RESUMO
O presente trabalho visa a identificar quais as causas que potencializam a baixa eficiência da Polícia Civil do Estado do Piauí, especificamente no espaço territorial de sua capital e no tocante à elucidação do delito de furto - a conduta criminógena de maior incidência. O estudo não focou os fatores que geralmente, de forma simplista, são utilizados como justificadores de uma atuação inexpressiva do aparato policial: efetivo insuficiente e recursos materiais deficitários. Buscou-se correlacionar os resultados inexpressivos na elucidação e persecução desse delito a aspectos administrativos e operacionais internos da Instituição, como a jornada de trabalho, nível de capacitação e qualificação profissional, mecanismos de gerenciamento e avaliação das ações, e, ao final, pugnou-se por soluções de fácil implementação e de baixo custo.
Palavras-chaves: furto – fatores de resolutividade – cifras negras – Teresina.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. CONTEXTUALIZAÇÃO. 2.1. Polícia Civil: Uma Polícia Judiciária. 2.2. Sistema de Justiça Criminal: Os Elos da Ineficiência. 2.3. "Cifras Negras" e "Taxas de Atrito": Duas Faces da Mesma Moeda. 2.4. Delito de Furto em Teresina: Uma "Taxa de Atrito" Real. 3. FATORES IMPULSIONADORES DA BAIXA EFICIÊNCIA POLICIAL. 3.1. Qual o Impacto que a Polícia tem sobre o Crime? 3.2. Constatação das Hipóteses Levantadas. 3.2.1. Jornada de trabalho. 3.2.2 Capacitação e Qualificação Profissional. 3.2.3 Gerenciamento Administrativo e Operacional. 4. PROPOSTAS PARA MINIMIZAÇÃO DOS RESULTADOS INEXPRESSIVOS. 4.1 Concentração do efetivo policial numa jornada diária de oito horas. 4.2 Massificação dos Cursos de investigação policial. 4.3 Criação do núcleo de perda de documentos / objetos / títulos de crédito. 4.4 Implantação da rede de proteção social. 4.5 Reformulação das Áreas Circunscricionais na capital. 4.6 Implantação de Sistema de Avaliação de Performance. 5. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.
1. INTRODUÇÃO
A impunidade apresenta-se hodiernamente como um dos principais fatores que contribuem para a escalada da violência e da criminalidade no país. O descrédito da grande maioria da população em relação às instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal é patente. Cada ente que compõe esse sistema procura colocar no outro ou nos outros a culpa pela ineficiência e ineficácia próprias. A Polícia Civil, a porta de entrada do poder de persecução criminal estatal, muitas das vezes procura transparecer à opinião pública que faz a sua parte – efetua prisões, desvenda crimes – mas que esse trabalho é prejudicado quando os magistrados concedem liberdades provisórias e relaxam prisões em flagrante. O Judiciário, por sua vez, defende-se, alegando que a culpa está na baixa qualidade dos inquéritos policiais, desprovidos de provas materiais contundentes ou, quando as têm, muitas das vezes foram obtidas através de meios ilícitos.
Foi nesse quadro de insegurança e instabilidade jurídicas que se propôs atuar o presente estudo, não no sentido de se demonstrar as mazelas e incoerências do Sistema, nem colocar um ente em conflito com outro, mas sim de buscar, a partir de constatação fática, identificar, no âmbito intrínseco de uma Instituição específica, delimitada territorial e temporalmente, que fatores contribuiriam de forma relevante para resultados tão pífios e insatisfatórios, que acabam redundando numa prestação de serviço à comunidade bem aquém das necessidades desta. E, a partir das constatações elencadas, pugnou-se por propostas que viessem, não a resolver todos os problemas, mas sim minimizá-los, de forma a proporcionar ao público-alvo dessa Instituição um serviço de melhor qualidade e mais eficiente.
Escolheu-se como foco de estudo a Polícia Civil do Estado do Piauí, restringindo-se aos distritos policiais do município de Teresina e sua atuação no tocante ao delito de furto, por se tratar da conduta delituosa de maior incidência na capital piauiense.
Com base em dados da própria Instituição, alusivos ao 2º semestre do ano de 2003, evidenciou-se, em se comparando o número de inquéritos policiais instaurados e o número de ocorrências registradas nos citados distritos para esse delito, o elevado grau de ineficiência e ineficácia.
