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Aspectos dogmáticos da(s) teoria(s) da imputação objetiva

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Agenda 01/03/2006 às 00:00

6 A IMPUTAÇÃO OBJETIVA DE GÜNTHER JAKOBS

6.1 FUNDAMENTAÇÃO

Muito já se falou sobre a missão do Direito Penal. Para Nilo Batista é a proteção dos bens jurídicos "através da cominação, aplicação e execução da pena". [161]

Segundo Günther Jakobs, essa é uma visão ultrapassada. A missão do Direito Penal, para o jusrista alemão, não é a proteção dos bens jurídicos [162] já que estes estão constantemente expostos. Para ele, a verdadeira missão é "garantir a identidade social" [163] e, para isso, é necessário que as violações da norma sejam punidas.

Para o autor, se o fim do Direito Penal fosse a proteção dos bens jurídicos não haveria como existir legalmente qualquer contato social. No sistema de Günther Jakobs a pena tem a missão de reafirmar a vigência da norma. O jurista parte do princípio de que a sociedade tem a expectativa de que cada pessoa cumprirá o papel que exerce dentro de um padrão pré-estabelecido.

A função da pena, como prevenção geral positiva que visa o exercício de reconhecimento da norma, é exposta com os seguintes aspectos: confiança na vigência da norma, apesar de sua eventual violação; exercício da fidelidade ao Direito, que é a conexão entre o comportamento e o dever de assumir seus custos e, exercício da aceitação de suas conseqüências, que é o reconhecimento de aceitar os custos e conseqüências penais, apesar de apreendida, pela sua violação. Estes aspectos caracterizam o que se denomina de prevenção geral mediante o exercício de reconhecimento da norma, ou seja, a prevenção geral positiva, não intimidatória. [164]

Günther Jakobs defende que a imputação objetiva do comportamento é imputação vinculada a uma determinada sociedade concretamente considerada. Em outras palavras, a sociedade deve determinar quais os riscos que devem ser suportados por ela e, por conseqüência, os que devem ser punidos. Há condutas que, mesmo lesionando bens jurídicos, devem ser suportadas para que não haja uma estagnação das relações sociais.

A aplicação da teoria da imputação objetiva de Günther Jakobs se dá tanto no âmbito dos delitos culposos como nos dolosos.

Günther Jakobs subdivide as normas em dois grupos: as normas ao redor (ou entorno) do social, e as normas diretamente sociais. [165]

As primeiras são aquelas que "se estabilizam por si mesmas, não permitindo qualquer contrariedade, trazendo para quem as viola uma poena naturalis". [166] São normas que observam as leis da lógica e da matemática. Exemplo: dois mais dois são quatro, o ser humano não consegue viver sem oxigênio. Ou seja, são normas que não precisam de tutela jurídico-penal.

As normas diretamente sociais são aquelas em que "a violação não atinge a pessoa que a infringiu ou o grupo, pois as demais pessoas continuam a cumpri-las". [168] Para manter a sociedade em harmonia, as ações que violarem essas normas são sancionadas com uma pena.

6.2 CRITÉRIOS DE IMPUTAÇÃO

Günther Jakobs divide a imputação em dois níveis: o primeiro é a imputação das condutas ou dos comportamentos e o segundo diz respeito à imputação objetiva do resultado. [167]

"A imputação objetiva do comportamento é imputação vinculada a uma sociedade concretamente considerada". [169] O resultado alcançado por uma pessoa e que seja socialmente relevante será interpretado com a afirmação do material, isto é, da imputação objetiva do comportamento.

Sem este material de interpretação, o resultado não é mais do que um conglomerado naturalista, na melhor das hipóteses, algo que o indivíduo perseguia, um curso causal, ou um curso causal psiquicamente sobredeterminado; em todo caso, não é mais que um amálgama heterogêneo de dados que não adquiriram significado social algum. [170]

A imputação do resultado é a relação de uma conduta típica e um resultado por meio de leis gerais específicas ou ditadas pela experiência. Sendo assim, na imputação do resultado irá se constatar se a produção do resultado tem relação com a realização do risco típico ou não. [171]

Primeiramente há a qualificação do comportamento como típico (o que seria a imputação do comportamento) para então, no âmbito dos delitos de resultado, coconstatr-se que o resultado produzido "se explica precisamente pelo comportamento imputável (imputação objetiva do resultado)". [172]

Dentro do primeiro nível o doutrinador propõe quatro critérios de imputação que devem ser observados.

