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Crime de furto:

fatores preponderantes para a baixa resolutividade em Teresina

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Agenda 26/03/2006 às 00:00

3. FATORES IMPULSIONADORES DA BAIXA EFICIÊNCIA POLICIAL

A proposta do presente estudo foi de, a partir das hipóteses levantadas, frutos de uma experiência profissional e vivencial no âmbito da Polícia Civil, buscar a constatação ou não do impacto que supostas causas poderiam ter no sentido de contribuir, negativamente, para que a Polícia Civil do Piauí fosse tão inoperante na persecução criminal do delito de furto na cidade de Teresina.

Em nenhum momento buscou-se focar questões intrinsecamente restritas ao âmbito da investigação policial, e sim, em aspectos mais ligados à administração do trabalho policial, ou seja, aos seus mecanismos de gerenciamento e de controle. Até porque, como se verá no próximo capítulo, por ocasião da apresentação de propostas e mudanças para melhoria da atuação policial, com base nas causas que aqui serão discutidas, constatar-se-á que as pretensas soluções não demandarão vultosos investimentos, uma preocupação norteadora deste trabalho. Soluções simples, racionais, de fácil implementação, que não dependam de recursos financeiros de grande monta, o que, se assim não fosse, tornariam inócuas tais propostas diante da baixa capacidade de investimentos do Estado do Piauí, principalmente no tocante à área de segurança pública, onde nos últimos dez anos os recursos para investimento foram, na quase totalidade, oriundos do Governo Federal através do Ministério da Justiça.

Antes de se analisar até que ponto as hipóteses levantadas inicialmente restaram ou não provadas, bem como a apresentação dos resultados dos questionários e entrevistas realizadas, que é o cerne do presente estudo, deve-se, inicialmente, abordar os impactos que a atuação policial proporciona frente à escalada criminosa. É o que se verá na seqüência.

3.1. Qual o impacto que a polícia tem sobre o crime ?

Revisando a literatura sobre a questão, tanto em âmbito nacional com em outros países, observa-se um certo pessimismo e um ceticismo acerca da capacidade de a policia efetivamente contribuir para a redução da criminalidade.

Retrata fielmente essa tendência a socióloga americana Mary Ann Wycoff. Funcionária da Police Foundation desde 1972, e que, desde então, vêm dirigindo pesquisas sobre mudança organizacional, eficácia policial contra o crime, o papel da polícia e a supervisão policial:

Depois de rever aproximadamente quarenta tentativas empíricas para determinar o relacionamento entre os dados fornecidos pelos relatórios e os resultados relacionados ao crime, forçosamente se conclui que, na maior parte das afirmativas a respeito do efeito da polícia sobre o crime, as evidências são, na melhor das hipóteses, que tal efeito é fraco e, freqüentemente, contraditório. [18]

Segundo referida socióloga, os estudos para se identificar os impactos da atuação policial ante o crime geralmente envolvem como parâmetros os gastos financeiros, efetivo policial, investigações, níveis de detenção e estratégias de ação das rondas policiais, rapidez e tempo de resposta às demandas da população.

Dentre os estudiosos que buscaram relacionar o nível de investimentos na área de segurança e os índices de criminalidade, Allison (1972), Jones (1974), Wellford (1974) e Pogue (1975), não encontraram nenhuma relação ou apenas uma relação muito fraca entre os gastos e a variável resultados. Ehrlich (1973), McPheters (1974), Stronge (1974) e Swimmer (1974), encontraram relações negativas. Carr-Hill (1973) e Stern (1973) detectaram relações positivas.

Assim como no caso do nível de gastos com a polícia, os resultados alusivos à comparação entre o incremento do efetivo policial e a criminalidade não foram conclusivo, alguns deles contraditórios.

Quanto aos resultados das pesquisas que focaram o aspecto das investigações policiais, a socióloga assevera que:

Em função, principalmente, da quantidade insuficiente de pesquisas sobre o efeito das investigações, é preciso concluir que a questão não foi explorada de maneira adequada e que não se consegue estabelecer argumentos fortes sobre a eficácia das investigações policiais sobre o crime. [19]

Os outros aspectos – número de detenções, níveis de rondas policiais e tempo de resposta às demandas – também não tiveram conclusões diversas dos parâmetros anteriores, segundo o estudo de Mary Ann Wycoof, a qual ao final conclui:

Concluir – e isso é bem possível, depois de se ter examinado os estudos das pesquisas – que não houve base conceitual adequada dos modos pelos quais as forças policiais podem ter um efeito positivo sobre a criminalidade, seria fazer uma observação excessivamente fácil e um tanto injusta. De fato, pouquíssimos dos pesquisadores identificados como tendo abordado algum aspecto da eficácia contra o crime tinham qualquer motivação para conceitualizar o processo pelo qual a polícia poderia produzir um efeito sobre o crime. Até onde existe um conjunto de pesquisa que pode ser considerado a literatura sobre eficácia contra o crime, ele é, basicamente, uma coleção de estudos realizados por outras razões, que vai produzir informação a respeito dos efeitos da polícia sobre o crime quase como um subproduto. Quase nunca a pesquisa levantou questões como: A polícia pode ser eficaz contra a criminalidade ? Se a resposta for sim, quão efetiva ela pode ser? De que modo as forças policiais podem ter um efeito sobre o crime? [20]

Especificamente no caso da Polícia Civil do Piauí, pelos números apresentados, onde 74% dos inquéritos de furto foram instaurados a partir de prisões em flagrante delito, demonstra que o tempo de resposta às demandas, a partir da ocorrência de um crime, atua positivamente para a eficácia policial, entretanto, o fato de que apenas 26% decorreram de algum trabalho investigativo, demonstra quão precária é a atuação da Polícia Civil no cumprimento de seu desiderato constitucional – repressão – pois os números, por si sós, indicam que a maior parte dos indiciados por furto não o foram a partir de um trabalho da polícia investigativa e sim da polícia ostensiva, a Polícia Militar, restringindo-se a Polícia Civil, a partir da condução dos delinqüentes, seguir os trâmites legais inerentes à atividade de polícia judiciária. Deve-se salientar, aqui, a importância dos cidadãos na denúncia imediata dos crimes e na identificação dos transgressores, fator este que contribui decisivamente para a eficaz atuação da polícia ostensiva, e que representa a quase integralidade das prisões exitosas.

