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Alguns aspectos da dogmática processual para a defesa dos direitos do consumidor

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6. A sentença genérica como regra nas ações coletivas

Destacamos que alguns princípios e regras processuais tradicionais foram moldados de modo a garantir a tutela eficaz dos direitos transindividuais.

Já analisamos a legitimação para agir, a inversão do ônus da prova, os efeitos da sentença judicial à luz de seu resultado. Verificaremos, neste tópico, a flexibilização da regra constante do artigo 286, da lei procedimental, segundo a qual o pedido deve ser certo e determinado.

Pedido "é a expressão da pretensão. É o que se pede em juízo. É a dedução da pretensão em juízo (...) No pedido se contém a suscitação de uma provisão jurisdicional (pedido imediato), na tutela de um bem jurídico (pedido mediato)". 5

O pedido de prestação da tutela jurisdicional, por encerrar uma manifestação da vontade, deve receber interpretação restritiva à luz do princípio albergado no artigo 293, da Lei Procedimental Civil. Não por outra razão, é exigência legal que o pedido deva ser certo e determinado, entendendo-se por esta locução: delimitado quanto aos direitos e extensão quantitativa.

Por essa regra, o juiz fica vinculado àquilo que foi pedido, não podendo proferir sentença ilíquida quando o pedido for certo, nem conferir ao autor citra, ultra ou extra petita, sob pena de nulidade da sentença (parágrafo único, artigo 459, do CPC).

A regra constante do caput do artigo 286, do Código de Processo, no entanto, é excepcionada por seus incisos, ao enunciar hipóteses em que o pedido possa ser genericamente formulado, ou seja, admite-se que o autor decline o que quer sem deduzir o quantum quer.

Nas ações coletivas, o direito em conflito pertence a titulares determinados (direito coletivo stricto sensu) ou indetermináveis (direito difuso). Nessa linha, não seria possível repetir a regra prescrita no artigo 286, da lei do Rito, por absoluta incompatibilidade com os objetivos da Lei 8078/90. Daí o porquê de a exceção no Código de 73 ser a regra na Lei 8078/90.

De fato. A regra consubstanciada no artigo 95, da Lei 8078/90, é que a sentença deva ser certa quanto ao tipo de provimento jurisdicional pretendido, mas genérica ou ilíquida quanto à extensão quantitativa da pretensão. E assim é, para viabilizar aos lesados individuais a identificação e a apuração do quantum indenizativo, de acordo com a extensão do dano individualmente experimentado.

A professora Ada Pellegrini Grinover 6 assevera que o aspecto teleológico da sistemática processual traçada pela Lei 8078/90 para a tutela dos direitos transindividuais é obter, por meio das ações coletivas, o reconhecimento judicial do dever reparatório e da condenação do agente causador do dano ao ressarcimento pelos prejuízos produzidos. Por essa razão, a sentença deve ser genérica, máxime em razão de a decisão proferida nas ações coletivas tutelar um bem jurídico ainda indivisível, vale dizer, a condenação se dá pelo prejuízo provocado e não pelo dano experimentado pelos titulares individualmente considerados.

Vê-se a completa distinção entre a ação coletiva e a que envolve direitos individuais regidos pelo Código de Processo e o porquê de o legislador, para a tutela dos direitos coletivos, ter rompido com a tradição.

Pensemos na relação jurídica de consumo. Na lide individual, a controvérsia fica adstrita entre o fornecedor. causador do dano. e o consumidor lesado. Desde o início da lide as partes são perfeitamente identificadas, tendo o autor, em linha de princípio, o ônus de demonstrar o dano e o nexo causal. Já no caso das lides metaindividuais, se pensarmos que os legitimados ativos estão defendendo os interesses daqueles que efetivamente experimentaram o dano e que não participam da relação processual, fácil é intuir que a sentença não poderia ser especificar o quantum debeatur.

Em primeiro, porque os lesados só serão identificados no momento da liquidação de sentença; em segundo, porque será na fase liquidatória que será aferida a extensão do dano causado por determinado produto ou serviço.

Como se nota, se fosse aplicada a regra do Código de 73, prescrevendo que a sentença deva ser certa e determinada, restaria impossível a indenização dos lesados, o que faria cair por terra todo o arcabouço da lei 8078/90.

Colhemos, ainda, da lição trazida pela doutrina, que o fato de a condenação ser genérica não significa dizer que a sentença seja incerta. Há certeza quanto ao dever de reparar o dano, portanto o decisum é certo por definir o direito, mas ilíquido por não precisar o quantum.

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7. Do regime jurídico da coisa julgada nas ações coletivas

Fizemos remissão às alterações legislativas que influíram nos efeitos emanados da sentença. Falar de efeitos da sentença remete à coisa julgada, e, neste tema, as inovações foram substanciais.