A partir desse problema – o ínfimo índice de resolutividade da Polícia Civil na cidade de Teresina para os delitos de furto –, levantaram-se as hipóteses abaixo, no sentido de evidenciar se as mesmas teriam correlação com tais inexpressivos resultados:
a) a ausência de mecanismos de avaliação sistemática da performance dos distritos policiais e, por via indireta, dos profissionais que integram o efetivo dessas unidades proporciona um descompromisso na apuração e elucidação dos crimes de furto;
b) a jornada de trabalho – 24 x 72 h – desempenhada pela maior parte dos policiais civis gera descontinuidade na apuração dos delitos de furto;
c) a jornada de trabalho, sob a forma de plantão, com 24 horas ininterruptas, revela-se inadequada para o desempenho de uma atividade policial eminentemente investigativa;
d) a jornada de trabalho, sob a forma de plantão, com 24 horas ininterruptas, proporciona uma maior estafa física e mental, diminuindo a eficiência policial;
e) o fato de a maior parte do efetivo de cada distrito policial encontrar-se alocado no desempenho de atividades-meio contribui para os péssimos resultados na atividade-fim (investigação policial);
f) a distribuição desproporcional (população / incidência criminógena) do efetivo policial civil entre os diversos distritos da capital impacta negativamente no deslinde dos delitos de furto;
g) as áreas circunscricionais dos distritos policiais de Teresina, definidas há mais de vinte anos, contribuem para a ineficiência da atuação policial no tocante à apuração dos delitos de furto;
h) a incompatibilidade entre as circunscrições dos distritos policiais e as áreas geográficas de atuação dos Batalhões da Polícia Militar propicia uma menor integração entre as instituições, enfraquecendo-as e minimizando os resultados operacionais preventivos e repressivos;
i) o baixo nível de capacitação, em procedimentos investigatórios policiais, da maior parte do efetivo é preponderante para os resultados insatisfatórios no que concerne à elucidação dos delitos de furto.
Reitera-se que o objetivo geral proposto pelo estudo foi de propor melhorias para a atuação da Polícia Civil na capital piauiense, identificando-se pontos de ineficiência – administrativa e operacional - e postulando-se soluções racionais e que não demandassem elevado dispêndio de recursos financeiros. Como objetivos específicos, estipulou-se:
a) identificar as causas que direta ou indiretamente impactam negativamente a Instituição na elucidação do referido delito contra o patrimônio;
b) mensurar o impacto de cada uma dessas causas na consecução de resultados aquém do esperado pela comunidade teresinense;
c) propor soluções criativas, racionais e de baixo custo para implementação, visando a uma melhoria considerável dos resultados operacionais da Polícia Civil;
d) subsidiar os órgãos de cúpula da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Civil na implementação de mudanças internas de cunho administrativo, gerencial e operacional no sentido de, dentre outros benefícios, propiciar segurança e racionalidade ao fluxo de informações de interesse policial, elevar a auto-estima do profissional policial, profissionalizar o policial civil para a execução de seu mister, possibilitar a tomada de decisões fundamentada em critérios técnicos e objetivos etc.
Utilizou-se como metodologia de estudo levantamento documental e de dados estatísticos junto à Secretaria de Segurança Pública e aos diversos órgãos que compõem a Delegacia Geral da Polícia Civil, especialmente a UPJ – Unidade de Polícia Judiciária, além da aplicação de questionário e entrevistas tendo como público-alvo os policiais civis – delegados, agentes e escrivães - , bem como visita in locu a diversos distritos policiais da capital.
Não é despiciendo ressaltar a importância do presente estudo, justificando-o. Por um lado, contemplou a conduta criminal que mais aflige a população teresinense: o furto, conjuntamente com o roubo, representa aproximadamente 60% dos doze delitos mais graves praticados em Teresina; por outro lado, buscou-se identificar as principais causas que contribuem para o baixo índice de elucidação daquele delito, o que, sem sombra de dúvidas, contribui decisivamente para a impunidade e para o descrédito da população em geral relativamente à Instituição policial sob foco.