Tal fato relatado no âmbito da polícia piauiense no século XXI já havia sido detectado em estudo da década de 70, nos Estados Unidos, por Stanley Vanagunas:

O policiamento para controle do crime reduz-se a duas táticas principais, a reativa e a proativa. O policiamento reativo significa que o policial é encaminhado para a cena do crime por meio de uma reclamação de um cidadão, seja ele uma vítima, uma testemunha ou um segurança. Tendo obtido a evidência para tal queixa – do denunciante e de outras testemunhas – o policial começa então a ação que, espera-se, irá resultar no aprisionamento do culpado. O policiamento proativo, por outro lado, significa que os próprios policiais vão iniciar algum tipo de atividade destinada a deter o crime ou a identificar e aprisionar aqueles que violam as leis. Na medida em que as detenções são uma medida de produtividade, dessas duas táticas, relacionada ao controle do crime, os estudos demonstram que a tática reativa, aquela que depende em primeiro lugar dos cidadãos e não de uma iniciativa da polícia, é mais produtiva. Mais de 90% de todas as prisões efetuadas, por exemplo, ocorrem quando os policiais estão respondendo a denúncias de crimes feitas pelos cidadãos. [21]

Dessarte, evidencia-se que não se apresenta de fácil resposta a indagação constante no epíteto deste subcapítulo. A problemática agrava-se ainda mais quando se acrescenta aos problemas intrínsecos das instituições policiais (recursos financeiros, efetivo, atividade investigativa, tempo de resposta etc.) as causas sócio-econômicas que afetam a criminalidade, especialmente dos crimes contra o patrimônio, categoria esta em que se enquadra o delito de furto objeto do presente estudo.

Algumas correntes advogam que nunca a instituição policial, por mais equipada e preparada que esteja, será capaz de impactar positivamente, em níveis consideráveis, a criminalidade e a violência, pois as causas destas estão relacionadas, não ao despreparo ou à insuficiência de efetivo humano policial, mais sim aos fatores sociais e econômicos, geradores do desemprego, do subemprego, da falta de educação, das péssimas condições de moradia, da desagregação familiar etc., os quais escapam da atuação policial, e assim, acabam jogando a culpa da ineficiência e dos péssimos resultados policiais a outros órgãos estatais, principalmente aqueles envolvidos com a geração de empregos, com a educação e a construção de moradias.

Essa concepção, em princípio, poderia explicar o fato de o delito de furto ser o de maior incidência na capital piauiense – 37,4% do total dos crimes -, pois as questões sociais e econômicas afloram na cidade de Teresina, onde ao longo dos últimos 10 anos se viu a formação de um verdadeiro cinturão de pobreza ao redor da cidade, marcado de um lado pela falta de investimentos no campo e de outro, por políticas de incentivo às invasões de terrenos urbanos para posteriores desapropriações, cujos fins a serem alcançados são duvidosos e questionáveis. E essa política de atração não foi capaz de gerar emprego e renda em patamar mínimo para absorver essa mão-de-obra desqualificada ávida por trabalho.

Em contraposição veemente ao silogismo pobreza x criminalidade, vaticina o sociólogo Cláudio C. Beato do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais:

Uma das teses, bastante recorrente, aliás, é a de como o crime estaria "evidentemente" associado à pobreza e a miséria, a marginalidade dos centros urbanos e a processos migratórios. Este é o argumento da contaminação dos valores das pessoas pela necessidade mais premente da sobrevivência a qualquer custo. Felson, 1994, refere-se a esta perspectiva como a "falácia da pestilência": "...as coisas ruins provêm de outras coisas ruins. O crime é uma má coisa, portanto, ele deve emergir de outras maldades tais como o desemprego, pobreza, crueldade e assim por diante. Além disso, a prosperidade deveria conduzir-nos a taxas mais baixas de crime". Após identificada a suposta causa do crime, este seria rapidamente erradicado desde que houvesse vontade política. Assim, o messianismo que marca outros setores da vida brasileira não poderia estar ausente da formulação de políticas de segurança pública. Da mesma forma que a inflação deve ser abatida com um tiro apenas, o analfabetismo com uns trocados a mais nos bolsos dos professores, a distribuição de renda com alguns golpes de caneta, ou o problema da saúde com um pouco mais de recursos, a criminalidade seria combatida mediante políticas de combate à pobreza, miséria e de geração de empregos. Trata-se de um argumento moralmente ambíguo, pois procura combater a pobreza, desigualdade e miséria não pela sua própria existência (que em si mesma é injustificável), mas associando-a a uma espécie de ameaça à tranqüilidade das classes média e alta. Além disso, ele deveria prestar conta de alguns dados desconcertantes tais como o fato da criminalidade e violência não estarem associados ao crescimento do desemprego no Brasil durante a década de 80 (Coelho, 1988). Ou então, que o crescimento vertiginoso da criminalidade nos anos 60 nos Estados Unidos coincide justamente com um período de investimentos maciços em políticas assistenciais pelo governo americano (Wilson, 1983). Ou ainda, o resultado de uma pesquisa sobre população prisional no estado de São Paulo mostrando que mais da metade dos prisioneiros trabalhava na época de sua prisão, sendo em sua maioria nascidos e criados em São Paulo (Caldeira Brandt, 1986). [22]

3.2. Constatação das Hipóteses Levantadas

No projeto de pesquisa, ponto de partida do presente estudo, definiu-se dez hipóteses que seriam investigadas com o intuito de se identificar a participação e/ou contribuição negativa de cada uma delas para a concretização dos indicadores de ineficiência e ineficácia da Polícia Civil do Estado do Piauí no tocante à repressão aos delitos de furto na capital piauiense.

Para uma melhor compreensão de cada uma das hipóteses faz-se necessário distribuí-las em categorias específicas, reunidas pelos aspectos temáticos em comum. De tal arte, estarão, doravante, englobadas em três categorias, a saber: jornada de trabalho, capacitação e qualificação profissional, e gerenciamento administrativo e operacional.

3.2.1 Jornada de trabalho

Na primeira categoria previu-se as seguintes hipóteses:

a) a jornada de trabalho – 24 x 72 horas – desempenhada pela maior parte dos policiais civis gera descontinuidade na apuração dos delitos de furto;

b) a jornada de trabalho, sob a forma de plantão, com 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas, revela-se inadequada para o desempenho de uma atividade policial meramente investigativa;

c) a jornada de trabalho, sob a forma de plantão, com 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas, proporciona uma maior estafa física e mental, diminuindo a eficiência policial.

As três supracitadas hipóteses buscam verificar, basicamente, os aspectos da solução de continuidade na atividade investigativa e do desgaste biopsíquico da jornada de trabalho, e de que forma tais fatores podem contribuir para a ineficiência policial.

Como já abordado alhures, a função precípua da Polícia Civil é atuar repressivamente no combate à criminalidade, ou seja, ocorrido um fato criminógeno devem ser envidados esforços no sentido de se comprovar a sua materialidade e a respectiva autoria. Tal tarefa não é fácil, configura-se como árdua e muitas das vezes deve estar eivada de perspicácia, paciência e perseverança. As dificuldades aumentam ainda mais, principalmente no tocante à questão da elucidação da autoria do delito, quando o lapso temporal entre o fato típico e a sua persecução – início da investigação – não se dá de forma incontinenti, protraindo-se entre esses dois momentos um interstício considerável. Cada minuto, cada hora, cada dia que sucede o fato criminógeno atua como empecilho para uma atuação policial repressora eficiente. Os dados demonstram esse fenômeno perfeitamente.