O legislador infraconstitucional, cumprindo o ditame constitucional de elaborar mecanismos instrumentais que garantissem a defesa efetiva dos direitos metaindividuais, concebeu a Lei 8078/90 e aperfeiçoou a Lei 7347/85.

Esses dois diplomas cristalizam normas que destoam da processualística tradicional, porquanto as regras do Código de Processo se revelaram inaptas para equacionar satisfatoriamente as exigências da nova ordem social. Não foi por outra razão que as regras da legitimação para agir, dentre outras medidas, sofreram tantas inovações.

A extensão dos limites subjetivos da coisa julgada, tema que nos interessa neste tópico, recebeu tratamento especial. O artigo 16, da Lei 7347/85 assim dispunha, in verbis:

"Art. 16.. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".

Pelo teor do dispositivo legal supra colacionado combinado com o artigo 103, da Lei 8078/90, observa-se que todos os titulares individuais do interesse coletivo (lato sensu) seriam alcançados pelo resultado benéfico do julgado. Como se nota, diferentemente do que sucede perante o Código de Processo, no âmbito dos direitos coletivos a sentença produz efeitos para além dos litigantes.

Com efeito, as Leis 7347/85 e 8078/90 prescrevem que o titular individual do direito, por não ter recebido legitimação para agir em juízo, só sofrerá influência do julgado em sua esfera jurídica se a decisão for benéfica. Caso a sentença rejeite a pretensão por entender que não houve lesão, ou, porque do conjunto probatório existente nos autos não se demonstrou a lesão, o titular individual nenhum prejuízo jurídico experimentaria, podendo, inclusive, demandar individualmente o agente ofensor para obter a reparação da lesão.

O fundamento jurídico para que o legislador tenha adotado o efeito secundum eventus litis reside no fato de ter conferido legitimação a quem não seja o titular exclusivo do direito lesado. Destarte, a autoridade da coisa julgada não poderia cingir-se aos litigantes, daí ter sido criado um mecanismo que garantisse a todos os titulares do direito controvertido os benefícios decorrentes do acolhimento da pretensão. Por tal razão, é que a doutrina assevera que os efeitos erga omnes da autoridade da coisa julgada se opera somente em relação ao legitimados ativos para a ação coletiva, uma vez que a improcedência da demanda em face da inexistência da lesão a direito impedirá tão-somente o ajuizamento de outra lide coletiva.

A Lei 9494/97, contudo, alterando a redação do artigo 16, da Lei 7347/85, limitou os efeitos subjetivos da coisa julgada ao determinar que, in verbis:

"Art. 16.. A sentença civil fará coisa julgada ‘erga omnes’, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova". (grifo nosso).

Subsumindo o dispositivo legal supra às disposições constitucionais que determinam a efetiva proteção aos direitos transindividuais, à natureza dessa categoria de direitos e à posição doutrinária, encampamos a corrente que propugna pela inconstitucionalidade da alteração legislativa. Isto porque as ações coletivas buscam tutelar direitos fundamentais expressamente reconhecidos em nosso ordenamento jurídico. E o fato de a Constituição ter tutelado os direitos metaindividuais quer significar que se tornou inadmissível ao legislador infraconstitucional restringir ou alterar, direta ou indiretamente, essa proteção. Disso resultou a implementação de uma série de inovações por meio das Leis 8078/90 e 7347/85, criando-se um sistema legislativo material e processual próprio e adaptado para concretizar a proteção constitucional.

Em última análise, a razão de ser das mudanças introduzidas no sistema jurídico prendeu-se à natureza dos direitos e da repercussão social dos conflitos em massa.

Nesse diapasão, quer nos parecer, que restringir a eficácia da coisa julgada nos moldes traçados pela Lei 9494/97, alterando-se a redação do artigo 16, da Lei 7347/85, acaba por desnaturar a tutela efetiva do direito coletivo e ferir outros mandamentos constitucionais.

A doutrina mais autorizada vem repudiando essa alteração legislativa sustentando sua inoperância, porque as ações coletivas são reguladas por dois subsistemas que atuam em conjunto. as Leis 8078/90 e 7347/85 -, de modo que seria mister alterar a ambos, mormente porque é a Lei 8078/90 que cuida do regime da coisa julgada.

Hugo Nigro Mazzilli, por exemplo, destaca que pelo fato de a restrição ter sido imposta apenas na Lei 7347/85, qualquer outra ação, v.g a ação popular, que busque a tutela a direito coletivo estará fora do alcance restritivo trazido pela Lei 9494/97. Ainda, o direito coletivo stricto sensu tem eficácia ultra partes e não erga omnes, de modo que as ações que versarem sobre tais direitos estariam fora do alcance da Lei 9494/97. Ada Pellegrini Grinover segue a mesma linha quanto à ineficácia da restrição territorial dos efeitos da decisão, embasando seu entendimento no fato de que os efeitos da decisão estão vinculados aos limites ínsitos ao pedido, logo não pode ficar adstrito à competência jurisdicional do órgão prolator da decisão.

