suas práticas. Nesse sentido, define José dos Santos Carvalho Filho:

Outro princípio mencionado na Constituição é o da publicidade. Indica que os atos da Administração devem merecer a mais ampla divulgação possível entre os administrados, e isso porque constitui fundamento do princípio propiciar-lhes a possibilidade de controlar a legitimidade da conduta dos agentes administrativos. Só com a transparência dessa conduta é que poderão os indivíduos aquilatar a legalidade ou não dos atos e o grau de eficiência que se revestem. (CARVALHO FILHO, 2008, p. 20)

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Ne mesma perspectiva, segue o entendimento de Hely Lopes Meirelles:

Publicidade é a divulgação oficial do ato para conhecimento público e início de seus efeitos externos. Daí porque as leis, atos e contratos administrativos que produzem consequências jurídicas fora dos órgãos que os emitem exigem publicidade para adquirirem validade universal, isto é, perante as partes e terceiros. (MEIRELLES, 2010, p. 95-96)

O jurista justapõe, ainda, que se faz necessária a publicação dos atos através do órgão oficial da Administração. Não se considera somente o Diário Oficial como o órgão oficial, mas também os jornais contratados com esse objetivo além da afixação dos atos e leis municipais na sede da Prefeitura ou da Câmara.

Seguindo a mesma lógica, de acordo com o autor, não cabe a divulgação por órgãos de imprensa não escritos, como a televisão e o rádio, mesmo que em horário oficial, em decorrência da falta de segurança jurídica que esses meios propiciariam, seja em relação à existência, seja em relação ao próprio conteúdo de tais atos.

São também instituídos como ramificações do princípio da publicidade: o direito de acesso dos usuários a registros administrativos e atos de governo, capitulado no artigo 37, § 3º, II da Constituição Federal de 1988, o direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, previsto no artigo 5º, inciso XXXIII CF/88 e quanto ao direito à obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal, art. 5º inciso XXXIV, alínea “a”.

Vale ressaltar que não se confunde esse princípio com a propaganda ou divulgação pelos meios de comunicação em massa que também atendem pelo nome de “publicidade”. O exercício desta é facultado a Administração Pública, enquanto aquela é um dever constitucional.

Desse modo, o artigo 37, §1º da CF/88 preconiza que a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de cunho social sem promoção pessoal.

Pode-se, também, fazer a extração do princípio da publicidade do direito do povo em conhecer os atos praticados na Administração Pública, minuciosamente, para a plena execução do controle social, oriundo do exercício do poder democrático.


4. TRANSGRESSÃO AO JUÍZO DE RAZOABILIDADE

Todavia, são admitidas exceções ao princípio da publicidade, conforme o disposto no artigo 5º, inciso LX da Constituição Federal de 1988 "a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou interesse social o exigirem."

Observando a forma sensacionalista como foi divulgada a "Operação Carne Fraca", é notório que o princípio da publicidade foi ferido, considerando o alto interesse social, devendo, portanto, ser resguardado o sigilo de justiça, tendo em vista o juízo de razoabilidade exigido pela publicidade.

Ao declarar, publicamente, que os frigoríficos utilizavam substância para mascarar a deterioração da carne, o delegado responsável pela operação não levou em consideração os interesses da coletividade na exposição dos fatos, ocasionando uma série de impactos na economia do país devido à espetacularidade da notícia e ameaçando uma parcela considerável de empregos diretos e indiretos, sem que as autoridades tenham sido eficazes na dimensionalidade do alcance dos atos lesivos.

Seguem abaixos jurisprudências que podem ser encaixadas na Operação Carne Fraca, na medida em que as supostas irregularidades em relação aos produtos cárneos foram executadas com a anuência de, no mínimo, parte dos superiores hierárquicos corporativos:

TJ-PR - PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO Recursos Recurso Inominado RI 000088242201481600360 PR 0000882-42.2014.8.16.0036/0 (Acórdão) (TJ-PR)