In casu, como já mencionado em quadro anterior, do total de inquéritos instaurados no período sob comento, 74% se deu através da lavratura do auto de prisão em flagrante delito, patamar esse que se revela lógico, pois é nessa situação – flagare (queimar) e flagrans, flagrantis (ardente, brilhante, resplandecente) - em que se torna mais fácil a comprovação da autoria do delito. Segundo o festejado processualista penal Julio Fabrini Mirabete, o ato em situação de flagrante delito "é o ilícito patente, irrecusável, insofismável, que permite a prisão do seu autor, sem mandado, por ser considerado ‘a certeza visual do crime". [23] No flagrante, os dois requisitos básicos para o indiciamento estão bastante visíveis, palpáveis, de fácil constatação: materialidade e autoria do delito. Corroborando esse aspecto é que o legislador processual pátrio estabeleceu um prazo mais exíguo para a autoridade policial concluir o inquérito policial e encaminhá-lo à Justiça – 10 (dez) dias [24] - quando iniciado a partir de um flagrante.

Por outro lado, quando a instauração ocorrer através de Portaria, o prazo será mais elástico: 30 (trinta) dias. A justificativa é simples: nessa situação, diversamente da anterior, muitas das vezes nem a materialidade do delito estará tão explícita, imagine-se a sua autoria. Requerendo, de tal arte, um trabalho meticuloso, sério e contínuo do aparato policial, institucionalmente constituído para tal mister, objetivando a sua elucidação, respeitando, é claro, aos princípios constitucionais inerentes à dignidade da pessoa humana e da vedação às provas obtidas por meios ilícitos.

Assim, fica patente que o imediatismo na apuração do delito, pela facilidade na obtenção de indícios e de provas, está diretamente relacionado a uma maior probabilidade de êxito na investigação policial.

Na pesquisa realizada, tanto através da aplicação de questionários, como através de entrevistas e verificações in loco, identificou-se que a Polícia Civil do Piauí adota uma jornada de trabalho que se incompatibiliza com suas atribuições de polícia investigativa, o mesmo se aplicando ao contingente efetivamente dedicado às atividades afetas à elucidação dos delitos.

Nos distritos policiais da capital são adotadas, basicamente, duas jornadas de trabalho: uma de oito horas diárias e outra de vinte e quatro horas por setenta e duas horas de folga, dando-se a esta a denominação de "regime de plantão". A primeira das modalidades é exercida pelo delegado titular do distrito, escrivão de polícia e agentes de polícia que atuam especificamente na investigação policial. A outra modalidade é exercida pelos policiais dito "plantonistas" que, geralmente, são agentes de polícia, englobando, é claro, os integrantes do antigo cargo de "comissário de polícia".

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O levantamento in loco constatou que a maior parte dos distritos adota a sistemática de "equipe de investigação", onde um grupo reduzido de policiais civis, de no máximo quatro, geralmente, é encarregado das atribuições de investigação, sendo auxiliados pelos policiais de plantão, os quais estão mais afetos às atividades burocráticas e administrativas – registro de ocorrências, entrega de intimações e de inquéritos policiais, vigilância do prédio e dos detentos etc.

No questionário aplicado identificou-se que menos de 15% do contingente total dos distritos da capital atua, direta e exclusivamente, na atividade de investigação criminal e que, aproximadamente, 80% do referido contingente cumpre jornada de trabalho em "regime de plantão".

Esses dois dados, por si sós, revelam o contra-senso reinante. O efetivo da Polícia Civil é insuficiente, tanto que no interior do Estado as atribuições de Polícia Judiciária são executadas, na quase totalidade, por policiais militares, inclusive no que concerne à função do "Delegado de Polícia", entretanto, o contingente existente, na quase integralidade não atua, precipuamente, no desiderato maior que é a apuração e elucidação de condutas tipicamente criminais, ficando tal tarefa sobre os ombros de um número restrito de agentes policiais, o que se revela inglório para não dizer impossível. Considerando os 7.636 (sete mil, seiscentos e trinta e seis) delitos de furto registrados no 2º semestre do ano de 2003 na cidade de Teresina, uma média de 1.273 (um mil duzentos e setenta e três) furtos por mês ou 42,4 furtos por dia, ter-se ia, aproximadamente, em se considerando "equipes de investigação" em cada distrito policial formada em média por três policiais num total de quinze unidades policiais, 0,94 delito de furto a ser apurado diariamente por cada investigador, ou seja, somente o delito de furto na cidade de Teresina seria suficiente, em muito, para extrapolar a capacidade operacional da Polícia Civil.

Acrescenta-se ainda, que apesar de os policiais plantonistas poderem atuar na investigação, essa ação revela-se, pelo fato da descontinuidade, de pouca eficiência prática. Imagine-se se um desses policiais, ao iniciar um plantão numa segunda-feira, depara-se com uma ocorrência de furto registrada no dia anterior, onde em princípio não exista qualquer indício de autoria. Será que ele seria capaz de, exclusivamente nesse dia, o dia de seu plantão, elucidar tal crime ? Em caso negativo, e considerando que só retornaria ao trabalho na sexta-feira, a investigação não sofreria solução de continuidade ?

À primeira indagação responde-se: até que poderia ser possível tal policial elucida-lo num único expediente de plantão, mas em situações gerais isso não ocorre. Por outro lado, a não ser que a vítima fosse uma pessoa "importante", onde não só outros policiais plantonistas como aqueles integrantes da "equipe de investigação" poderiam atuar no caso, a tendência seria referida investigação sofrer solução de continuidade e cair no esquecimento, pois ao retornar na sexta-feira o policial deparar-se-ia com novos casos e novas incumbências.

Esse sistema do "regime de plantão" colide frontalmente com o imediatismo e continuidade necessários e imprescindíveis às atividades de polícia investigativa, além de não se revelar imperioso que o policial civil exerça uma jornada diária de 24 horas. Cite-se, por exemplo, a jornada dos policiais federais, os quais também atuam nos serviços de polícia judiciária, só que para a União, mas cumprem uma jornada padrão diária de oito horas.