6.2.1 O risco permitido

Já foi apontado acima que qualquer contato social cria um risco mesmo com os indivíduos agindo de boa-fé. Da mesma forma restou demonstrada a visão de Günther Jakobs acerca do tema, concluindo que se todos os contatos sociais fossem evitados teríamos uma estagnação no convívio social. [173] Para ilustrar o doutrinador cita os exemplos do tráfego de veículos, de um aperto de mão que pode transmitir uma infecção, etc.

O risco permitido para ele, nada mais é do que "o estado normal de interação, ou seja, o status quo de liberdades de atuação vigentes, desvinculado da ponderação de interesses que deu lugar ao seu estabelecimento". [174] Ou, em outras palavras, o risco permitido seria aquele "vinculado à configuração da sociedade"; seria uma concreção da adequação social. [175] Resumindo: a vida social não se configura sem a permissão de certos riscos.

O autor descarta a configuração do risco permitido como resultado do cálculo entre custos e benefícios. Günther Jakobs prefere usar como fonte do risco permitido a configuração da sociedade, uma vez que cada uma tem suas particularidades (influências históricas, culturais, geográficas) que irão tornar um risco qualquer em um risco permitido ou proibido.

Dentro do contexto o doutrinador aduz que o risco permitido é necessário para a liberdade de cada um dentro da sociedade. Entretanto, a contraprestação desse benefício de liberdade não deve ser suportada por indivíduos determináveis. Em outras palavras, todas as vítimas de condutas que geram um risco permitido devem ser anônimas. Ilustrando a explanação o Günther Jakobs cita o seguinte exemplo: "se ex ante se conhecesse a identidade das vítimas que o tráfego viário vai ocasionar num determinado dia, seria impossível que nesse dia o tráfego se desenvolvesse como atividade juridicamente permitida". Só pode haver um risco permitido se as vítimas potenciais sejam, além de vítimas, potenciais beneficiárias que a atividade proporcione. O risco deixa de ser permitido quando a própria norma o define assim. O tráfego de veículos é permitido desde que respeitadas as normas de trânsito. [176]

É eficaz a distinção do autor entre risco permitido e causas de justificação. Para Günther Jakobs "um comportamento que gera um risco permitido é considerado socialmente normal, não porque no caso concreto esteja tolerado em virtude do contexto em que se encontra, mas porque nessa configuração é aceito de modo natural". [177] Os comportamentos que criam riscos permitidos não são típicos. Não há falar em causas de justificação já que a tipicidade não é afirmada.

O autor conclui que comportamentos que ensejam riscos permitidos não estão dentro de um contexto especial para serem tolerados. Por outro lado, é isso que ocorre no âmbito da justificação onde comportamentos que per si são perturbadores restam admitidos.

Um indivíduo que se comporta dentro de padrões estabelecidos pela norma ou pela lex artis [178] está dentro dos limites do risco permitido. Günther Jakobs cita que há âmbitos de vida que não podem ser regularizados por um padrão de comportamento. Cita o exemplo do médico em que normas acabariam por impedir o desenvolvimento de novas técnicas e procedimentos para a cura de pacientes. Nesse sentido o padrão de comportamento não estaria limitado por normas de direito e sim pela lex artis. É o caso das normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) e das associações profissionais como a OAB, CREA (Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia) e CRM (Conselho Regional de Medicina). Dessa forma, o comportamento apresenta-se atípico para o Direito Penal.