Data de publicação: 24/04/2015

Ementa: ALIMENTO IMPRÓPRIO AO CONSUMO. RECLAMANTE ALEGA QUE ADQUIRIU CARNE BOVINA ESTRAGADA. ADUZ QUE SAIU DA ZONA RURAL ONDE MORA E APÓS PERCORRER CERCA DE VINTE KM ADQUIRIU O ALIMENTO QUE CONSTATOU IMPRÓPRIO AO CONSUMO QUANDO RETORNOU À SUA RESIDÊNCIA. INFORMA QUE TEVE QUE RETORNAR AO ESTABELECIMENTO E APÓS MUITA INSISTÊNCIA FOI RESSARCIDA DO VALOR PAGO PELO ALIMENTO. SOBREVEIO SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA QUE CONSIDEROU QUE A RECLAMADA (SUPERMERCADO) PRESTOU A DEVIDA ASSISTÊNCIA AO RESSARCIR A CONSUMIDORA E QUE O PRODUTO PERECÍVEL INAPTO AO CONSUMO CARACTERIZA-SE COMO RISCO INERENTE A VIDA EM SOCIEDADE. INSURGE-SE A RECLAMANTE PUGNANDO PELO ARBITRAMENTO DE MONTANTE INDENIZATÓRIO POR DANOS MORAIS, TENDO EM VISTA O COMETIMENTO DE ILÍCITO PELAS RECLAMADAS. TÍPICA RELAÇÃO DE CONSUMO, POIS AS PARTES ENQUADRAM-SE NOS CONCEITOS DE CONSUMIDOR E FORNECEDOR CONSTANTES NOS ARTIGOS 2º e 3º DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, SENDO ASSEGURADO AO CONSUMIDOR A APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA, PREVISTO NO ART.6º, VIII, DO CDC. EVIDENCIA-SE NOS AUTOS QUE O ALIMENTO ERA IMPRÓPRIO AO CONSUMO. DESTAQUE-SE QUE O SISTEMA CONSUMERISTA NÃO PERMITE A COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTOS DETERIORADOS E NOCIVOS À SAÚDE, CONFORME PREVISÃO DO ART.18, § 6º, INCISO II DO CDC, SENDO QUE A LEGISLAÇÃO CONSUMERISTA VISA COIBIR ESTA PRÁTICA. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO EVIDENCIADA. PRODUTO IMPRÓPRIO PARA CONSUMO. FATO QUE POR SI SÓ TRAZ SENSAÇÃO DE INSEGURANÇA QUE ULTRAPASSA A ESFERA DO MERO DISSABOR COTIDIANO. NEXO CAUSAL PRESENTE. DANO MORAL CONFIGURADO, NOS TERMOS DO ENUNCIADO 8.2 DAS (TJPR - 1ª Turma Recursal - 0000882-42.2014.8.16.0036/0 - São José dos Pinhais - Rel.: Fernando Swain Ganem - - J. 22.04.2015)

TJ-RS - Recurso Cível 71005131099 RS (TJ-RS)

Data de publicação: 14/07/2015

RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. CARNE BOVINA IMPRÓPRIA PARA O CONSUMO. INGESTÃO DO PRODUTO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANOS MORAIS OCORRENTES. QUANTUM MAJORADO. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. Demanda em que a autora objetiva indenização por danos morais e materiais em razão de ingestão de alimento impróprio para consumo. Autora que recorre postulando a majoração dos danos morais. Recorre o réu, por sua vez, requerendo a improcedência do pedido. Laudo pericial (fls. 14/16) e fotos do produto (fl. 18) que constatam a existência de substâncias impróprias para consumo no produto adquirido no estabelecimento do réu. O requerido não se desincumbiu do ônus que lhe competia, na forma do artigo 333, inciso II, do CPC, uma vez que não juntou aos autos qualquer documento que demonstrasse a procedência da carne ou os cuidados realizados para a conservação do produto. Tratando-se de fornecimento de produto in natura, a responsabilidade pela ocorrência de vício do produto cabe ao réu que comercializa o produto, nos termos do artigo 18 do CDC. Evidenciado o prejuízo na qualidade do alimento, deve indenizar os prejuízos materiais e morais. O quantum indenizatório arbitrado na sentença (R$ 1.500,00) comporta majoração para R$ 3.000,00, considerando as peculiaridades do caso, o caráter punitivo e pedagógico da medida e as decisões em casos similares. RECURSO DO RÉU IMPROVIDO. RECURSO DA AUTORA PROVIDO. (Recurso Cível Nº 71005131099, Segunda... Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Cintia Dossin Bigolin, Julgado em 08/07/2015).

(TJ-RS - Recurso Cível: 71005131099 RS, Relator: Cintia Dossin Bigolin, Data de Julgamento: 08/07/2015, Segunda Turma Recursal Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 14/07/2015)

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRANI, Daniela. A Operação Carne Fraca à luz do princípio da publicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6074, 17 fev. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79550. Acesso em: 22 dez. 2024.

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