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Considerações acerca da incidência na teoria de Pontes de Miranda

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Agenda 11/02/2006 às 00:00

5. SUPORTE FÁTICO HIPOTÉTICO E PRECEITO ABSTRATO

Como já restou demonstrado, o suporte fático hipotético e as suas conseqüências são conceitos extraídos a partir da realidade fática. É imanente.

Esta imanência pode ter por base diversas categorias de fatos do mundo ou até outros fatos jurídicos. De forma analítica, MARCOS BERNANDES DE MELLO os enumera, explica-os e exemplifica-os.

À guisa de ilustração, citam-se as modalidades fáticas que podem vir a ser delimitadas no suporte fático hipotético. Ei-los: fatos da natureza ou de animal (e. g. nascimento); a conduta humana; os dados psíquicos (e. g. intenção negocial); o elemento valorativo (e. g. malícia); a probabilidade (e. g lucros cessantes); os fatos do universo jurídico (e. g. suporte fático da pensão por morte do INSS); a causalidade física (e. g., no ilícito, relação entre o dano e seu causador); o tempo cronológico; os elementos positivos – possuem existência espaço-temporal; elementos negativos (e. g. a ausência). 53

O suporte fático hipotético é composto, também, de elementos subjetivos – referência do fato a determinados sujeitos de direito – e de elementos objetivos – os bens da vida. 54

Vê-se assim a complexidade que o suporte fático hipotético possui. Esta complexidade decorre da multiplicidade do real. Com isso, compõe este conceito do mundo do pensamento o núcleo, o elemento complementar e o elemento integrativo. O núcleo é formado pelo elemento cérnico – estipula a configuração final do suporte fático, fixando no tempo a sua concreção – 55 e pelo elemento completante – completa o núcleo do suporte fático. 56 Integra o elemento completante o elemento subjetivo e, quando ocorre, o elemento objetivo. A ausência do núcleo do suporte fático implica sua inexistência.

No que respeita aos elementos complementares, tem-se que estes não completam o núcleo, mas o complementam, conferindo-lhe, quando se fizer necessário, sua perfeição. Ocorre este componente do suporte fático hipotético quando da definição de ato jurídico lato sensu – ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico. A ausência do elemento complementar implica deficiência do suporte fático.

Por último, o elemento integrativo. Este ocorre apenas em relação a alguns suportes fáticos de negócio jurídico. Não compõe o suporte fático do negócio jurídico. 57 Entretanto, possibilita que o negócio jurídico, além da sua conseqüência necessária, irradie certo efeito que se soma à sua eficácia normal, como no caso do registro de acordo de transmissão para se efetivar a transmissão da propriedade imobiliária.

A delimitação do suporte fático é extremamente importante na teoria ponteana, tanto que LOURIVAL VILANOVA afirma: "creio que o que tem incidência é a hipótese fática (o pressuposto): é ela que tem função juridicizadora (ou a simétrica, desjuridicizadora) dos fatos." 58

Em sentido diverso, argumenta TORQUATO CASTRO, como se colhe do seguinte excerto: "a norma é, assim, igualmente constitutiva da juridicização do fato e da juridicização da conseqüência que dela dimana". 59 Resta expresso, neste autor, que a incidência é da integralidade da norma jurídica e não apenas de parte dela.

No que concerne ao preceito, tem-se que ele se manifesta no plano conceitual, no mundo do pensamento, de forma abstrata, e no plano material, na sua configuração concreta. No preceito, encontra-se a situação jurídica. A partir dela produzir-se-ão as outras eficácias específicas, a saber: a situação jurídica simples ou unissubjetiva, as situações jurídicas complexas unilaterais e as situações jurídicas complexas multilaterais (ou a relação jurídica). Esta última é a mais importante eficácia jurídica. A relação jurídica possui por característica a intersubjetividade jurídica, a correspectividade entre direito ⇆ dever e das outras categorias eficaciais, dentre elas: pretensões ⇆ obrigações; ações ⇆ situação de acionado; exceções ⇆ situação de excepto; a pena por um crime etc. Deve-se registrar, por oportuno, que LOURIVAL VILANOVA defende que a apenas a relação jurídica (situação jurídica complexa multilateral) é a eficácia do fato jurídico. 60