O resultado do estudo é objeto de detalhamento nos três capítulos que se seguem, onde no primeiro buscou-se uma contextualização do tema, revisão da literatura, além da abordagem de questões cruciais, tais como as "cifras negras" e as "taxas de atrito", além da delimitação do Sistema de Justiça Criminal; no segundo capítulo inicialmente discorreu-se sobre o impacto efetivo da atuação policial sobre a criminalidade e em seguida, passou-se à análise de cada uma das hipóteses levantadas no projeto de pesquisa como causas ensejadoras da baixa performance policial. No terceiro capítulo, e com base na constatação das hipóteses analisadas, elencou-se diversas proposições no intuito de se minorar as deficiências operacionais e administrativas da Polícia Civil.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO
A análise da atuação da Polícia Civil do Estado do Piauí, sob as óticas da eficiência, eficácia e efetividade, no tocante, delimitadamente, ao delito de furto na área territorial do município de Teresina no 2º semestre do ano de 2003, com o intuito de formulação de propostas nos âmbitos administrativo, operacional e gerencial, que potencializem a atuação do efetivo policial civil no sentido de se minimizar os efeitos danosos que tal conduta ilícita ocasiona à coletividade envolvida, deve, inicialmente, ser precedida de algumas noções legais, jurídicas e técnicas, para uma melhor compreensão do tema.
2.1. Polícia Civil: uma Polícia Judiciária
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 144, estabelece que "a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio", identificando, na seqüência, através de incisos e parágrafos, as instituições policiais e respectivas atribuições para consecução de tal desiderato.
Reportando-se às atribuições e funções das Polícias Nacionais, assim se manifesta o jurista e deputado federal Luiz Antônio Fleury Filho:
... à Polícia cabem duas funções: a administrativa (ou de segurança) e a judiciária. Com a primeira, de caráter preventivo, ela garante a ordem pública e impede a prática de fatos que possam lesar ou pôr em perigo os bens individuais ou coletivos; com a segunda, de caráter repressivo, após a prática de uma infração penal recolhe elementos que o elucidem para que possa ser instaurada a competente ação penal contra os autores do fato. [1]
As Polícias Civis, como instituição componente do Sistema de Segurança Pública pátrio, estão previstas no inciso IV do mencionado artigo constitucional, com incumbências definidas no parágrafo 4º, verbis: "Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares".
Cabe, aqui, uma breve interpretação do aludido dispositivo constitucional. Por "delegados de polícia de carreira" entende-se aquele servidor público que foi submetido a concurso público, de provas e títulos, tendo como requisito de formação a graduação em Direito e que tenha sido submetido a Curso de Formação, este inserto no processo de seleção pública.
A Lei Complementar estadual nº 01, de 26.06.1990, que dispõe sobre o Estatuto dos Policiais Civis do Piauí e dá outras providências, estatui em seu art. 4º, litteris:
A Polícia Civil do Estado do Piauí, dirigida por Delegado de Polícia de Carreira, é uma instituição permanente do Poder Executivo, estruturada em carreiras, e auxiliar da função jurisdicional do Estado, com atribuições, entre outras fixadas em lei, de exercer, ressalvadas a competência da União, as funções de Polícia Judiciária e a apuração das infrações penais, exceto as militares.
No artigo seguinte – 5º - o referido dispositivo legal define quem são os Policiais Civis de Carreira, estando, obviamente, entre eles os delegados de polícia, verbis: "São Policiais Civis de Carreira, os investidos em cargos efetivos de natureza policial civil, da Secretaria de Segurança, definidos nesta Lei."
O aspecto relativo ao "delegado de polícia de carreira", exigência esta oriunda da Constituição Cidadã de 1988, tem sido objeto, ao longo do tempo, especialmente no âmbito da Polícia Civil do Piauí, de muita polêmica. A propósito, alguns dispositivos do Estatuto acima referido foram considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, através da ADIN nº 1854-3. Dentre eles, o art. 18, revogado pela LC nº 25, de 15.08.2001, que preconizava: "São também considerados autoridades policiais civis os delegados de polícia nomeados em comissão ou designados para a função de delegado até o preenchimento das vagas por delegado de carreira."
Não obstante a inconstitucionalidade desse texto legal e a sua retirada do Estatuto Policial Civil do Piauí, a insuficiência de "delegados de polícia de carreira" nos quadros da Instituição tem perpetuado tal prática ilegal, fruto do descaso histórico governamental com a questão. Até a presente data, apenas dois concursos públicos foram realizados para o preenchimento de vagas no quadro de delegado de polícia, o primeiro em 1994, ocasião em que foram preenchidas 30 (trinta) vagas, sendo que, atualmente, apenas sete delegados egressos do referido concurso ainda permanecem na Instituição – os demais, em face das condições precárias de trabalho e da baixa remuneração, foram atraídos por outras carreiras jurídicas, tais como o Ministério Público e a Magistratura. O segundo e último concurso foi realizado no ano de 2000, no qual foram aprovados 90 (noventa) candidados e inicialmente nomeados 30 (trinta); desses, mais de dez já pediram demissão do cargo, pelos mesmos motivos de seus antecessores. Posteriormente, mais 30 (trinta) foram nomeados, repetindo-se com estes os mesmos problemas anteriores.
