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A inadmissibilidade da prisão civil por dívida decorrente da alienação fiduciária em garantia:

uma análise empírica

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Agenda 25/03/2006 às 00:00

5. PONDERAÇÃO DOS INTERESSES EM CONFLITO: SUPREMACIA DA LIBERDADE

Deve-se também considerar que a prisão civil limita a liberdade do indivíduo e agride a sua dignidade, somente podendo ser utilizada em casos muito graves. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu art. 8º, já proclamava que a lei deve estabelecer "penas estrita e evidentemente necessárias".

De acordo com Norberto Bobbio,

A doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia jusnaturalista, a qual [...] partira da hipótese de um estado de natureza, onde os direitos do homem são poucos e essenciais: o direito à vida e à sobrevivência, que inclui também o direito à propriedade; e o direito à liberdade, que compreende algumas liberdades essencialmente negativas. Para a teoria de Kant, [...] o homem natural tem um único direito, o direito de liberdade, entendida a liberdade como "independência em face de todo constrangimento imposto pela vontade de outro", já que todos os demais direitos, incluindo o direito à igualdade, estão compreendidos nele [09].

É patente, pois, que a prisão civil, especialmente a do devedor-fiduciante viola frontalmente os direitos humanos. O que se objetiva tutelar com essa prisão é o patrimônio, que é um bem jurídico extraordinariamente incomparável à liberdade.

A liberdade é o maior bem da vida, é direito fundamental do indivíduo e como tal não pode ser menosprezado a qualquer título, devendo prevalecer sobre interesses creditícios de instituições financeiras, já tão favorecidas pela legislação brasileira. É pertinente, in casu, a aplicação do princípio da proporcionalidade, tendo em vista que deve ser evitado o sacrifício da liberdade do devedor-fiduciante em face da vantagem patrimonial pretendida pelo credor-fiduciário. Neste sentido, assegura Suzana de Toledo Barros,

[...] o princípio da proporcionalidade funciona como parâmetro técnico: por meio dele verifica-se se os fatores de restrição tomados em consideração são adequados à realização ótima dos direitos colidentes ou concorrentes. Afinal o que se busca é a garantia aos indivíduos e uma esfera composta por alguns direitos, tidos por fundamentais [10].

É imprescindível, portanto, que haja a ponderação dos interesses em conflito, de modo que seja resguardado o direito fundamental à liberdade do devedor-fiduciante em face do direito de crédito do credor-fiduciário. Não é constitucional, nem tampouco razoável que a liberdade humana seja sacrificada com a finalidade de preservar o patrimônio alheio.

Sobre a proporcionalidade das penas Cesare Beccaria já asseverava:

[...] se dois crimes que afetam desigualmente a sociedade recebem idêntico castigo, o homem inclinado ao crime, não tendo que recear uma pena maior para o crime mais hediondo, resolver-se-á com mais facilidade pelo crime que lhe traga mais vantagens; e a distribuição desigual das penas fará nascer a contradição, tanto notória quanto freqüente, de que as leis terão de castigar os delitos que fizeram nascer [11].

Diante da necessidade de se alcançar um equilíbrio, deve prevalecer o respeito aos direitos humanos. Ilógico é limitar a liberdade do devedor se ele pode ser compelido ao adimplemento por meio da execução patrimonial.


6. OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

Não se pode olvidar que o Brasil é signatário de dois tratados internacionais que versam sobre direitos humanos e vedam a prisão civil do devedor. O primeiro é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, melhor conhecida comoPacto de San José da Costa Rica, segundo o qual ninguém será detido por dívidas (art. 7º, § 7º). O segundo é o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, determinando que ninguém será encarcerado por não poder cumprir uma obrigação contratual (art. 11). Percebe-se, assim, a existência de conflito entre os tratados internacionais e a mencionada disposição constitucional.

Consoante entendimento de George Marmelstein, "aceitar que uma questão patrimonial (do depositário infiel) sacrifique um bem tão importante como a liberdade é inverter a hierarquia axiológica dos valores maiores consagrados em nossa Constituição e nos tratados internacionais de que o Brasil é signatário" [12].

Ainda que se utilizasse o argumento de que, na hipótese, ter-se-iam duas normas constitucionais em conflito – uma autorizando e outra impossibilitando a prisão civil – a solução seria dada pela ponderação dos interesses, no qual prevaleceria a liberdade do devedor-fiduciante em detrimento do patrimônio do credor-fiduciário, que poderia ser recuperado por outros meios de execução. Incoerente é que entre a liberdade e a propriedade, prevaleça a propriedade, posto que se deve buscar sempre a norma mais favorável à proteção da vítima.

