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Quousque tandem, Bolsonaro?

Agenda 28/04/2020 às 12:40

Compara-se o discurso de Cícero, orador romano do séc. I a.C., em relação à conjuração de Catilina e a lentidão do Parlamento em dar seguimento ao processo de impeachment, diante de tantas infrações contra o Estado brasileiro.

O fragmento em latim que dá título a este artigo é o início da frase com que Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.C.), o mais notável orador e político romano, inicia seu conhecidíssimo discurso diante do Senado Romano, no ano 63 a.C., dirigido a Lúcio Sérgio Catilina, conspirador que articulava um golpe de Estado contra Roma.

Catilina era um jovem aristocrata falido e endividado que, tendo perdido para Cícero, no ano anterior, a eleição para Cônsul – o mais alto cargo político da República –, começa a inflamar as classes mais revoltadas da urbe contra as instituições republicanas. Num período de complexas crises internas e externas, com revoltas civis efervescendo por todos os lugares, a Res publica agonizava, já antecipando seu iminente fim, dali a cerca de 40 anos. Aproveitando-se disso, Catilina reuniu um séquito de cidadãos frustrados com o andamento da política romana, juntamente com alguns generais também insatisfeitos, e criou um exército que se preparava para tomar o poder à força. Depois de várias arruaças e perturbação da ordem pública (equivalentes a buzinaço em frente de hospitais), Catilina trama o assassinado do Cônsul, que descobre seus planos, consegue escapar da armadilha e, logo depois, decide expor o projeto criminoso que pairava sobre todos.

No dia 8 de novembro de 63 a.C., diante do Senado Romano, estando presente o conspirador – talvez como tentativa de sugerir inocência –, Cícero denuncia os crimes de lesa-pátria de Catilina, que é alvo, então, de um veemente discurso que, mais tarde, será o primeiro de uma série conhecida como Catilinariae (“As Catilinárias”).

Qual teria sido a surpresa do jovem Catilina quando, acuado por Cícero, e humilhado diante de seus compatriotas senadores, viu seus planos serem desbaratados diante do Senado. A forma agressiva e ab abrupta com que Cícero inicia sua investida já revela a natureza vigorosa do discurso que se seguirá: quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? (“até quando abusarás, Catilina, da nossa paciência?”). A tensão e tumulto que nesse instante preencheram o Templo de Júpiter, onde a sessão ocorria, só podem ser imaginados por nós. Mas Cícero, em seu discurso, nos dá uma ideia da ojeriza dos presentes ao verem revelados os planos do conspirador: assim que Catilina chegou ao plenário, todos os senadores se afastaram de perto dele.

Surpreendentemente, Cícero, mesmo com os crimes de seu oponente revelados a todos, com provas e testemunhas, não o prende nem o conduz à pena capital. Ao invés disso, exorta a que Catilina parta para o exílio, mesmo sabendo que havia o risco – calculado – de Catilina encontrar seus exércitos e avançar contra a cidade. Seria o medo de incorrer em improbidade? Pouco provável, pois havia um decreto especial do Senado conferindo-lhe tal prerrogativa. O que levaria, então, Cícero a arrefecer, a liberar seu oponente e correr o risco de agir de modo indolente? O que pensa um líder político ao ver um patrício cometer crime daquela natureza e deixá-lo partir?

Dois mil anos depois, mudados o lugar e os personagens (a lei é mesma), essa pergunta continua sem resposta. Após sucessivos ataques de Bolsonaro à democracia, após incorrer em crime de responsabilidade, um seguido do outro, após abusar da paciência dos brasileiros por meses e meses, a pergunta permanece: quousque tandem abutere, Bolsonaro, patientia nostra? Até quando suportaremos a audácia desse que se diz defensor da democracia, mas insistentemente fere-a, incitando outros a fazerem o mesmo?

E se Cícero tivesse ordenado a prisão de Catilina naquele momento? E se o tivesse sentenciado à morte, assim que a conjuração foi descoberta...?

Cícero hesitou.

O Congresso hesita.

Cícero não aplicou a lei especial que o amparava, mas também não seguiu com o devido processo legal que poderia levar Catilina ao banco dos réus. A Câmara dos Deputados, o Senado e o STF soltam notas diariamente repudiando e repreendendo os sucessivos crimes e ofensas ao Estado de Direito, cometidos pelo Presidente da República e seu séquito. Mas não vão além disso.

Cícero também ficou inerte. Porém, muito inteligentemente, ele “se recriminava” por sua inação, embora, contraditoriamente, parecesse não se importar com o que o povo pudesse vir a pensar dele, caso, naquele momento, mandasse executar Catilina: si te iam, Catilina, comprehendi, si interfici iussero, credo, erit uerendum mihi, ne non potius hoc omnes boni serius a me quam quisquam crudelius factum esse dicat (“se te mando prender agora, Catilina, ou se decreto a tua morte, o meu maior medo é que os bons cidadãos digam que eu demorei para agir, e não que eu fui demasiado cruel” - Cat. I, 2, 5). Era uma estratégia retórica, óbvio.