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Se alguém cria um risco permitido não haverá sequer tentativa. Na problemática do risco permitido há dois problemas cruciais: por um lado a grande relevância que Jakobs concede às normas extrapenais e às regras da técnica para a determinação do permitido numa determinada sociedade, e a relevância dos ‘conhecimentos especiais’de que disponha o autor. [179]

Destarte, existem situações em que o indivíduo não cumpre as determinações da norma desviando sua conduta do padrão esperado, porém tomando cuidados ou medidas de segurança especiais não exigidas pelo Direito, de forma a compensar esse comportamento perigoso. Mas, essas compensações tornariam a conduta do autor que não se encontra dentro dos padrões de risco permitido, adequadas?

Segundo Günther Jakobs, as condutas que são proibidas pelas normas de Direito não admitem compensações. Assim, mesmo quando são tomados cuidados especiais, o risco é proibido. [180]

O autor cita o exemplo do motorista experiente que, conduzindo um automóvel dentro do limite de velocidade, mesmo que ligeiramente ébrio, induz maior segurança do que um principiante inseguro que não comete erro algum. O comportamento do motorista experiente não é permitido pois a proibição da colocação abstrata em perigo discrimina não um determinado nível de risco mas sim um tipo de comportamento. O autor aduz ainda que "no âmbito do regulado pelo Direito, não existe um grau fixo de permissão geral para levar a cabo colocações em perigo, mas a permissão está vinculada à configuração do comportamento". [181]

Quando não há normas jurídicas a questão difere do seguinte modo: as demais normas determinam um padrão que se pode alcançar de qualquer maneira, tanto levando-se em conta o descrito na norma, como de maneira diversa.

Para ilustar sua explanação o doutrinador apresenta o exemplo do indivíduo que constrói um muro com espessura menor que a recomendada, porém com um material mais resistente.

Nessa seara encontra-se a discussão doutrinária mencionada anteriormente: "Quem decidirá quando um comportamento é do tipo que se proíbe ordinariamente e quando concorrem condições ideais para sua realização"? [182]

Para o autor não prospera atribuir essa decisão ao juízo do homem cuidadoso. Günther Jakobs analisa duas hipóteses: a) na primeira, a qual o doutrinador discorda, coloca-se no lugar do autor que criou o risco uma pessoa dita expert na matéria relativa ao caso concreto e que deve estar preparado por todos os conhecimentos e aptidões especiais do autor. O doutrinador, de forma pejorativa, fala que dessa forma estaríamos diante de um verdadeiro monstro, posto que jamais haverão dois sujeitos completamente semelhantes; b) a segunda hipótese diz respeito a administração de padrões objetivos em suas distintas concreções, predeterminados pela sociedade, e, inclusive, às vezes estabelecidos juridicamente.

Segundo o doutrinador a valoração do risco é relativa ao papel que o autor está exercendo. Dessa forma um médico que não utiliza materiais esterilizados para realizar um curativo não está exercendo seu papel de acordo com as expectativas da sociedade além de não seguir os procedimentos de sua lex artis, configurando esse risco como proibido. [183]

O autor da conduta que não observou as normas jurídicas criou um risco proibido e, a princípio, uma ação típica. Nos casos em que não existirem normas jurídicas leva-se em consideração o juízo do portador de um papel para saber se a ação foi criadora de um risco especial e se expôs alguém a um risco que exceda o cotidianamente inevitável. Günther Jakobs tenta elucidar a questão através do seguinte exemplo: Um médico, na realização de um curativo, deve esterilizar o local do ferimento utilizando materiais limpos a fim de evitar infecções na área machucada. Esse é o papel que a sociedade espera de um médico. Por outro lado, não espera-se o mesmo comportamento de uma mãe que faz um curativo com tecido para estancar o ferimento de seu filho. No caso em tela a mãe estará agindo dentro do risco permitido porque não tem conhecimentos especiais de primeiros socorros, principalmente se inserido em uma sociedade pouco desenvolvida e sem noções de higiene básica como em países pobres. [184]

Günther Jakobs assevera "que a um único risco descrito de modo naturalista não necessariamente lhe corresponde, por sua vez, um único risco permitido". [185] Podem haver várias permissões de riscos diferentes quanto papéis diversos existam em que se possa administrar o risco de modo socialmente adequado. A figura do expert é aplicada quando o papel exige certa especialidade, como por exemplo no caso de um engenheiro químico ou um neurocirurgião no desempenho de suas funções.