A estipulação do preceito possui certa arbitrariedade, mas esta é delimitada pelos valores culturais da coletividade, pelos valores absolutos da juridicidade (justiça, paz, segurança, ordem etc.), e pela natureza das coisas (aqui entra a incapacidade de se estipular o impossível, o necessário, bem como o respeito à dignidade humana). 61

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Resta estabelecido que a incidência, quando ocorre, é da norma jurídica e não de parte dela. Como afirma PONTES DE MIRANDA: "à lei é essencial colorir fatos, tornando-os fatos do mundo jurídico e determinando-lhes os efeitos (eficácia deles)". 62


6. EFICÁCIA LEGAL

A lei é um tipo especial de fato jurídico. É produzida pelo direito. Seu conteúdo, como visto, é formado por conceitos que delimitam o suporte fático hipotético e as conseqüências, formalizadas no preceito. Sua eficácia primordial é a incidência.

Entretanto, a regra jurídica, para incidir, necessita estar em vigor. Não só. Pode a lei está vigente e não incidir pois a situação nela prevista não se configurou. Desta feita, a vigência confere à lei a aptidão para incidir. 63 "A regra jurídica cai, incide sobre o fato (cadere, cidere). Os seus contatos com os fatos são impressão, incidência". 64

Na realidade, quando os fatos do mundo se adequam ao seu correlato no mundo do pensamento, na secção do jurídico, há a transformação do fato (ou suporte fático concreto) em fato jurídico e este é acompanhado dos efeitos que lhe são inerentes. Em outras palavras, com a incidência o conceito estipulado da norma denominado. suporte fático hipotético cai sobre o substrato fático que ocorre no mundo material e o transforma em fato jurídico. Este, por sua vez, produzirá os efeitos estabelecidos no preceito abstrato. Eis a juridicização. Saliente-se, no entanto, que a incidência pode produzir outros efeitos, como a desjuridicização e a pré-exclusão de juridicidade etc. Estes efeitos serão objeto de pequena digressão, logo à frente.

A função da incidência é constituir o mundo jurídico dando-lhe os seus contornos, como já visto. Constituir pode implicar aumento, diminuição ou reformulação. Saliente-se que, como assinala LUDWIG WITTGENSTEIN, ícone do positivismo lógico no Círculo de Viena, "1.1. o mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas". 65 Esta também é a visão de PONTES DE MIRANDA quando afirma:

"O mundo compõe-se de fatos, em que novos fatos se dão. O mundo jurídico compõe-se de fatos jurídicos. Os fatos, que se passam no mundo jurídico, passam-se no mundo; portanto: são." 66

A incidência não tem o condão de dar uma qualidade especial ao fato, mas quantificá-lo, até porque "a qualidade é apenas caso particular de quantidade". 67 Na realidade, para PONTES DE MIRANDA, o qualitativo é o que ainda não fora quantificado. PONTES DE MIRANDA, citando GALILEU GALILEI, na epígrafe do seu monumento Sistema de Ciência Positiva do Direito, enuncia: "mede o que é mensurável e torna mensurável o que ainda não é". 68 Em outra passagem acrescenta:

"Nas realidades, o que vemos é o concreto, isto é, - matéria em que incide grande número de leis. Mas, se a complexidade nos dá a ilusão do irredutivelmente qualitativo, a simplificação revela-nos a quantitatividade dos fatos". 69

Neste caso, o fato é jurídico. O direito confere ao fato do mundo uma nova dignidade, nova característica. Encontra-se no plano do ser. Se não fosse, seria impossível falar-se em mundo jurídico. Este não é uma abstração. Existe e compõe junto com os demais – físico, químico, biológico, social – a totalidade do mundo real.

Não é à toa que ALFREDO AUGUSTO BECKER 70, GERALDO ATALIBA 71 e JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES 72 vão comparar a incidência a uma descarga eletromagnética que ao passar por uma barra de ferro a transforma em um ímã. Assim como a barra de ferro muda sua característica, agregando novas propriedades, o suporte fático concreto, após a incidência, sofre transformação em sua essência. Percebe-se aqui o naturalismo com que PONTES DE MIRANDA e seus seguidores vislumbram a criação do mundo jurídico.