Nessa esteira de raciocínio, algumas polícias civis do país já estão implementando flexibilização na jornada de trabalho. Em junho de 2004 a Polícia Civil do Distrito Federal reformulou a escala de plantões, mediante decreto governamental, consoante veiculação na mídia escrita, verbis:

Os policiais civis trabalham numa escala de 24 horas de plantão seguidas por 72 horas de folga. Com o decreto, o GDF dividiu a carga horária da categoria em dois turnos. No primeiro, o policial trabalha por dez horas e logo em seguida descansa 24. No segundo turno, o agente atua por 14 horas, ganhando 48 de descanso. Os policiais apostam numa melhor acomodação da escala, onde a categoria e o atendimento à população não sejam prejudicados. [25]

Pensamento diferente não foi exposado pelo Delegado Marco Aurélio Marcucci ao conceder entrevista ao portal de notícias na internet "AN CIDADES", por ocasião de sua nomeação para a Delegacia Regional de Joinville-SC:

Não são necessários dois ou três policiais à noite numa delegacia. Basta um vigia cuidar do prédio. Se houver uma Central de Plantão Policial (CPP) que funcione bem, está resolvido o problema. Porque hoje o policial civil trabalha 24 horas direto e folga 48 horas. Nossa idéia é acabar com esse regime. O policial trabalha segunda-feira o dia inteiro, folga terça e quarta para voltar quinta. E perde todo o ritmo da investigação. Se eu conseguir pôr um vigia à noite pra cuidar do prédio de uma delegacia, aí já pode liberar um policial para trabalhar durante o dia. [26]

Essa atuação descontínua no combate à criminalidade que se impõe às Polícias Civis em nosso país foi identificada, também, pela Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, ao expor Relatório sobre a tortura no Brasil:

Devido ao sistema de trabalho rotativo (turno de 24 horas seguido por 48 horas de folga) e à conseqüente falta de continuidade, não há um único policial ou delegado responsável por toda a investigação policial, o que, segundo foi informado por ONG’s e alguns promotores públicos, gera sérios problemas no que tange à qualidade da investigação ... [27]

Outro aspecto constatado pela pesquisa e que depõe contra a regra-geral imperante na Polícia Civil no tocante à jornada de trabalho refere-se aos nefastos efeitos biopsíquicos proporcionados por essa rigorosa forma de execução da atividade liberal.

O município de Teresina, em face de sua localização geográfica e situando-se entre dois rios – Parnaíba e Poti – é submetido a elevadas temperaturas durante todo o ano, geralmente não inferiores a 30º C, as quais se mantêm nas proximidades dos 40º C durante os meses de setembro a dezembro, período popularmente conhecido como "br-o-bró".

Se não bastasse o caráter de periculosidade que envolve a atuação policial, a atividade exercida sob essa condição térmica inóspita revela-se altamente insalubre e desgastante, contribuindo diretamente para os baixos níveis de eficácia policial. Geralmente, a jornada diária do "plantonista" inicia-se às 7:30 h de um dia e finda-se no mesmo horário do dia subseqüente, perfazendo, assim, 24 horas / plantão. No entanto, essa jornada não é cumprida integralmente na prática, não por desídia do policial mas sim pelos seus efeitos desgastantes. Constatou-se que a partir da meia-noite a maior parte dos policiais, quando não todos, recolhem-se aos alojamentos existentes nos próprios distritos e mantêm-se a partir de então um esquema de revezamento, definido pelos próprios policiais e sem nenhuma formalidade, denominado no meio como "quarto de hora", onde apesar da impropriedade terminológica, consiste em alternar-se a cada uma hora o policial que deverá, presume-se, ficar acordado para a guarda do prédio, vigilância de preso, registro de ocorrência e caso haja uma situação de flagrância diligenciar junto aos demais policiais para se deslocarem ao local do fato.

Evidencia-se, por conseguinte, que em não acontecendo nenhum fato "policialmente relevante", o revezamento citado estender-se-á até às 07:30 h da manhã, ocasião em que a equipe de policiais plantonistas estará repassando o "plantão" para um novo grupo de policiais que chega à delegacia objetivando o cumprimento de mais uma jornada de trabalho. Isso demonstra, portanto, na prática, a existência de vácuos, de períodos intrajornada onde o policial civil não exerce qualquer atividade. Salienta-se que o período entre meia-noite e o final do plantão corresponde a quase 1/3 da jornada de trabalho do plantonista.

Depreende-se, então, e sem margem de dúvidas que a jornada de trabalho desempenhada pela maior parte do contingente colabora incisivamente para os resultados negativos constatados, por um lado em face da descontinuidade na atividade investigativa e por outro pelo desgaste biopsíquico imposto aos policiais em decorrência da jornada longa, desgastante e que acaba gerando períodos de ócio involuntário.

3.2.2 Capacitação e qualificação profissional

Nesta categoria previu-se a seguinte hipótese: o baixo nível de capacitação, em procedimentos investigatórios policiais, da maior parte do efetivo é preponderante para os resultados insatisfatórios no que concerne à elucidação de delitos de furto.

Essa hipótese partiu de uma constatação, qual seja, de que o contingente, de uma forma ampla, não possui conhecimentos básicos e/ou suficientes para um desempenho eficiente e eficaz da atividade precípua da Polícia Civil, que reside, exatamente, no desvendamento de condutas criminógenas mediante a adoção de técnicas e mecanismos dotados de um certo rigor legal e científico.

Essa deficiência de qualificação profissional no seio da Instituição decorreu de dois fatores: primeiro, a forma de recrutação histórica dos policiais civis, onde não havia a exigência do concurso público, e os baixíssimos salários aliados à periculosidade e insalubridade da atividade não eram atrativos aos cidadãos com um maior ou certo grau de instrução, o que fez com que indivíduos analfabetos e/ou sem condições psicológicas/emocionais fossem alçados à nobre função policial investigativa, o que explica, em parte, as práticas truculentas e atentatórias à dignidade da pessoa humana, com alguns resquícios ainda sendo refletidos nos dias hodiernos; e segundo, pelo fato de ao longo do tempo não ter havido uma preocupação como os processos de capacitação e qualificação profissional.

Tais fatores vêm sendo mitigados ao longo do tempo mas em patamar ainda insuficiente. A exigibilidade do concurso para ingresso no serviço público e a formação acadêmica em Direito para os delegados de polícia, frutos da Carta Política de 1988, proporcionaram uma melhoria razoável no grau de instrução dos policiais civis, o que pôde ser percebido no último concurso público realizado no ano de 2.000, onde um número significativo de agentes e escrivães de polícia aprovados já eram detentores de graduação em ensino superior. Entretanto, apesar da percepção nesse sentido, o número de policiais que ingressou nesse concurso, que além das duas citadas carreiras contemplou o ingresso de delegados de polícia, representou menos de 20% contingente então existente.

Recentemente, através da Lei Complementar Estadual nº 37 [28], de 09.03.2004, que ainda se encontra com alguns dispositivos pendentes de efetiva aplicação na prática, principalmente no tocante à remuneração estipulada, passou-se a exigir como graduação mínima para ingresso na Polícia Civil do Estado do Piauí, no tocante aos demais cargos, exceto o de delegado de polícia, a formação superior em qualquer área. Vislumbra-se, com isso, para o futuro e desde que os concursos possam ocorrer de forma mais sistemática, uma possibilidade de melhoria gradual no nível de instrução do contingente policial.

Aliado a esses aspectos, a construção de um prédio próprio para a Academia de Polícia Civil, no ano de 2.000, representou um grande avanço para a Instituição, além dos repasses financeiros anuais efetivados pelo Ministério da Justiça, através da Secretaria Nacional de Segurança Pública, para implementação de projetos na área de capacitação e formação profissional., o que passou a ocorrer a partir do ano de 2002.

Não obstante esses avanços em prol de uma melhoria na formação e qualificação do servidor policial civil, e em face dos aspectos alhures abordados, a situação atual é crítica, tanto no que concerne à amplitude de alcance dos cursos de capacitação como a periodicidade em que os mesmos são realizados.