Diante dessa insuficiência [2] os gestores da Secretaria de Segurança Pública, órgão ao qual a Polícia Civil do Piauí é vinculada hierárquica, operacional e financeiramente, vêm sistematicamente utilizando-se do artifício ilegal de nomear, mediante portaria administrativa, para o exercício das funções privativas de "delegado de polícia de carreira", policiais militares e bacharéis em Direito e em Segurança Pública, fato este restrito aos municípios do interior do Estado. As Unidades Policiais da capital são conduzidas exclusivamente por policiais do quadro da própria Polícia Civil.
Às Polícias Civis a CF/88 incumbiu o exercício das funções de Polícia Judiciária e a apuração de infrações penais, excepcionando a competência da União, realizada através da Polícia Federal e definida nos incisos I a IV do § 1º do art. 144, e a das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares para a apuração de crimes e transgressões militares.
Apesar de a Carta Magna ter explicitamente estabelecido atribuições privativas da Polícia Federal, como as funções de Polícia Judiciária da União, em outras atividades a própria Constituição previu a possibilidade de atuação concorrente de outros órgãos públicos, especificamente na prevenção e repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho [3]. E isso é o que ocorre na prática. No Estado do Piauí, tanto a Polícia Federal como a Polícia Civil dispõem em suas estruturas de unidades especializadas na prevenção e repressão ao tráfico de substâncias psicotrópicas ilícitas.
A atividade de Polícia Judiciária no Brasil é exercida pelas Polícias Federal e Civis Estaduais, àquela reservada, em princípio, a apuração das "infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei" [4], ficando o remanescente na esfera de atribuição das Polícias Civis Estaduais.
A noção da atividade de Polícia Judiciária está prevista no caput do art. 4º, do Código de Processo Penal, verbis: "A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria." [5]
O trabalho de Polícia Judiciária, historicamente, está intimamente ligado à elaboração e execução do procedimento administrativo inquisitorial denominado de "inquérito policial".
Assim, ocorrido um crime, e desde que preenchidas algumas formalidades, conforme o caso (requisição, representação etc.), caberá à Polícia Judiciária instaurar o competente inquérito policial, através do qual buscar-se-á a materialização de provas e elucidação do delito, indicando o possível autor do fato criminógeno. O inquérito corresponde a uma fase pré-processual, administrativa, não se configurando, nesse momento, ainda, o processo penal. Corresponde a peça informativa que subsidiará a atuação do titular da ação penal. Se esta for pública, o Ministério Público; se privada, o ofendido ou seu representante legal, não sendo, entretanto, indispensável à propositura da ação penal. [6]
Acerca desse caráter administrativo e pré-processual do inquérito policial, assim se manifesta Eugênio Pacelli de Oliveira:
A fase de investigação, portanto, em regra promovida pela polícia judiciária, tem natureza administrativa, sendo realizada anteriormente à provocação da jurisdição penal. Exatamente por isso se fala em fase pré-processual, tratando-se de procedimento tendente ao cabal e completo esclarecimento do caso penal, destinado, pois à formação do convencimento (opinio delicti) do responsável pela acusação. O juiz, nesta fase, deve permanecer absolutamente alheio à qualidade da prova em curso, somente intervindo, para tutelar violações ou ameaça de lesões a direitos e garantias individuais das partes, ou para resguardar a efetividade da função jurisdicional, quando, então, exercerá atos de natureza jurisdicional. [7]
Muito se tem discutido acerca da imprescindibilidade do inquérito policial e de sua condução exclusiva pela autoridade policial. Por ocasião da reforma do Código de Processo Penal essas questões vieram à tona, e, mais recentemente, abriu-se uma discussão no STF – Supremo Tribunal Federal – acerca dos poderes investigatórios do Ministério Público. Não obstante os questionamentos em contrário o legislador processual pátrio optou pela manutenção desse procedimento inquisitorial, em detrimento de sua substituição pelo juízo de instrução, consoante justificativas transcritas in verbis abaixo e insertas na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal:
Foi mantido o inquérito policial como processo preliminar ou preparatório da ação penal, guardadas as suas características atuais. O ponderado exame da realidade brasileira, que não é apenas dos centros urbanos, senão também a dos remotos distritos das comarcas do interior, desaconselha o repúdio do sistema vigente.