Não obstante o repúdio doutrinário à alteração do artigo 16, da Lei 7347/85, os tribunais, ainda que não uniformemente, têm conferido à lei interpretação literal, relegando a um plano secundário não apenas a linha teleológica do sistema protetivo sufragado pela Lei 8078/90, como também as prescrições constitucionais, como o acesso à justiça, a isonomia, dentre outros, como se verifica das ementas infra colacionadas.

"PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LITISPENDÊNCIA. LIMITES DA COISA JULGADA.

1. A verificação da existência de litispendência enseja indagação antecedente e que diz respeito ao alcance da coisa julgada. Conforme os ditames da Lei 9.494/97, "a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator".

2. As ações que têm objeto idêntico devem ser reunidas, inclusive quando houver uma demanda coletiva e diversas ações individuais, mas a reunião deve observar o limite da competência territorial da jurisdição do magistrado que proferiu a sentença.

3. Hipótese em que se nega a litispendência porque a primeira ação está limitada ao Município de Londrina e a segunda ao Município de Cascavel, ambos no Estado do Paraná."

(REsp n. 642462/PR. 2ª TURMA. j. 08/03/2005)

"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. APADECO. EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO DE COMBUSTÍVEIS (DL 2.288/86). EXECUÇÃO DE SENTENÇA. EFICÁCIA DA SENTENÇA DELIMITADA AO ESTADO DO PARANÁ. VIOLAÇÃO DO ART. 2º-A DA LEI Nº 9.494/97. ILEGITIMIDADE DAS PARTES EXEQÜENTES.

1. Impossibilidade de ajuizamento de ação de execução em outros estados da Federação com base na sentença prolatada pelo Juízo Federal do Paraná nos autos da Ação Civil Pública nº 93.0013933-9 pleiteando a restituição de valores recolhidos a título de empréstimo compulsório cobrado sobre a aquisição de álcool e gasolina no período de jul/87 a out/88, em razão de que em seu dispositivo se encontra expressa a delimitação territorial adrede mencionada.

2. A abrangência da ação de execução se restringe a pessoas domiciliadas no Estado do Paraná, caso contrário geraria violação ao art. 2º-A da Lei nº 9.494/97, litteris : "A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator".

3. Recurso especial parcialmente conhecido, e nesse ponto, desprovido."

(REsp n. 665.947-SC, 1ª TURMA. j. 02.12.2004)


BIBLIOGRAFIA

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Grinover, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelo autores do anteprojeto, 6ª ed., Editora: Forense.

Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed., Coimbra: Almedina.

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Notas

1 Há dissenso doutrinário acerca da natureza da legitimação para a defesa de interesses coletivos. Há quem sustente, que a legitimação é extraordinária, porquanto quem figura como autor da demanda, não é o titular do interesse. Outra corrente perfilha a tese de que a legitimação não é extraordinária, mas autônoma para conduzir o processo, pois os interesses defendidos pertencem, ao mesmo tempo, à coletividade e ao autor da ação.

2 Mauro Cappelletti e Bryan Garth. Acesso à Justiça. Passim.

3 . A Lei 8078/90 não estabelece o momento processual da inversão, o que deu azo a três exegeses doutrinárias. A primeira, propugna pela inversão no momento do julgamento da causa. O fundamento seria o de que as regras de distribuição do ônus da prova são regras de juízo, e que, portanto, a inversão dar-se-ia quando do sentenciamento. A segunda, sustenta que a inversão deve ocorrer na petição inicial. E a terceira, perfilha o argumento de que o momento da inversão deve ocorrer no saneador ou durante a fase probatória. Entendemos que a terceira corrente é a mais compatível com o regramento constitucional do direito de defesa e as diretrizes protetivas da lei 8078/90. Isto porque, o contraditório e ampla defesa desdobramentos do princípio do devido processo legal, pensamos que o julgador deva prevenir as partes sobre a possibilidade da inversão na fase instrutória, a fim de não cercear, de algum modo, a defesa do réu, e, porque não dizer, os interesses do consumidor.

4 José Manuel de Arruda Alvim, op. cit., p. 31.

5 Moacyr Amaral dos Santos. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 2º vol.p.150.

6 Ada Pellegrini Grinover. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (Comentado pelo autores do Anteprojeto), p.784.

Sobre a autora
Viviane Mandato Teixeira Ribeiro da Silva

advogada, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES, especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Viviane Mandato Teixeira Ribeiro. Alguns aspectos da dogmática processual para a defesa dos direitos do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1000, 28 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8146. Acesso em: 23 dez. 2024.

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