Na pesquisa realizada, computando-se um número significativo de policiais, constatou-se que 3% nunca haviam participado de qualquer curso e que 41% só haviam participado, até então, de até dois cursos ofertados pela Instituição. Comparando-se esses dados com o tempo médio de trabalho do contingente, que oscila entre quinze e vinte anos, evidencia-se quão ineficiente tem sido o processo de capacitação na Polícia Civil, fruto de um descaso histórico tanto dos gestores da pasta como da não priorização da Segurança Pública pelos governantes estaduais.

E a situação se torna ainda mais grave quando se particulariza a espécie de treinamento a que o policial já fora submetido. Presume-se, por ser a Polícia Civil a polícia judiciária estadual, que os cursos ofertados sejam priorizados para a área de investigação e inteligência, entretanto, não foi isso que se constatou. 26% dos policias pesquisados jamais fez algum curso nessa área, 33% fez somente um curso e 26% fez somente dois cursos, ou seja, 85% do universo representativo pesquisado participou de menos de três cursos durante toda a vida profissional na Instituição.

Outro ponto que chamou atenção na pesquisa e que decorre, evidentemente, do reduzido número de cursos a que foi submetida a grande maioria dos policiais, reside no grande lapso temporal entre os cursos, ou seja, inexiste uma periodicidade razoável entre a realização de um curso e outro, o que revela, mais uma vez, uma falta de planejamento institucional. 17% dos entrevistados afirmaram que há mais de quatro anos não participam de nenhum curso; 17%, entre três e quatro anos; 13% entre dois e três anos, ou seja, 47% dos policiais pesquisados, quase a metade, há mais de dois anos não participou de nenhum curso promovido pela Instituição.

E esse cenário onde reina a baixa qualificação, principalmente no tocante à própria atividade investigativa que é a seara de atuação precípua da polícia judiciária, e que pôde ser explicitado pelos números aqui apresentados, merece ser ilustrado com o relato de um delegado de polícia por ocasião de entrevista realizada durante a pesquisa científica. Segundo referido policial, egresso do último concurso para delegado, ao assumir pela primeira vez a titularidade de um distrito deparou-se com o quadro aqui abordado, ou seja, um grupinho restrito de policiais como "equipe de investigação" e a grande maioria restante como "plantonistas". Vislumbrando que apenas o pessoal afeto aos serviços investigatórios não seria capaz de atender a demanda de ocorrências registradas diariamente, resolver implementar a seguinte prática: no início de cada plantão, cada policial plantonista receberia um número "x" de ocorrências para serem investigadas dentro de certo período, ao findo do qual seriam apresentados os resultados, através de relatório circunstanciado acerca das providências adotadas e dos resultados obtidos. Para sua surpresa, a gritaria foi geral. Um dos policiais plantonistas, após receber as ocorrências que ficariam sob seu encargo, dirigiu-se na ocasião ao delegado e o indagou sobre por onde começaria a investigação. O delegado, em tom irônico, respondeu: "meu caro, você tem vinte anos de polícia e não sabe como iniciar uma investigação, imagine eu que só tenho quatro meses".

Diante do exposto, ficou patente que o baixo nível de instrução da maior parte do contingente, aliado ao ínfimo grau de qualificação em atividades de investigação e inteligência policial contribui decisivamente para os resultados ineficazes da Polícia Civil na elucidação dos delitos objeto deste estudo. Imagine-se para a apuração de crimes que envolvem o desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e aqueles praticados no âmbito da internet, os quais, dentre outros conhecimentos e habilidades, requererão o domínio de legislações administrativas e fiscais, além de conhecimentos em linguagens de programação para computador.

3.2.3. Gerenciamento administrativo e operacional

Nesta categoria foram apresentadas as seguintes hipóteses no projeto de pesquisa:

a) o fato de a maior parte do efetivo de cada distrito policial encontrar-se alocado no desempenho de atividades-meio contribui para os péssimos resultados na atividade-fim (investigação policial);

b) a distribuição desproporcional (população / incidência criminógena) do efetivo policial civil entre os diversos distritos da capital impacta negativamente no deslinde dos delitos de furto;

c) a ausência de mecanismo de avaliação sistemática da performance dos distritos policiais e, por via indireta, dos profissionais que integram o efetivo dessas unidades, proporciona um descompromisso na apuração e elucidação dos crimes de furto.

Como já abordado anteriormente, constatou-se que a quase integralidade do efetivo policial civil cumpre jornada de trabalho em regime de plantão e ficou patente que esta sistemática de trabalho mostra-se incompatível com uma eficiente e eficaz atividade investigativa. Procurou-se, então, identificar que atividades, efetivamente, os policias plantonistas desempenham num período de 24 horas.

No questionário aplicado, arrolou-se diversas supostas atividades e solicitou-se aos policiais pesquisados que escolhessem dentre as opções aquela que os policiais plantonistas desempenhavam prioritariamente. 50% do universo pesquisado indicou o registro de ocorrências como a principal atividade exercida; 35% assinalou a vigilância do prédio onde funciona a unidade policial; 12% indicou o atendimento de questões não-criminais e apenas 4% escolheu a opção investigação de ocorrências registradas.

O resultado dessa pesquisa, sem sombra de dúvidas, demonstra como o policial civil no estado do Piauí, em sua maioria, encontra-se em desvio de função. As atividades administrativas, meramente burocráticas, consomem a quase totalidade do tempo das jornadas diárias, prejudicando, dessarte, a realização de investigações e ações relacionadas à elucidação de crimes.

Consoante relatório extraído do Sistema Eletrônico de Ocorrências da Polícia Civil, desde a sua implantação até a data de 07.04.2005, haviam sido registradas 82.672 ocorrências, dessas 29.813, ou seja, 36,06%, referiam-se exclusivamente às naturezas do fato classificadas como "Perda de Documento" (33,70%), "Perda de Objeto ou Coisa" (1,34%) e Perda de Título de Crédito (1,02%).

Levantamento realizado no 1º semestre do ano de 2004 – janeiro a junho – em quatro distritos policiais da capital – 1º DP, 4º DP, 7º DP, 8º DP e 12º DP – no que concerne às citadas naturezas de fato, foi estimado e extrapolado para todos os quinze distritos policiais da capital para o período de um ano e chegou-se à conclusão que o registro de tais ocorrências, considerando-se uma média de 15 minutos para o registro individual, consumiria anualmente 6.469 horas ou aproximadamente 270 dias por ano.

Ressalta-se que ocorrências da espécie não vão gerar nenhum desdobramento no âmbito policial e a única finalidade é a obtenção por parte dos queixosos do boletim de ocorrências para que possam, por exemplo, tirar a 2ª via de um documento ou apresentar contra-ordem junto à instituição bancária.

Trata-se, assim, de uma atividade sem nenhum interesse do ponto de vista policial e que só faz consumir, de forma intensa, o tempo em serviço do já escasso efetivo policial.