7. CARACTERÍSTICA DA INCIDÊNCIA

A incidência não é característica da regra jurídica, mas efeito peculiar da norma jurídica vigente, seja ela cogente, seja não-cogente. Não incide a norma religiosa, a norma moral, a norma de etiqueta etc., pois estas dependem de aceitação do destinatário, como explica MARCOS BERNARDES DE MELLO. 73 Ademais, para esta concepção, a incidência não necessita do relato lingüístico, como preconiza GABRIEL IVO. 74

Caracteriza a incidência a sua incondicionalidade (ou infalibilidade) – ela dar-se, independentemente da vontade do destinatário – e a sua inesgotabilidade – a incidência dar-se-á todas as vezes que o suporte fático concreto se materializar, não se esgotando por ter ocorrido uma vez. Quando a lei fixa fato único permanece inesgotável. Neste caso, o que se esgotou não foi a incidência, mas sim o fático.

Além disso, a incidência não falha. Configurando-se no mundo os elementos do suporte fático hipotético, a lei incide. Neste sentido, PONTES DE MIRANDA vaticina: "a incidência das regras jurídicas não falha; o que falha é o atendimento a ela". 75 No mesmo sentido, mas em outra obra: "a incidência das regras jurídicas é infalível" 76. Outra característica da incidência é que ela é automática, ou seja, realiza-se por si. Prescinde do homem, do aplicador. 77 Aqui se nota o caráter necessário da incidência. Tal qual a lei natural, a regra jurídica produz seu efeito – incidência – sem precisar da atuação humana.

As críticas veiculadas a esta construção são oriundas dos adeptos do pensamento kelseniano. Este autor não trabalha com o fenômeno da incidência, mas apenas com o da aplicação. E a aplicação da norma implica em criação de uma nova norma. É o que se colhe deste trecho:

"Portanto, a aplicação de uma norma geral a um caso concreto consiste na produção de uma norma individual, na individualização (ou concretização) da norma geral." 78

Em PONTES DE MIRANDA, a aplicação pode ou não coincidir com o que incidiu. Pode haver falha, mas do aplicador, não da incidência, que é fenômeno que ocorre independentemente do homem.

Não se pode, entretanto, pensar que a incidência dá-se a partir da textualidade. PONTES DE MIRANDA nunca foi legalista. O mundo do pensamento, onde se encontram os conceitos fundamentais do direito, da física, da biologia etc., não é perene. Muda. Assim como muda a realidade. Esta advertência foi feita por PONTES DE MIRANDA, como se passa a transcrever:

"Os fenômenos que o Direito estuda são naturais: transformam-se, evoluem, como o próprio homem. Não há dois homens absolutamente iguais; não há ninguém que em momentos sucessivos seja absolutamente igual ao que era. As diferenças infinitesimais não são menos diferenças de que as grandes e visíveis, as gritantes e mensuráveis. Hoje, o artigo tal do Código A pode não exprimir, exatamente, o que no ano passado, exprimia; porque não diz ele o que está nas palavras, mas algo de mutável que as palavras tentaram dizer. Toda a codificação é o pródomo de um fracasso: pretende fixar, parar, fotografar, não no espaço, mas no tempo; e muda o próprio objeto, de modo que há de olhar a realidade de hoje, que é adulta, e o retrato de outrora, para descobrir, não mais a imagem exata, e sim os traços que indiquem identidade". 79

Desta forma, o real acaba inovando o mundo do pensamento, estipulando sentido atualizado ao que fora estabelecido pelo legislador. As palavras são as mesmas, mas os conceitos, que são reflexos do real, mudam. Neste passo, a regra jurídica se renova, adequando-se às novas realidades. Com isso, a incidência acaba reconstruindo o mundo jurídico, mediante a evolução dos conceitos que recai sobre o mundo real.


8. EFEITOS DA INCIDÊNCIA

Consoante restou assentado na obra de MARCOS BERNARDES DE MELLO, são efeitos da incidência a juridicização, a pré-exclusão de juridicidade, a invalidação, a deseficacização e a desjuridicização. 80

A juridicização tem por função criar fatos jurídicos. No que concerne à pré-exclusão de juridicidade, a incidência teria por efeito impedir a juridicização ou evitar a juridicização em um determinado sentido. Quanto à invalidação, a eficácia da incidência tem o condão de tornar o ato prático em desrespeito às regras cogentes como não válido ou ineficaz. Aqui atinge o plano da validade ou da eficácia. A deseficacização retira o efeito produzido por outro fato jurídico. Em relação à desjuridicização, esta tem o condão de retirar o fato jurídico do mundo jurídico.