A figura do expert é aplicada quando o papel exige certa especialidade, como por exemplo no caso de um engenheiro químico ou um neurocirurgião no desempenho de suas funções.

É exatamente no âmbito do risco permitido que se encontra o ponto mais controverso da teoria da imputação do autor alemão: "ele descarta, na análise do risco, quaisquer conhecimentos especiais do autor (obviamente quando o papel exercido não exigir tais conhecimentos) que possam ajudá-lo a prever o resultado lesivo". [186] O fundamento apresentado pelo autor é o de que, nas situações em que a sociedade não exigir os conhecimentos especiais para o exercício do papel em questão, não é obrigação de ninguém possuí-los. E para ilustrar sua fundamentação, utiliza-se do exemplo do engenheiro, que ao alugar um automóvel, descobre, através de seus conhecimentos técnicos específicos, que os freios falharão em breve. Apesar disso, devolve o veículo ao locatário e o próximo cliente, ao usar o carro, sofre um acidente. Para o autor, o engenheiro não violou o seu papel e, no caso em tela, seu comportamento não ultrapassou o nível do risco permitido. O autor aduz que "ninguém espera de quem aluga um automóvel que tenha conhecimentos em matérias técnicas". [187]

Então, na visão do jurista, ninguém tem obrigação de adquirir ou manter os conhecimentos especiais sobre algo, tratando-se de algo subjetivo. No exemplo apontado, do engenheiro, o autor diz que no momento em que ele constata o problema encontra-se no papel de arrendatário do automóvel e, por isso, não é garante na hora de devolver o veículo de que o mesmo esteja "livre dos danos que se geraram à margem de seu comportamento". [188]

Cabe aqui, verificarmos a afirmação de Günther Jakobs sobre o tema:

O autor pode entregar-se à maior das mínimas distrações que lhe impede adquirir o conhecimento especial, e pode licitamente esquecer-se subitamente de algo que um dia chegou a conhecer. Explicando de outro modo, a relevância jurídico-penal dos conhecimentos especiais ficaria limitada aos conhecimentos efetivamente existentes, é dizer, ao dolo. Entretanto, um conhecimento sem o respectivo dever de conhecer seria um elemento não jurídico do delito, ao estar definido de maneira totalmente psicológica. [189]

O doutrinador vincula os conhecimentos especiais ao dolo, e cita o exemplo de um garçom que, ao perceber que há uma fruta venenosa no prato que irá servir, aguarda até que chegue ao restaurante uma pessoa a quem odeia. No caso, o autor desvia o curso do destino, convertendo-o em "objeto de sua organização, pelo que responderá pelas conseqüências". [190]

O penalista alemão argumenta que deve-se levar em conta os conhecimentos especiais do autor quando houver certa vinculação entre ele e a vítima. Cita essa vinculação através de duas situações: a vinculação através de uma instituição da sociedade e por uma obrigação organizacional. Em relação à primeira situação usa-se o exemplo do médico que ao realizar um curativo no filho deve observar técnicas inerentes à sua profissão. Na segunda hipótese temos o exemplo do dono de um automóvel que sabe que seu freio não está funcionando corretamente e, dessa forma, deve buscar a correção do problema, pois a sociedade espera que ele observe os padrões de segurança ditados por ela.

Assim, "uma mãe que trabalha como médica não deve ativar unicamente os conhecimentos correspondentes a uma mãe normal se seu filho adoece". [191]

6.2.2 O princípio da confiança

O princípio da confiança elaborado por Günther Jakobs baseia-se na seguinte proposição: "quando o comportamento dos seres humanos se entrelaça, não faz parte do papel do cidadão controlar de maneira permanente a todos os demais; de outro modo, não seria possível a divisão do trabalho". [192]

O princípio da confiança baseia-se na recém citada divisão do trabalho. Cada qual é responsável pelo correto cumprimento do papel que exerce na sociedade e pode esperar que, da mesma forma, o outro também o seja.