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Mas esse não parece ser o caso do Parlamento brasileiro. Acovardado, talvez, pela repercussão que o irônico trâmite de um impeachment (ou justiça histórica) poderia causar, a demora a agir é cruel e perigosa. Sim, porque não parece estranho um presidente ser deposto por um crime de “responsabilidade fiscal”, e outro permanecer no cargo após vários crimes de responsabilidade contra a saúde pública e contra as instituições democráticas?

Maliciosamente, Cícero admoesta Catilina a sair livre, para fora da cidade, mesmo que o cônsul seja vítima potencial de uma “tempestade de ódio” (tempestas inuidiae) no futuro. Era uma aposta capciosa, pois o que Cícero realmente queria era que Catilina, saindo da cidade, encontrasse seus comparsas e, assim, tornasse possível ao cônsul identificar os demais traidores e, aí sim, puni-los.

Nós sabemos quem são os apóstatas da democracia hoje. Eles não se escondem, vão às ruas, seus crimes são para nós clariora luce (“mais claros que a luz”). Mas a razão de ainda permanecerem livres, espalhando seu ódio e seus crimes diante de nossos olhos é bem diferente daquela que motivou Cícero. O cônsul desejava que não houvesse nenhuma dúvida dos crimes de Catilina, dúvidas que muitos dos próprios senadores ali presentes ainda mantinham. Fora da cidade e junto ao exército conjurado, não haveria ninguém bem intencionado que não visse nesse ato a confirmação dos crimes do conspirador.

Entre nós, há ainda alguém bem intencionado que não perceba ou tenha dúvidas dos muitos crimes já cometidos contra nossa República e contra nossa Constituição?

Talvez tenha passado pela cabeça de Cícero uma dúvida entre seguir o trâmite legal (prisão e julgamento) ou exterminar o cabeça da sedição ali mesmo, rapidamente. Ele não seguiu nenhuma dessas opções. Ao permitir que Catilina continuasse livre, tendo apenas que sair da cidade, Cícero viu seu inimigo reunir-se com o séquito golpista e morrer em batalha um ano depois, sendo sua conjuração derrotada pelo exército consular. Os sequazes remanescentes, estes sim, foram condenados à morte, sem julgamento, legando a Cícero, pater patriae, o ápice de seu prestígio e glória em Roma. Sua escolha final, portanto, foi louvável e certeira, mas não terminou bem. Ele esperou demais: por valer-se de uma lei especial, e não das cláusulas pétreas da legislação romana, quase 4 anos depois ele foi vítima de uma lei aprovada pelo Senado, com efeito retroativo, proposta por um inimigo político, que condenava ao exílio qualquer um que tivesse condenado à morte um cidadão romano sem o devido julgamento. No fim das contas, parece que não lhe adiantou o atalho jurídico usado como amparo à sua decisão. Se ele tivesse optado pelo caminho do ordenamento jurídico, com investigação e seguimento correto do sistema penal romano, os conspiradores teriam tido o mesmo fim, mas o mérito pertenceria à Justiça, não a um indivíduo. A cooptação política de situações de calamidade para fins pessoais, como se vê, não é recente.

Catilina, de fato, ficou impune. Conseguiu articular um exército insidioso e marchou para a guerra, obrigando os cidadãos romanos a envolverem-se, mais uma vez, em um conflito civil, que oneraria ainda mais os cofres públicos, enfraquecendo ainda mais o já frágil sistema parlamentarista da Urbe. Os resultados, já conhecemos: a decadência da República e o fim da liberdade civil, com a ditadura de Augusto.

Há uma lição aí. Não precisamos de querelas políticas, nem de jogos egoístas de poder, muito menos de shows midiáticos para fazer cumprir o devido processo legal e tomar providências contra as ações flagiciosas de Bolsonaro, enquanto há tempo. Caso contrário, diferentemente da antiga Roma, não será um ex-cônsul que pagará a conta dessa demora em responder a esta conspiração em andamento contra nossa democracia. Seremos nós que pagaremos por nossa hesitação. Estamos esperando demais. Quousque tandem?

Sobre o autor
Carlos R R Jesus

Mestre e Doutor em Letras Clássicas (latim e grego), pela UNICAMP. Professor de latim na Universidade do Estado do Amazonas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Carlos R R. Quousque tandem, Bolsonaro?: O exemplo de Cícero nas Catilinárias e a inação do Estado brasileiro em punir crimes de lesa-pátria. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6145, 28 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81560. Acesso em: 24 nov. 2024.

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