O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias dentro do seu território de jurisdição sejam fácil e rapidamente superáveis. Para atuar proficuamente em comarcas extensas, e posto que deva ser excluída a hipótese de criação de juizados de instrução em cada sede do distrito, seria preciso que o juiz instrutor possuísse o dom da ubiqüidade. De outro modo, não se compreende como poderia presidir a todos os processos nos pontos diversos da sua zona de jurisdição, a grande distância uns dos outros e da sede da comarca, demandando, muitas vezes, com os morosos meios de condução ainda praticados na maior parte do nosso hinterland ...
(omissis)
Mesmo, porém, abstraída essa consideração, há em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo a propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. [8]
Por fim, cabe aqui realçar o último aspecto relativo às atribuições das Polícias Civis, preconizado na Carta Magna, que é exatamente o concernente à idéia de infrações penais. Segundo Fernando Capez, o crime pode ser conceituado sob os aspectos material e formal ou analítico. O aspecto material é aquele que busca estabelecer a essência do conceito, isto é, o porquê de determinado fato ser considerado criminoso e outro não. Sob esse enfoque, crime pode ser definido como todo fato humano que, propositada ou descuidadamente, lesa ou expõe a perigo bens jurídicos considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social. O aspecto formal é aquele que busca, sob um prisma jurídico, estabelecer os elementos estruturais do crime. A finalidade este enfoque é propiciar a correta e mais justa decisão sobre a infração penal e seu autor, fazendo com que o julgador ou intérprete desenvolva o seu raciocínio em etapas. Sob esse ângulo, crime é todo fato típico e ilícito. Dessa maneira, em primeiro lugar deve ser observada a tipicidade da conduta. Em caso positivo, e só neste caso, verifica-se se a mesma é ilícita ou não. Sendo o fato típico e ilícito, já surge a infração penal. A partir daí, é só verificar se o autor foi ou não culpado pela sua prática, isto é, se deve ou não sofrer um juízo de reprovação pelo crime que cometeu. Para a existência da infração penal, portanto, é preciso que o fato seja típico e ilícito. [9]
Devidamente contextualizada a Polícia Civil no arcabouço do Sistema de Segurança Pública pátrio, faz-se necessário, para melhor compreensão do tema objeto deste estudo, considerações atinentes ao Sistema de Justiça Criminal, "cifras negras" e "taxas de atrito".
2.2. Sistema de Justiça Criminal: os elos da ineficiência
O Sistema de Justiça Criminal também se poderia intitular de Sistema Judiciário, analogamente à denominação dada à Polícia Civil como Polícia Judiciária, apesar de, como já mencionado, a atuação da Polícia Judiciária referir-se a uma fase pré-processual, bem como a atuação ministerial anterior ao recebimento da denúncia pelo magistrado. Esse sistema engloba, assim, as atuações da Polícia Civil, Ministério Público, Poder Judiciário e os órgãos penitenciários, estes, no Brasil, inseridos no âmbito do Poder Executivo – Administração Pública. Praticado um delito, caberá à Polícia Civil realizar as atividades investigatórias e ao Ministério Público, ou ao ofendido, conforme o crime seja de ação penal pública ou privada, promover a ação penal mediante denúncia ou queixa. À soma dessa atividade investigatória com a atuação ministerial ou privada chama-se persecutio criminis, que não tem outro objetivo senão tornar efetivo o jus puniendi a cargo do Estado-Juiz, pois como se sabe a atuação do Judiciário condiciona-se ao princípio da inércia, só atuando mediante demanda, e esta reside exatamente na propositura da competente denúncia ou queixa-crime. Deve-se salientar, entretanto, a restrita atuação do magistrado na fase pré-processual, especialmente na proteção e garantia dos direitos humanos fundamentais.