O penalista germânico apresenta duas modalidades de aplicação deste princípio. A primeira hipótese está relacionada com a situação em que o autor cumpre o seu papel confiando na ação anterior de um terceiro. [193] Para ilustrar utilizamo-nos do exemplo do médico cirurgião que confia no trabalho dos auxiliares responsáveis pela esterilização dos equipamentos. Se por acaso o responsável não esterilizar corretamente os equipamentos o resultado lesivo decorrente do fato não pode ser imputado ao médico. A expressão autor, aqui, refere-se ao autor da conduta inofensiva que posteriormente é desviada por um terceiro e não ao autor de um fato criminoso, este sim, responsável pela conduta típica.

A segunda hipótese é relativa ao autor que inicia uma tarefa em observância às normas jurídicas e/ou sociais que são exigidas e, por isso, não é responsável pela forma incorreta que um terceiro dá continuidade a sua obra. [194] Basta inverter os papéis do exemplo anterior. O anestesista que observa as normas jurídicas e inerentes à sua lex artis não responde pelos danos causados ao paciente se o médico age de forma irresponsável.

Conclui-se das duas hipóteses apresentadas que "não pode haver regresso de responsabilidade na direção daquele que se comportou de forma socialmente adequada ou de acordo com o risco permitido numa determinada atividade". [195]

Existem restrições óbvias ao princípio da confiança. É o caso de haver motivo para não se confiar na ação do terceiro ("quando se pode ver que a outra parte não faz, ou não fez, justiça à confiança de que cumpriria as exigências de seu papel"). [196] Cite-se aqui, uma pessoa que encontra-se embriagada, por exemplo.

6.2.3 A proibição de regresso

Uma particularidade da teoria da imputação objetiva de Günther Jakobs é desenvolvê-la no âmbito da "tradicional teoria da autoria e participação". [197]

Exatamente por ser uma contribuição particular do jurista à objetivação do tipo, que supõe um interessante campo de discussão para a ciência penal, infelizmente, devido a amplitude do tema, não será possível analisar nos mínimos detalhes todas as nuances que envolvem tal assunto.

"Quem assume com outro um vínculo que de modo invariavelmente considerado é inofensivo, não viola seu papel como cidadão, ainda que o outro incorpore esse vínculo numa atividade não permitida". [198] A proibição de regresso conclui que um comportamento considerado inofensivo e dentro do risco permitido não pode constituir uma participação em uma atividade não permitida. Não há falar em imputar o resultado lesivo ao sujeito que exerceu sua atividade de forma regular.

Para o jurista alemão há proibição de regresso mesmo nos casos em que o autor da conduta inofensiva sabe da pretensão criminosa de um terceiro. Há uma grande controvérsia doutrinária referente à essa questão: o penalista Fernando Galvão (in Imputação Objetiva. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002) aduz que o correto seria imputar o resultado ao autor da conduta inofensiva seja como co-autor ou como partícipe. Segundo Günther Jakobs se um padeiro vende um pão para seu freguês, mesmo sabendo da intenção do mesmo em envenenar o produto com ânimo de matar alguém, ao padeiro não será imputado o resultado morte. Para o autor ou uma ação é inofensiva ou não é. A partir do momento em que o padeiro, no caso em tela, agiu de acordo com as normas e padrões de comportamento não interessa como o terceiro irá agir posteriormente. O conhecimento do padeiro de que o seu cliente irá usar o pão para envenenar outra pessoa não muda a valoração de seu comportamento de inofensivo para ofensivo.

O sujeito que "realiza algo que seja invariavelmente considerado socialmente adequado não responde, e isso independentemente do que pense e conheça". [199]

Violaria seu papel social, aquele sujeito que "não mantém sob controle objetos perigosos, especialmente quando faz entrega deles ou quem adapta seu comportamento na planificação delitiva de outra pessoa". [200] O autor apresenta em sua obra o exemplo de uma loja que vende artigos para jardim. Ora, isso é algo inofensivo mas, a partir do momento em que desenvolve-se uma luta violenta diante da loja e pessoas feridas que participaram da luta entram no recinto buscando a entrega imediata de uma enxada, o autor afirma que pode ser que as coisas sejam distintas. Neste aspecto leva-se em consideração o caráter subjetivo do fato.