Segundo a citada pesquisa, cujos resultados foram apresentados anteriormente, a atividade de vigilância do prédio da delegacia, e conseqüentemente dos presos ali detidos, ficou em 2º lugar, refletindo um dos maiores, se não o maior problema enfrentado pela Polícia Civil na capital, sob a óptica do gerenciamento administrativo. De há muito existe um colapso no sistema prisional de custódia no estado do Piauí. Há alguns meses o Secretário de Justiça e dos Direitos Humanos, diante da superlotação na Casa de Custódia, vedou a recepção de novos detentos até que a lotação carcerária se adequasse a níveis administráveis. Isso gerou, desde então, um gravíssimo problema nos distritos policiais, onde os presos começaram a se amontoar. De lá para cá, mesmo com constantes disponibilizações de vagas pelo citado estabelecimento prisional, a situação dos distritos policiais só fez piorar. Em 19.04.2005, segundo levantamento realizado pela Delegacia Geral da Polícia Civil, existiam duzentos presos nos distritos da capital, alguns deles com 16, 17, 19 e até 20 presos. [29]

Esse aspecto, representa, assim, mais um desvirtuamento de função do policial civil, o qual fica impossibilidade de exercer a atividade-fim para ficar vigiando preso, o que, entretanto, ainda assim, não tem impedido sistemáticas fugas.

Outra atividade indicada na pesquisa e que pôde ser constatada in locu é a utilização dos policiais para atendimento de demandas da comunidade que não estão diretamente afetas a uma conduta criminosa, enquadram-se nesse aspecto, principalmente, consoante denominação no meio, as famosas "brigas de vizinho" ou "brigas de família". Trata-se de situações fáticas ocasionadas geralmente em face da precariedade da infra-estrutura básica e de saneamento das habitações, principalmente aquelas localizadas em favelas e grotões, ou divergências no seio das próprias famílias e que teriam como foro adequado a Prefeitura Municipal, concessionárias de serviços públicos, órgãos de assistência social etc., mas em face da proximidade com o órgão policial e do imediatismo na solução dos problemas, conduta inerente à própria essência do ser humano, acabam por desaguar num distrito policial, desvirtuando, mais uma vez, o foco de sua atuação.

Pôde-se constatar ocasiões em que enquanto o delegado realizava uma audiência para supostamente solucionar um conflito da espécie acima referida, na sala ao lado, o escrivão, sozinho, colhia o depoimento de uma testemunha alusivo a um bárbaro crime de homicídio duplamente qualificado.

Esses aspectos, por si sós, convalidam a primeira hipótese levantada. A utilização de policiais em atividades administrativas, ou burocráticas, e o desempenho de ações afetas a questões não-criminais contribui, decisivamente, para consumir o tempo do policial civil à disposição da Instituição, colocando a atividade investigativa num plano secundário de atuação.

Quanto à segunda hipótese – distribuição desproporcional do efetivo policial entre os diversos distritos policiais desconsiderando-se os aspectos população e incidência criminógena – inicialmente buscou-se identificar o instrumento legal em que se funda a atual divisão das áreas circunscricionais afetas a cada um dos quinze distritos policiais da capital. Apesar de inquirições a delegados mais antigos, não se conseguiu identificar tal documento, havendo, inclusive, contradição no que concerne à sua espécie: se lei, decreto governamental ou simples portaria do Secretário de Segurança Pública. O único ponto pacífico acerca dessa questão foi que o atual modelo de divisão das áreas territoriais de cada unidade policial civil na capital remonta há mais de vinte anos ou até mais do que isso.

Se se pensar que em 1970 a população de Teresina era, segundo dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –, de 220.487 habitante e em 2.000 já atingira o patamar de 715.360 habitantes, e que em 1980 89,8% da população concentrava-se na zona urbana da capital, percentual que passou para 94,7% em 2000, também segundo o IBGE, aliada à proliferação de uma centena de vilas e favelas no entorno do município, evidencia-se, só por estes aspectos como a distribuição atual se encontra totalmente incompatível diante das profundas alterações, territoriais e humanas, ocorridas ao longo das últimas duas décadas.

Utilizando-se os quantitativos populacionais divulgados pelo IBGE para o ano de 2.000 no tocante à cidade de Teresina, no qual estão consignados os números de cada bairro da capital, calculou-se, de forma aproximada, a população residente de cada circunscrição policial.

Ressalta-se a impossibilidade de mensuração fidedigna, em face de o citado instituto ter indicado o quantitativo populacional por bairro, pois há casos de um mesmo bairro ter áreas em mais de uma unidade policial, nesses casos, identificou-se qual o distrito que contemplava a maior parte e incluiu-se a população daquele bairro integralmente na circunscrição do mesmo.

Eis, então, na seqüência, gráfico indicando, de forma decrescente, a população residente em cada circunscrição policial, da capital:

Analisando-se o gráfico acima se evidencia que os 05 (cinco) DP’s com maior população residente nas respectivas áreas circunscricionais – 8º, 4º, 7º, 11º e 9º - correspondem a aproximadamente 55% da população total, apesar de representarem apenas 33% do número total de distritos.

Esses 05 (cinco) DP’s, conjuntamente, apresentam uma população residente 3,58 vezes superior àqueles 05 (cinco) com menor população residente.

O 8º DP, o de maior população residente em sua área circunscricional, englobaria, sozinho, em termos populacionais, o 1º, 5º, 21º, 22º e 6º DP’s.

Esses dados, evidenciam a desproporcionalidade reinante hodiernamente, a qual poderia ser minimizada se a estrutura em termos de recursos humanos e materiais fosse disponibilizada proporcionalmente à demanda populacional, entretanto, não é o que ocorre.

Com base na população residente em cada circunscrição e nas escalas de plantão quantificou-se o número de servidores lotados em cada distrital para cada 10.000 habitantes. Eis o resultado:

A média de servidores nos distritos da capital para cada 10.000 habitantes é de 8 (oito), no entanto, alguns apresentam quantitativo inferior ou igual à metade da média, é o caso do 4º, 7º, 8º, 9º e 11º DP’s.

O 1º DP apresenta-se como o 2º melhor contingente de servidores quando considerada a população residente, porém, se comparássemos com a população flutuante, que desconhecemos, o número seria bem inferior aos 19 (dezenove) lá consignados.

Os outros dois melhores estruturados, 5º e 6º DP’s, com respectivamente 20 e 10 servidores para cada 10 mil hab., não conseguem transformar esses dados em resultados favoráveis no que concerne ao nível de eficiência, pois se encontram entre aqueles com pior desempenho no tocante ao número de inquéritos instaurados comparativamente às ocorrências registradas.