O sociólogo e antropólogo Cláudio C. Beato, da Universidade Federal de Minas Gerais, tem uma visão pessimista acerca da eficiência e eficácia do Sistema de Justiça Criminal brasileiro, verbis:
O fluxo de processamento da justiça criminal inicia-se com uma ocorrência realizado pela polícia militar, que o comunica à polícia civil, que a registra. Registrada a ocorrência, a PC dá início ao inquérito policial, em que será averiguada a materialidade dos crimes, a indicação de testemunhas, e a tomada de depoimentos. Terminado o inquérito policial, ele é remetido ao Ministério Público que avaliará se ele está pronto ou não, para preparar a denúncia que será remetido à vara criminal, onde tudo começa novamente. Conforme pode-se ver, é extremamente complexo e muitas vezes moroso o fluxo da justiça criminal no Brasil. Isto dá origem a uma série de acusações entre as organizações que compõem o sistema, e talvez explique um pouco do porque a justiça brasileira ser tardia, freqüentemente incerta, e às vezes injusta, pois termina selecionando discriminatoriamente sua clientela.
(omissis)
Não dispomos de análises mais detalhadas a respeito da integração funcional das diversas organizações do sistema de justiça criminal. O que parece ser uma constante é uma certa "desconfiança" em relação à integração das várias organizações do sistema de justiça criminal, sem que saibamos exatamente a causa desses conflitos de jurisdições. Alguns diagnósticos preliminares acerca do nosso sistema de justiça criminal destacam o "caráter frouxamente articulado" entre as organizações que compõem o sistema (Paixão, 1993. Coelho, 1986) que termina por operar uma disjunção entre o aparelho policial e a administração da polícia (Coelho, 1986). Na ponta inicial do sistema, as polícias operam de forma igualmente desarticulada (Paixão, 1993), o que terminou por ensejar as inúmeras propostas de integração entre elas, seja suprimindo simplesmente a força militar, seja unificando seus comandos. [10]
Outra não é a opinião da socióloga Vívian Ferreira Paes, verbis:
O Sistema de Justiça Criminal já foi analisado por outros autores como um locus onde impera um tipo de relação baseado na ausência de cooperação interinstitucional (Kant de Lima, 1995; Mandach, 2001; Nazareth Cerqueira, s.d.; Paes, 2002 e Paixão, 1982). Destacamos, dentre estes estudos, a análise levantada por Roberto Kant de Lima, que concebe a cultura jurídica brasileira baseada num sistema de produção de verdades que são complementares, hierarquizadas e que se desqualificam mutuamente. Entendemos, portanto, que os atores do Sistema de Justiça Criminal não atuam de forma coordenada, pois a produção da verdade neste sistema se dá na forma de uma concorrência, o que leva estes atores a inserir-se em uma disputa sobre qual versão será a mais legítima. [11]
Delimitado o campo de atuação do Sistema de Justiça Criminal, o qual se inicia no âmbito da Polícia Civil, flui através do Ministério Público e dependendo do livre convencimento dos magistrados poderá desaguar nos órgãos prisionais. Depreende-se, assim, que o êxito estatal para fazer valer efetivamente as leis penais dependerá da capacidade de atuação de cada ente integrante dessa cadeia.
2.3. "Cifras Negras" e "Taxas de Atrito": duas faces da mesma moeda
No entanto, tanto em âmbito nacional como em outros países, a maior parte das ocorrências criminais sequer ingressam no primeiro elo do Sistema de Justiça Criminal. São as chamadas "cifras negras" da criminalidade. Mas como mensurá-las ? Tal tarefa não se vislumbra facilmente. Os poucos estudos existentes, especialmente em termos de Brasil, não assumem uma amplitude nacional, restringindo-se, na maioria das vezes, a análises localizadas e regionalizadas, o que demonstra um certo descaso dos órgãos de segurança em buscar identificar os reais índices de criminalidade. As tentativas de se dimensionar o quantum das "cifras negras" são embasadas em projeções a partir de pesquisas de vitimização realizadas com a população de uma determinada área, onde as pessoas são indagadas se já foram vítimas de algum(ns) delito(s), qual(is) espécie(s) de delito, se procuraram a polícia para registrar a ocorrência etc.