Günther Jakobs conclui que "um comportamento é acessório quando constitui um motivo para imputar o ato executivo realizado pelo autor. No demais, vigora uma proibição de regresso". [201] A pessoa que se adequar ao plano delitivo do autor dá vazão para que o ato executivo lhe seja imputável.

A proibição de regresso é um tema que suscita discussões. Dois dos discípulos de Günther Jakobs, Derksen e Lesch estão tentando desenvolver a questão.

6.2.4 A competência da vítima

O desvio danoso do papel que cada qual cumpre dentro da sociedade faz com que o resultado lesivo seja imputado ao autor da conduta. Às vezes o contato social não é de competência só do autor, mas também da vítima.

Podemos citar duas ocasiões distintas: a primeira é quando o "próprio comportamento da vítima fundamente que se lhe impute a conseqüência lesiva". [202] A segunda hipótese refere-se aos casos em que a vítima, por obra do destino, encontra-se nessa situação. Nestes casos estamos diante de uma competência da vítima. [203]

O doutrinador cita o consentimento como o caso mais conhecido de competência, ou capacidade, da vítima. Porém, como exposto logo acima, isso pode ocorrer por simples infortúnio da mesma.

Segundo seguidores da teoria finalista da ação, nos crimes em que o bem jurídico seja disponível, a competência da vítima deverá ser analisada no âmbito da antijuridicidade, como uma causa excludente da ilicitude. Para Günther Jakobs e os seguidores do funcionalismo, a mesma deverá ser analisada já no âmbito da tipicidade.

Na Alemanha, como a participação em suicídio não é punível, podemos trasladar essa visão aos crimes nos quais o bem jurídico seja indisponível. No caso do ordenamento jurídico nacional isso não é possível haja vista que a hipótese está tipificada no art. 122. Magalhães Noronha afirma que "embora não seja crime, o suicídio é antijurídico, pois a vida humana é um bem indisponível. Se fosse lícito não se admitiria, mesmo, a punição daquele que induz, instiga ou auxilia o suicida em seu gesto tresloucado". [204]

O fundamento básico do pensamento do jurista alemão é que a vítima não pode "assumir um contato social arriscado sem aceitar como fruto de seu comportamento as conseqüências que conforme um prognóstico objetivo são previsíveis". [205]

Nesse sentido, é mister citar as palavras de Reyes Alvarado: "Quem, dentro de seu âmbito de competência se expõe a um perigo do qual pode resultar para si mesmo conseqüências negativas assume integralmente a responsabilidade por referidos efeitos." [206]

Exemplo bastante discutido dentro da doutrina atual é o do contágio do vírus HIV [207] através de relação sexual com uma pessoa que se prostitui ou que usa drogas. Günther Jakobs assim reflete sobre a questão:

No que diz respeito a este último caso, ainda há algumas questões pouco claras; nesse sentido, por exemplo, não está claro se a vítima unicamente atua a próprio risco quando não só conhece o modo de vida arriscado, mas também a infecção com o vírus da AIDS, ou, se, pelo contrário – como creio que é correto -, há uma ação de próprio risco quando conhece determinadas condições sob as quais uma pessoa cuidadosa contaria que existissse uma probabilidade de contágio superior à medida que esteja presente a enfermidade. [208]

Segundo o doutrinador não estão claras quais são as condições de competência da vítima que excluem de maneira total a competência do autor, e "quando existe algo parecido a uma concorrência de culpas jurídico-penalmente relevantes que diminui a responsabilidade do autor sem eliminá-la por completo". [209] Günther Jakobs diz que é necessário determinar se a vítima desempenhou papel de vítima ou se desempenhou o papel de alguém que atuou com próprio risco.

6.3 SÍNTESE – OS ELEMENTOS DO CRIME DE IMPUTAÇÃO OBJETIVA SEGUNDO GÜNTHER JAKOBS

Apresentamos anteriormente a visão do doutrinador Claus Roxin acerca dos elementos do crime. Resta-nos agora analisar como Günther Jakobs conceitua a ação, o tipo, a antijuridicidade e a culpabilidade.