A estes efeitos lançou MARCELO NEVES crítica, no sentido de que apenas a juridicização seria efeito da incidência. As demais seriam conseqüências do fato jurídico. Neste sentido vaticina:

"Na realidade, portanto, é completamente falso contraporem-se as normas jurídicas cuja incidência provoca a juridicização do suporte fático àquelas cuja incidência importa a desjuridicização de um fato jurídico ou a pré-exclusão de juridicidade de um suporte fático. A incidência da norma terá sempre o efeito imediato de juridicizar um suporte fático qualquer. O fato jurídico daí resultante é que poderá ser desjuridicizante de outros fatos jurídicos ou pré-excludente da juridicização de outros suportes fáticos, como também apenas invalidante ou deseficacizante de outros fatos jurídicos. Nenhuma dessas conseqüências realizar-se-á sem a intermediação de um fato jurídico." 81

Como ficou assente, é papel da regra jurídica dar os contornos do mundo jurídico em sua manifestação existencial. Este mundo se desenvolve em três planos: existência, validade e eficácia. Além disso, estipula, abstratamente, a eficácia do fato jurídico, também denominado eficácia jurídica. Mais. O mundo do pensamento reproduz, no plano das idéias, o mundo jurídico.

O problema encontrado por MARCELO NEVES decorre da premissa estipulada por LOURIVAL VILANOVA, anteriormente citada, de que a incidência é só do suporte fático hipotético e não dele e do preceito abstrato. Com isso vislumbra que o preceito só existe na materialidade e não antes, na idealidade. Tudo que ingressa no mundo jurídico já esteve desenhado no mundo das idéias, do pensamento objetivo. Frise-se. A incidência é da regra jurídica, que é formada por um suporte fático hipotético e por um preceito.

Assim, pode-se objetar às conclusões do autor acima citado.

A pré-exclusão de juridicidade tem o condão de "não permitir a entrada no mundo jurídico de fatos que, sem ela, se tornariam jurídicos, porque suporte fáctico de outra norma". 82 Aqui, a regra, mediante a incidência, inova o mundo jurídico, demarcando um fato jurídico, a priori, ilícito, como lícito, como é o caso da configuração da legítima defesa. Deve-se salientar que a conseqüência do fato jurídico é produzir efeitos no mundo jurídico – situação jurídica ou apenas relação jurídica – e não impedir que outro fato jurídico se configure – pré-exclusão de juridicidade – ou, ainda, retirar outro fato jurídico do mundo jurídico – no caso da desjuridicização (e. g. revogação de doação). Este papel é da incidência.

Com relação à deseficacização, a lei define o suporte fático da decadência e estipula sua conseqüência. Quem deseficaciza é a incidência da regra jurídica (SF → P) e não o fato jurídico.

Da mesma forma, ocorre com o ato ilícito invalidante. O suporte fático hipotético fixa o ilícito e o preceito abstrato estabelece a conseqüência, no caso a invalidação. Mais uma vez, percebe-se que a invalidação é produto da incidência e não do fato jurídico. Não é um fato jurídico que vai estipular que outro é inválido. Se assim fosse teríamos fatos jurídicos hierarquicamente superiores a outros fatos jurídicos. A hierarquia não se dá entre fatos, mas entre regras jurídicas.

Mediante a incidência, o mundo jurídico é constituído e este se manifesta em três planos distintos, como já mencionado, todavia interligados.

O primeiro é o plano da existência, onde entra a totalidade dos suportes fáticos suficientes que sofreram a incidência da lei. Neste plano ingressam os fatos jurídicos lato sensu lícitos e os ilícitos.

No plano da validade, apenas passam os fatos jurídicos cujo suporte fático possui os elementos complementares. Aqui se exige a suficiência e a eficiência do suporte fático. Neste plano apenas passam os atos jurídicos lato sensu – o ato jurídico stricto sensu e o negócio jurídico.

O terceiro plano é denominado eficácia. Nele os fatos jurídicos irão produzir os seus regulares efeitos.

Sobre o autor
Beclaute Oliveira Silva

Doutor em Direito (UFPE). Mestre em Direito (UFAL). Professor da FDA/UFAL. Membro do IBDP e da ABDPC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Beclaute Oliveira. Considerações acerca da incidência na teoria de Pontes de Miranda. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 955, 11 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7960. Acesso em: 16 nov. 2024.

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