Um estudo interno da Polícia Civil, datado de outubro de 2002 e intitulado de "Perfil dos Distritos Policiais da Capital do Piauí" [30], realizado pelo então Diretor do Departamento de Polícia Judiciária da Polícia Civil, atual Unidade de Polícia Judiciária, procurou comparar as unidades circunscricionais no tocante à incidência criminógena, calculando, para tanto, a chamada "Taxa de Risco" a qual consiste, basicamente, em dividir o número de crimes, em um determinado período, pela população de determinada área e multiplicar o resultado pelo fator 10.000 ou 100.000 de acordo com o interesse do estudo. A importância da citada taxa é que permite, por utilizar valores relativos – crime / população -, comparar áreas distintas populacionalmente.

No referido estudo utilizou-se os dados do 1º semestre/2002 e seis crimes – homicídio, tentativa de homicídio, lesão corporal de natureza grave, estupro, furto e roubo -, tendo-se chegado ao seguinte gráfico indicativo da criminalidade por distrito policial:

Observa-se pelo gráfico acima, e é plenamente justificável, que a área do 1º DP seja aquela com maior Taxa de Risco, pelo fato de para ela confluírem diariamente pessoas de todos os bairros da capital, logo, em face da grande população flutuante, maior é a incidência de crimes. Por outro lado, a sua população residente é inferior a 18.000 pessoas, o que torna ainda mais elevada a taxa de risco.

O que significa uma Taxa de Risco de 904 / 10.000 hab, como a obtida para o 1º DP ? Representa que num universo de 10.000 habitantes que transitam pela área central da cidade 904 (novecentos e quatro) estão sujeitos a serem vítimas de um dos delitos acima discriminados.

Por outro lado, e diversamente do pensamento da maioria, o 5º DP não é o menos violento da capital. Abstraindo-se o 1º DP, em face de suas peculiaridades já discutidas, aquele se apresenta como o de maior Taxa de Risco, na faixa de 278 por 10.000 hab.

Já o 8º DP, em face do grande contingente populacional em sua área circunscricional, apresenta as menores Taxas de Risco, equiparando-se ao 9º DP com 84 crimes / 10 mil hab., só sendo suplantado, respectivamente, pelo 7º DP, 21º DP e 22º DP.

Pelo exposto, evidencia-se afirmativamente a ocorrência e validade da hipótese levantada. A distribuição do efetivo policial sem levar em conta os critérios populacional e da escalada criminosa potencializa os insatisfatórios resultados da Polícia Civil para a apuração dos delitos de furto.

Por fim, passa-se à análise da terceira hipótese levantada no âmbito da categoria concernente ao gerenciamento administrativo e operacional, e que diz respeito, especificamente, aos mecanismos de avaliação sistemática da performance dos distritos policiais e dos policiais que nelas atuam.

Uma das mais modernas ferramentas de gestão da atualidade são os mecanismos de avaliação de performance quanto à eficiência, eficácia e efetividade dos processos. Prática já internalizada de há muito tempo por grandes empresas, tanto públicas como privadas, em âmbito mundial. Esses mecanismos de avaliação retiram o caráter personalíssimo e subjetivo dos arcaicos métodos outrora utilizados para mensurar desempenhos de atividades e dos recursos humanos envolvidos, inserindo técnicas científicas e cálculos estatísticos com caráter eminentemente objetivo.

Um desses mecanismos corresponde aos "Indicadores de Desempenho" que são medidas para avaliar o desempenho dos processos de forma a poder melhorar os resultados ao longo do tempo, bem como aquilatar o grau de satisfação dos beneficiários de determinado processo. Podem servir de exemplos desses indicadores na seara policial: números de armas apreendidas / mês, quantidade de drogas apreendidas / mês, números de pessoas presas em flagrante delito / semana etc.

Acerca da importância da utilização dos citados indicadores para as instituições policiais, assim se manifesta Mary Ann Wycoff:

Dadas as limitações da habilidade policial em lidar com o crime e a falta de credibilidade das medidas de crimes denunciados, torna-se particularmente importante desenvolver indicadores do que as forças policiais estão fazendo em relação ao esforço de lidar com o crime. Como foi sugerido anteriormente, despender mais dinheiro ou contratar mais gente não significa "estar agindo": a questão crítica é como o dinheiro e as pessoas estão sendo usados. [31]

Luiz Eduardo Soares também defende a importância de mecanismos de avaliação, ressaltando, entretanto, que defini-los não é uma tarefa fácil, verbis:

A avaliação do desempenho policial talvez seja uma das funções mais desafiadoras e complexa de todas as que existem na segurança pública. Pode parecer que estou exagerando. Não estou. Basta examinar um exemplo banal para que se compreenda meu argumento. Digamos que haja uma queda no número de crimes cometidos, que é aquilo que se deseja e que sintetiza a finalidade do trabalho da polícia. Não seria um indicador claro do êxito policial ? Não necessariamente. A queda pode ter sido o resultado de um declínio pronunciado na qualidade dos serviços policiais em alguma região vizinha, que ofereça os mesmos atrativos aos criminosos e que, em função da decadência da performance da polícia, seriam levados a optar por agir nesse outro bairro ou nessa cidade vizinha, onde ocorreriam menos riscos de serem presos. [32]

Apesar da notória imprescindibilidade de mecanismos de avaliação de desempenho institucional e profissional de cada policial, a Polícia Civil do Estado do Piauí ainda não internalizou, dentre suas ferramentas de gestão administrativa e operacional, a utilização sistemática desses mecanismos.

E isso fica bem patente por ocasião da transferência ex officio de policiais entre os distritos policiais, por determinação do Delegado Geral ou do Secretário de Segurança Pública. É uma prática histórica no âmbito da Polícia Civil do Piauí um remanejamento geral entre os delegados de polícia da capital como primeiro ato administrativo de um Delegado Geral logo após a sua assunção nesse cargo. Essa espécie de "rodízio" não se fundamenta em nenhum sistema de avaliação objetiva, visa a somente produzir efeitos midiáticos, mudar por mudar, sendo recheado de interesses de cunho meramente pessoal ou político.

Ao praticar atos dessa estirpe, sem nenhum embasamento em critérios avaliatórios objetivos acaba-se por gerar injustiças e contribuir, ainda mais, para a baixa estima que envolve a grande maioria do efetivo policial. Gera injustiça quando, muitas das vezes, o gestor do sistema de segurança diante de uma simples denúncia contra policial, como forma de dar uma resposta pronta e rápida à sociedade, o transfere de um distrito para outro, utilizando-se da chamada prática da "verdade sabida", a qual foi extirpada do ordenamento jurídico pátrio com o advento da Carta Magna de 1988 por colidir frontalmente como os princípios constitucionais pertinentes ao contraditório e à ampla defesa. Contribui para a baixa estima porque o policial sabe que independentemente de sua atuação, mesmo por mais eficiente e eficaz que possa ser, qualquer mudança na cúpula da Instituição ou do Sistema de Segurança Pública do Estado, ou mesmo prescindindo dessa mudança, a qualquer momento poderá ser transferido para outra unidade, caindo por terra todo um trabalho desenvolvido e que já começava a frutificar.