O conceito de ação apresentado por causalistas no início do século XIX foi definido por Von Liszt e Ernest Von Beling como sendo uma modificação no mundo exterior produzida de forma voluntária através de um movimento corporal consistente num fazer ou não fazer (omissão). [210]

A teoria finalista apresentou um conceito ontológico de ação baseado no pensamento welzelniano, afastando o conceito naturalístico ou causal e estabelecendo que a ação é um fazer final.

A visão finalista já não é mais vista como um sistema irretocável. Várias críticas foram elaboradas em torno do "conceito de ação final dirigida voluntariamente a um resultado pretendido". [211] Essas críticas possibilitaram o surgimento de novos conceitos de ação, e um deles é o apresentado por Günther Jakobs. [212]

O doutrinador alemão conclui que o erro da doutrina finalista é vincular o conceito de ação somente às propriedades do ato executado, dessa forma não há menção à questão das alternativas do autor. Para ele, ação é a causação de um resultado inevitável individualmente. [213] Partindo dessa idéia, vislumbra-se a impossibilidade da pessoa jurídica praticar ações já que:

[...] o relevante para o injusto penal não é a ação, mas um conceito que determine o que é o sujeito e o que é a ação. Neste sentido, o mundo exterior para o sujeito e o vínculo deste com o mesmo, caso de imputação, se tornam elementos de análise. A capacidade individual para dirigir a ação, como expressão de sentido individual, não é uma questão de propriedades psíquicas, ou de outro tipo, mas saber-se o que é um sujeito e quando pode ser responsabilizado pelos resultados de sua organização. [214]

O conceito de ação do autor está ligado à missão do Direito Penal na sua visão, qual seja, garantir a liberdade da sociedade. Assim, toda conduta que for contrária à norma terá por conseqüência uma pena.

Esse conceito de ação engloba tanto o comportamento culposo como o doloso e a omissão.

No campo do tipo penal, o autor aduz que o tipo objetivo é "a parte externa do delito", sendo o tipo subjetivo "as circunstâncias que possibilitam a conversão de um tipo objetivo em ação típica". [215] Cabe à parte especial a interpretação dos tipos objetivos que descrevem as ações que não são toleradas/permitidas pela sociedade. Surge o tipo subjetivo no instante em que há a exteriorização de uma ação para atingir determinado resultado.

Para Günther Jakobs o conhecimento do injusto não faz parte do dolo ou da culpa stricto sensu, pertencendo à culpabilidade.

O jurista classifica as ações que não são antijurídicas em duas espécies: a) as ações irrelevantes para o ordenamento jurídico (ex: tiros para o alto) e b) as que apesar de apresentar características de condutas antijurídicas são permitidas pela sociedade (ex: estado de necessidade). [216]

A recondução das causas de justificação para o âmbito do tipo é baseada nos seguintes princípios: a) princípio da responsabilidade; b) princípio de definição de interesses por parte da própria vítima da intervenção; c) princípio da solidariedade. Sobre esses princípios, e com maiores detalhes, faz-se necessário um estudo mais aprofundado na própria obra do autor (JAKOBS, Günther. Derecho Penal – Fundamentos y teoria de la imputación. Trad. Joaquim Cuello Contreras e José Luis Serrano Gonzáles Murillo. Madri: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas, 1997). Haja vista a complexidade de tal tema, não nos ocuparemos de maiores explanações.

Günther Jakobs estabelece à culpabilidade uma função de prevenção geral. Para ele, a função da pena é a de "estabilizar o ordenamento". [217] Quando o indivíduo não cumprime a norma a qual se submete, é imputada ao mesmo uma culpabilidade que se evidencia na pena.

"Enquanto para Roxin, por exemplo, a imputabilidade apresenta uma base empírica, de possível verificação no plano psíquico, Jakobs rotula como ‘culpabilidade’ uma série de exigências preventivo-gerais". [218]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Aspectos dogmáticos da(s) teoria(s) da imputação objetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 973, 1 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8021. Acesso em: 24 dez. 2024.

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