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Os direitos humanos representam "o principal elemento de integração do direito interno ao direito internacional, representando assim o núcleo pré-constitutivo da mencionada ‘sociedade universal do gênero humano’" [13].

Acerca da compatibilidade entre os tratados internacionais que proíbem a prisão civil e a Constituição Federal de 1988, observe-se a opinião dos operadores do direito atuantes nas Varas Cíveis da Comarca de Maceió:

NOTA: Os tratados aos quais se faz alusão são a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

Percebe-se, a partir da análise do gráfico, que mais de 70% (setenta por cento) dos entrevistados opinaram pelo prevalecimento da Constituição Federal em face da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, restando evidente o apego dos operadores às decisões do Supremo Tribunal Federal, nas quais os tratados internacionais ingressam no ordenamento jurídico como força de lei ordinária, não podendo, portanto, revogar dispositivo constitucional.

Mais uma vez, constata-se a desconsideração da matéria, pois mais de 10% (dez por cento) dos profissionais consultados não têm opinião formada. Ademais, o questionamento proposto envolve noções de Direito Internacional, disciplina pouco considerada por profissionais, mas relevante para o deslinde da matéria. E ainda, poucos são os que enfrentam a questão admitindo a prevalência de um tratado internacional em detrimento de norma constitucional, mesmo tratando ele sobre direitos humanos.

A Constituição Federal, em seu art. 4º, inciso II, estabelece como um dos princípios norteadores das relações internacionais do Brasil a prevalência dos direitos humanos. E no art. 5º, § 2º, não exclui direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Depreende-se da interpretação conjunta dos dispositivos mencionados, que tratados internacionais, quando versarem sobre direitos humanos, devem-se integrar ao ordenamento jurídico com status de norma constitucional. Neste sentido, destaque-se a opinião de Flávia Piovesan [14]:

Os direitos garantidos nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Esta conclusão advém ainda de interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional.

Não se pode olvidar que as normas constantes na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos encerram direitos fundamentais, e como tais devem ingressar na ordem jurídica brasileira, em decorrência do permissivo constante no art. 5º, § 2º da Constituição Federal. Além dos direitos e garantias fundamentais previstos na ordem nacional, os indivíduos passam a ser titulares de direitos e garantias fundamentais previstos na ordem internacional.


7. O POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL ACERCA DA MATÉRIA

Os resultados apreendidos nas entrevistas realizadas refletem a divergência jurisprudencial existente nos Tribunais Superiores do país. Isto porque o Superior Tribunal de Justiça considera inadmissível a prisão civil por dívida decorrente da alienação fiduciária em garantia, em contraposição ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, guardião maior da Constituição Federal, e que entende constitucional a referida hipótese.

A despeito do entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal, destaca-se a posição de divergência dos Ministros Francisco Rezek e Marco Aurélio Mello no HC 74383-8/MG [15], em que evidenciam verdadeira repulsa à prisão civil do devedor-fiduciante, enfatizando a impossibilidade de elastecimento da exceção contida no art. 5º, inciso LXVII do texto constitucional, e ressaltando a ratificação, pelo Brasil, do Pacto de San José da Costa Rica que, versando sobre direitos humanos, veda a prisão civil por dívida excetuando a do devedor de alimentos. E ainda tem-se como argumento a impossibilidade de dar a situações reprováveis no plano civil tratamento igual ao da prática de crimes.

Certamente este posicionamento se coaduna com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, bem demonstrado na seguinte ementa:

CONSTITUCIONAL. PRISÃO CIVIL. "HABEAS CORPUS". ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. INTERPRETAÇÃO DO ART. 66 DA LEI Nº 4.728/65, ALTERADO PELO DECRETO-LEI Nº 911/69, EM FACE DO ART. 5º, LXVII, DA CONSTITUIÇÃO EM VIGOR. CRÍTICA À JURISPRUDÊNCIA FIRMADA AO TEMPO DA ORDEM CONSTITUCIONAL CADUCA (ART. 153, PARÁG. 17). RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. I – [...]. II – O instituto da alienação fiduciária em garantia se traduz em uma verdadeira "aberratio legis": o credor fiduciário não é proprietário; o devedor-fiduciante não é depositário; o desaparecimento involuntário do bem fiduciado não segue a milenar regra da "res perit domino suo". Talvez pudesse configurar em "penhor sine traditione rei", nunca em "depósito". O legislador ordinário tem sempre compromisso com a ordem jurídica estabelecida. Na verdade, o que a lei (Decreto-Lei nº 911/69, ao alterar o art. 66 da LMC) fez foi reforçar a garantia contratual mediante prisão civil, o que contraria toda nossa tradição jurídica, que tem raízes profundas no sistema jurídico ocidental. A "prisão civil por divida do depositário infiel" do art. 5., inciso LXVII, da Constituição, só pode ser aquela tradicional (CC, art. 1.265). III - Recurso ordinário conhecido e provido. (STJ – RHC 4288/RJ – Min. Adhemar Maciel – 6ª Turma – j. 13/03/1995) [16].

O Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, votando o RHC 4329/MG [17], estabeleceu a diferença existente entre o contrato de alienação fiduciária em garantia e o contrato de depósito, demonstrando que neste a coisa é entregue a terceiro para restituí-la, quando solicitada, a quem de direito, enquanto a alienação fiduciária constitui cláusula de reforço para honrar obrigação civil, não sendo a restituição um fim em si mesma, mas sim um roteiro para compelir o devedor a efetuar o pagamento.

O Ministro Vicente Leal, apreciando o HC 5583/DF [18], também demonstra a inadmissibilidade da prisão civil decorrente da alienação fiduciária em garantia, argumentando que esta fora instrumentalizada por um diploma arcaico, inspirado pelos detentores do poder econômico, que encontraram esse instrumento legal para obter o pagamento pronto de suas dívidas pela constrição física dos devedores.


8. CONCLUSÃO

A pesquisa foi desenvolvida com o intuito de demonstrar a inadmissibilidade da prisão civil por dívida decorrente da alienação fiduciária em garantia.

A partir dos dados obtidos nas entrevistas, constatou-se que os profissionais do direito ainda não despertaram para a relevância da matéria, intimamente ligada ao cotidiano da sociedade. A prisão civil imposta ao depositário infiel, de um modo geral, é aceita por boa parte dos operadores do direito da Capital, sendo surpreendente o posicionamento conservador adotado pela maioria dos promotores, ao considerarem remédio hábil e eficiente.

No entanto, a prisão civil decorrente da alienação fiduciária em garantia realmente tem sido repelida, especialmente por juízes e advogados atuantes nas Varas Cíveis da Capital, e ainda, por grande parte da jurisprudência, a despeito das decisões conservadoras do Supremo Tribunal Federal.

A prisão civil, certamente, cumpre o papel para o qual foi criada, qual seja, compelir o devedor ao cumprimento de uma obrigação. Todavia, para tanto, viola preceitos de ordem constitucional, daí porque considerá-la inadmissível.

É totalmente inconstitucional, e desarrazoado, nos dias de hoje, proceder à prisão civil do devedor-fiduciante, pois o direito privado tem passado por grandes transformações, sendo a principal delas a mudança de foco das relações, do patrimônio para a pessoa. Ou seja, a tendência atual é fazer prevalecer os direitos humanos em face de qualquer outro interesse.

A pessoa do devedor merece respeito, não podendo ser atingida em decorrência de inadimplemento obrigacional, mesmo porque não se pode punir um ilícito civil do mesmo modo como se pune um ilícito penal. Deve prevalecer a liberdade do indivíduo em detrimento de interesses creditícios de instituições financeiras. Melhor seria considerar a execução de seu patrimônio em vez do constrangimento de sua liberdade.

Apesar da divergência jurisprudencial existente entre os Tribunais Superiores, percebe-se que alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, cujas decisões conservadoras devem ser repelidas, já entendem inadmissível a prisão civil decorrente da alienação fiduciária em garantia. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, tem proferido decisões de vanguarda com o intuito de proteger os direitos fundamentais do devedor-fiduciante e resguardar a aplicação dos tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, e que versam sobre direitos humanos, vedando a prisão civil por dívida.

Em verdade, diante das normas constantes nos arts. 4º, inciso II, e 5º, § 2° da Constituição Federal de 1988, a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, tratados ratificados pelo Brasil, devem ser incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro com status constitucional, promovendo a inconstitucionalidade da prisão civil do infiel depositário e dos que a ele são equiparados.

Desta feita, ante a inconstitucionalidade da prisão civil decorrente da alienação fiduciária em garantia, melhor seria extirpar a prisão civil por dívida do ordenamento jurídico brasileiro, procedendo à execução patrimonial do devedor civil.

Considerando que o direito tem por escopo a justiça, e que a prevalência dos direitos humanos é fator de suma importância para o progresso do direito privado, resta ilógica a admissibilidade da prisão civil por dívida decorrente dos contratos de alienação fiduciária em garantia. Enfim, no conflito entre o ser e o ter é a pessoa humana que deve prevalecer.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Aline Paula Gomes. A inadmissibilidade da prisão civil por dívida decorrente da alienação fiduciária em garantia:: uma análise empírica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 997, 25 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8156. Acesso em: 23 dez. 2024.

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