Só para ilustrar essa questão veja-se matéria jornalística publicada na imprensa local:

O delegado geral da Polícia Civil (...) confirmou ontem que na próxima semana será feito um remanejamento entre todos os chefes de investigação das delegacias especializadas e distritais de Teresina (...) a decisão foi tomada na noite de anteontem durante uma reunião com o secretário (...) e teve como causa algumas denúncias recebidas pela cúpula da Polícia Civil, mas também terá como objetivo motivar os policiais (...) afirmou que mudanças sempre são bem-vindas, em qualquer campo de atividade, até porque os policiais que serão remanejados terão oportunidades em outras áreas da cidade, atuar (sic) com novos companheiros e conhecer novas atividades. [33]

Analisando o texto noticioso, evidencia-se que o remanejamento propalado está embasado exclusivamente em denúncias – causa subjetiva e não objetiva. Merece indagar se todos os chefes de investigação foram denunciados, se não, estar-se-á diante de uma flagrante injustiça perante os não-denunciados, além da aparente aplicação em relação os outros da acusação sob a forma de "verdade sabida". Outro aspecto interessante que deixa transparecer a intelecção do noticioso é que a decisão pelo rodízio foi proveniente de uma reunião exclusiva entre o Delegado Geral e o Secretário de Segurança, num aparente descumprimento aos princípios norteadores da Polícia Civil: hierarquia e disciplina, a partir do momento em que as demais autoridades policiais foram excluídas de tal processo decisório, o que é corroborado no final da reportagem quando o Delegado Geral explicita que os delegados titulares não terão o direito de opinar ou apontar qualquer nome. Imagine-se os graves conflitos que podem ser gerados por tal decisão. Por exemplo, se determinado chefe de investigação for escolhido para atuar num distrito cujo delegado seja um desafeto seu, a situação será realmente constrangedora e dificilmente tal escolha poderá gerar efeitos positivos no combate à criminalidade.

E o mais intrigante de tudo o que foi exposto é tentar deixar transparecer para a opinião pública que tal remanejamento poderá trazer efeitos benéficos concretos, inclusive para os próprios policiais, como se um simples chefe de investigação pudesse reverter a realidade fática criminal de uma área circunscricional, abstraindo-se toda a problemática já minudentemente abordada neste estudo.

Fica patente, assim, a importância da existência de mecanismos de avaliação de caráter objetivo para que se possa mensurar a atuação policial, tanto sob a óptica individual como do ponto de vista de uma determinada unidade ou distrito.

No entanto a implementação e eficiência desses sistemas avaliatórios está diretamente relacionada à existência de informações fidedignas, completas e que sejam sistematicamente atualizadas, aspectos esses não presentes na atual realidade da Polícia Civil do Piauí. Os processos internos, tanto administrativos como operacionais, são extremamente arcaicos, com ínfimo nível de informatização, isso se deve, em parte, acredita-se, em dois aspectos: de um lado, a dependência financeira da Instituição em relação à Secretaria de Segurança Pública, o que de certa forma tolhe eventuais intenções de se implementar mecanismos e sistema informatizados específicos para a Polícia Civil, cujos integrantes, por estarem vivenciando o dia-a-dia da corporação seriam mais qualificados para tal mister, de outro lado, pode-se atribuir à falta de visão em acompanhar as tendências modernas e tecnológicas a que foram submetidas as principais Polícias Civis do país. Só para ilustrar esse último aspecto, um ex-Secretário de Segurança, ao substituir as máquinas de escrever por computadores e impressoras em alguns distritos policiais da capital, afirmou categoricamente que havia informatizado a Polícia Civil do Piauí. Quão ingênuo e de horizonte limitado demonstrou ser esse gestor público.

Só para corroborar o baixo nível de informatização institucional e a precarização dos processos administrativos e operacionais no que concerne à produção de informações, cite-se o exemplo atinente à obtenção dos números da criminalidade.

Até bem pouco tempo, antes da implantação do sistema de Boletim Eletrônico de Ocorrências na quase totalidade dos distritos policiais e delegacias especializadas da capital era assim que eram colhidos os dados estatísticos da capital: no início da manhã um servidor da Delegacia Geral ligava para todas as unidades policiais e preenchia manualmente uma planilha com as ocorrências registradas no dia anterior, posteriormente, essa planilha era encaminhada para o DPM – Departamento de Polícia Metropolitana – para que este órgão passasse para uma planilha digitada a ser entregue ao DPJ – Departamento de Polícia Judiciária – os números alusivos aos distritos policiais, sendo o mesmo procedimento adotado para o DPE – Departamento de Polícia Especializada, órgão hierarquicamente superior às delegacias especializadas ( Polinter, Homicídios, Mulher, Menor, Entorpecentes etc.). Ao receber as planilhas digitadas do DPM e DPE o DPJ passava as informações para outra planilha no computador, que congregaria novamente as ocorrências dos distritos e delegacias especializadas.

A deficiência dessa sistemática salta aos olhos. Veja-se alguns pontos de estrangulamento. Quem garante que o policial lotado no distrito irá ser criterioso no repasse das informações, considerando que já está saindo de um plantão de 24 horas. Quem garante que o seu interlocutor, na Delegacia Geral, ouvirá de forma correta a ocorrência e o seu respectivo quantitativo. Quem garante que o servidor lotado no DPM ou DPE repassará para a planilha digitada o número correto de determinado crime, pela falibilidade humana ou por não entender a planilha preenchida a mão. Quem garante que o servidor do DPJ também não poderá incidir em erro quando do preenchimento da planilha nesse órgão. Se não bastasse tudo isso, questiona-se qual a utilidade efetiva de tais precários dados que se restringem exclusivamente a consignar em planilhas os dados absolutos da criminalidade, sem discrimina-los qualitativamente. Evidencia-se, assim, que tais informações não apresentam nenhum critério de fidedignidade e por se restringirem aos "dados brutos" desprovidos, por exemplo, de informações acerca das pessoas envolvidas – autor e vítima -, hora e local do crime, causa motivadora, não se prestam para qualquer desdobramento no tocante à análise criminal e na produção de conhecimento útil à atuação preventiva dos órgãos de segurança.

De tal arte, pelo exposto, resta indubitavelmente provada a hipótese de que a inexistência de mecanismos objetivos de avaliação sistemática do policial civil e das unidades policiais contribui decisivamente para a ineficiência e ineficácia dos delitos de furto, deixando-se transparecer que a Polícia Civil no Piauí equipara-se a um barco a deriva, incapaz de traçar metas e objetivos e de avaliar o nível de consecução dos mesmos.

Sobre o autor
Heitor Araripe de Sousa Neto

delegado da Polícia Civil do Estado do Piauí, coordenador master do Sistema Infoseg, especialista em Ciências Criminais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA NETO, Heitor Araripe. Crime de furto:: fatores preponderantes para a baixa resolutividade em Teresina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 998, 26 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8165. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Monografia elaborada para fins de avaliação final do Curso de Especialização em Ciências Criminais, modalidade <i>lato sensu</i>, promovido pela Universidade Federal do Piauí conjuntamente com o Instituto de Estudos Jurídicos.

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