Corroborando o afirmado, discorre Julita Lemgruber, Diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro:
No Brasil sequer podemos fazer esse tipo de análise, porque aqui não se realizam pesquisas de vitimização. Melhor dizendo: não se realizam pesquisas periódicas, em nível nacional, com metodologias padronizadas, mas apenas surveys pontuais e descontínuos em duas regiões metropolitanas do país ... Os únicos dados nacionais disponíveis já completaram 13 anos de idade: são as informações da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) realizada anualmente pelo IBGE, que em 1988, e só nesse ano, incluiu no seu suplemento algumas perguntas sobre vitimização. Não foi propriamente uma pesquisa de vitimização, nem mesmo um survey-piloto seguido de levantamentos mais completos e acurados. Simplesmente nunca mais se investiu na tentativa de estimar o volume de crimes cometidos em todo o Brasil – o que, já por si, atesta o descaso com que essa área tem sido tratada e a falta de base para qualquer avaliação objetiva da eficácia do Sistema de Justiça Criminal neste país. [12]
Discorrendo acerca da carência de informações estatísticas no âmbito das Instituições Policiais brasileiras e reportando-se à questão nebulosa das "cifras negras", assim se manifesta o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, in verbis:
... alguns dados são impressionantes: desde 1988, sabe-se que, na região Sudeste, entre 75% e 82% dos crimes contra o patrimônio (roubo e furtos), excluídos veículos, não são denunciados às autoridades policiais, isto é, não são registrados nas delegacias – os roubos e furtos de veículos são reportados para que haja o ressarcimento dos seguros. As razões alegadas para a subnotificação são duas: falta de confiança na capacidade da polícia de recuperar os bens perdidos e prender os culpados, e medo de entrar numa delegacia. Portanto, os dados disponíveis na Polícia Civil sobre roubos e furtos constituem apenas uma pequena parcela dos fatos relevantes. [13]
Às ocorrências criminais que não afluem ao Sistema de Justiça Criminal, e que jamais serão objeto de persecução penal pelo Estado, somam-se aquelas que, apesar de adentrarem ao referido Sistema, se perdem em seus meandros. É o caso da queixa de um crime pela vítima na Polícia Civil, onde tal fato não terá maiores desdobramentos (diligências, investigações, instauração de inquérito, oitiva de testemunhas, indiciamento etc.), ficando, assim, impossibilitado, em se tratando de crime de ação penal pública, de atuar, o membro do parquet. Algumas vezes, há uma atuação policial, mas por motivos diversos, não se chega à autoria do delito, redundando, no âmbito ministerial, na devolução do inquérito para novas diligências ou no pedido de arquivamento ao Judiciário. Outras vezes, há o indiciamento, mas o material probatório carreado aos autos revela-se frágil, não imprimindo um grau mínimo de verossimilhança capaz de convencer o promotor público a propor a denúncia. Outras vezes, há a denúncia, mas o magistrado não a recebe, ou porque, por exemplo, os fatos narrados pelo Ministério Público na exordial não se configuram conduta típica ou o pelo fato do delito já se encontrar prescrito.
Essas ineficiência e ineficácia do Sistema de Justiça Criminal acabam por privilegiar a impunidade, tornando-se um óbice inconteste ao combate à criminalidade e à violência. Essas ocorrências criminais, intituladas de oficiais porque são do conhecimento do Sistema, mas que não são resolvidas pelo aparato estatal, quer através de um indiciamento, de uma denúncia, de uma condenação ou da prisão, acabam gerando "perdas" no fluxo normal do Sistema de Justiça Criminal, e o maior ou menor grau delas é que vai indicar quão é eficiente o Sistema como um todo. Esse percentual de "perda" é tecnicamente chamado de "taxa de atrito".
As "taxas de atrito" não são um fenômeno restrito aos países menos desenvolvidos ou àqueles com menores índices de criminalidade, trata-se, na verdade, de um fenômeno que assume amplitude mundial. O que diferencia os países mais ricos dos outros é que naqueles, pelo maior nível organizacional das Instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal, aliado ao alto grau de informatização e tecnologias aplicadas, têm-se uma noção mais fidedigna dessa taxa, inclusive no tocante aos pontos e causas de maior estrangulamento no Sistema.
A partir de dados do Home Office – Digest 4 / England and Walles (1999), Julita Lemgruber discorre sobre as "taxas de atrito" apuradas para a Inglaterra e País de Gales em 1997, litteris:
... de cada cem crimes cometidos naquele ano, 45,2 foram comunicados à Polícia, 24 foram registrados, 5,5 foram esclarecidos, 2,2 resultaram em condenação e 0,3 resultou em pena de prisão. Ou seja, na Inglaterra, com uma Polícia bem mais eficiente do que a nossa e um Judiciário muito mais ágil, só 2,2% dos delitos resultam em condenação dos criminosos e só a irrisória parcela de 0,3% chega a receber uma pena de prisão. [14]
Sobre estudo análogo realizado nos Estados Unidos em 1994, mas contemplando apenas os crimes mais violentos ( homicídio, agressão, estupro, roubo etc.), Julita Lemgruber assim apresenta os resultados, verbis: " ... para 3.900.000 casos de violência ocorridos naquele ano, só 143 mil (3,7%) resultaram em condenação dos autores, sendo 117 mil (3%) punidos com uma pena de prisão." [15]
Luiz Eduardo Soares nos traz uma pesquisa, não tão completa quanto as anteriores, pois não contempla as perdas na integralidade do Sistema e se restringe a um único crime, verbis:
Uma pesquisa concluída em 1994 sobre inquéritos de 1992, relativos a homicídios dolosos na cidade do Rio de Janeiro, revela que apenas 7,8% chegaram a ser aceitos pelo Ministério Público e considerados suficientemente instruídos, isto é, com informações suficientes para que se fundamentasse uma acusação, no prazo médio de dois anos. Destes, 64% referiam-se a crimes passionais, justamente aqueles de investigação mais fácil, que não envolvem carreira criminosa ou organização. [16]
2.4. Delito de furto em Teresina: uma "Taxa de Atrito" real
O escopo precípuo do presente estudo residiu, exatamente, em a partir de uma constatação fática – percentual ínfimo de inquéritos instaurados e concluídos para o delito de furto na capital piauiense relativamente às ocorrências registradas – buscar, através de pesquisa de campo – aplicação de questionários, entrevistas, visitas "in loco" e coleta de informações e dados estatísticos –, identificar fatores impeditivos a uma melhor performance da Polícia Civil piauiense, no tocante a essa figura delituosa, para, ao final, pugnar-se por proposições não definitivas e nem integrais, mas atenuantes e minorantes, contribuindo-se assim na reversão desse lastimável quadro de inoperância e descrédito junto à sociedade teresinense.
Ressalta-se que a escolha do delito de furto não foi por acaso. Essa conduta criminógena é a de maior incidência na capital piauiense. De um total de 52.690 ocorrências relativas a crimes, constantes na base de dados do Sistema de Boletim Eletrônico de Ocorrências da Polícia Civil na posição de 07.04.2005, 19.708 foram referentes a furto, o equivalente a 37,4%, sendo seguido pelos delitos de roubo e ameaça com, respectivamente, 14,5% e 10,5%.
A constatação referida e utilizada para a formulação do problema - Por que a "taxa de atrito" para o delito de furto é tão elevada na cidade de Teresina ? – foi embasada confrontando-se todas as ocorrências registradas nas delegacias distritais da capital e na POLINTER – Delegacia de Polícia Interestadual -, no 2º semestres de 2003 – meses de julho a dezembro -, com os inquéritos instaurados e encaminhados ao Poder Judiciário no mesmo período.
Salienta-se que as ocorrências registradas foram obtidas a partir de relatório oriundo da UPJ – Unidade de Polícia Judiciária – órgão integrante da estrutura hierárquica da Polícia Civil do Piauí e os quantitativos dos inquéritos instaurados e concluídos obteve-se a partir de Relatório Semestral da Corregedoria de Polícia Civil.
Foram registradas no período 7.636 ocorrências sob a natureza delituosa de furto, contra 198 inquéritos instaurados e concluídos para esse delito, dos quais 146 (74%) iniciaram-se a partir da lavratura de auto de prisão em flagrante delito e 52 (26%) por portaria da autoridade policial, indicando, com isso, que a relação inquéritos / ocorrências foi de 1 : 39, ou seja, uma "taxa de atrito" de aproximadamente 97,4%, com relação, exclusivamente, à Polícia Civil, desconsiderando-se os outros elos do Sistema de Justiça Criminal. Esses números por si só justificam a importância do presente trabalho. Imagine-se ao final da cadeia de Justiça Criminal quantos delinqüentes efetivamente foram condenados e se encontram cumprindo pena de prisão.
Mês |
Inquéritos Instaurados |
Total de Inquéritos |
Autoria Indefinida |
|
Flagrante |
Portaria |
|||
Julho/2003 |
28 |
05 |
33 |
00 |
Agosto/2003 |
21 |
10 |
31 |
01 |
Setembro/2003 |
20 |
10 |
30 |
00 |
Outubro/2003 |
24 |
09 |
33 |
01 |
Novembro/2003 |
27 |
08 |
35 |
00 |
Dezembro/2003 |
26 |
10 |
36 |
00 |
TOTAL |
146 |
52 |
198 |
02 |
Abaixo, demonstrativo dos inquéritos instaurados e concluídos no 2º semestre/2003 [17]: