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Considerações sobre os acordos de não persecução penal (ANPP) firmados após o pacote anticrime

Agenda 12/05/2020 às 17:00

O ANPP já foi utilizado mais de mil vezes pelo MPF desde o início da vigência da lei do pacote anticrime. O presente artigo relata os principais crimes que ensejaram esses acordos, bem como possíveis lacunas na aplicação desse instrumento.

1. Introdução

Nas últimas décadas, tem crescido o uso de práticas negociais no Direito Penal brasileiro, com inspiração nos resultado obtidos em outros países, como o plea bargain nos Estados Unidos. Tais práticas visam resolver de forma mais célere condutas menos graves, permitindo que o Ministério Público (MP) e o Poder Judiciário concentrem seus esforços no tratamento dos crimes mais graves.

Exemplo desse Direito Penal de segunda velocidade são as transações penais no âmbito dos Juizados Especiais Criminais (JECRIM), inseridas no ordenamento jurídico pela Lei 9.099/1995, mas somente aplicáveis a delitos de pequeno potencial ofensivo.

Recentemente, alguns setores da comunidade jurídica, em especial os integrantes do MP, vinham defendendo a ampliação dessa justiça consensual para crimes de médio potencial ofensivo.

Por exemplo, a Subprocuradora-Geral da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen apontava como principais justificativas para a expansão da justiça consensual no Brasil [1]:

a) Necessidade de se superar o modelo de que nenhum crime deve ficar impune (nec delicta maneant impunita), característico da obrigatoriedade da ação penal;

b) Atual modelo se tornou economicamente inviável e inviabilizador de ideias de justiça e eficiência na persecução penal;

c) Harmonia com a orientação de intervenção mínima do sistema penal;

d) concretização do Princípio da oportunidade.

Como resultado, em 2017 o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) editou a Resolução 181/2017, posteriormente modificada pela Resolução 183/2018, disciplinando o acordo de não persecução penal (ANPP) no Brasil [2].

Esse normativo recebeu severas críticas de que estaria violando a reserva de lei em matéria processual, ao regulamentar aspectos de direito processual penal.

Também foi objeto de duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), a ADI 5793, ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e a ADI 5790, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) [2].


2. Previsão legal do acordo de não persecução penal

Em 4/2/2019, o Poder Executivo Federal apresentou o projeto de lei chamado de pacote anticrime, que previa a modificação de diversas leis penais e processuais penais, incluindo o ANPP, a ser inserido no novo art. 28-A do Código de Processo Penal (CPP) [3].

Cabe destacar que, em comparação com o texto da Resolução do CNMP, o Poder Executivo retirou a vedação do uso do acordo em crimes hediondos ou equiparados, bem como removeu a vedação da aplicação de acordo em crimes que causem dano superior a 20 salários mínimos, o que impacta diretamente nos crimes contra a Administração Pública.

Aprovado pelas Casas Legislativas e sancionado na Lei 13.964/2019, a redação do art. 28-A do CPP sofreu poucas alterações, resultando na seguinte versão final:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

§ 1.º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento ediminuição aplicáveis ao caso concreto.

§ 2.º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:

I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;

II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e

IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

§ 3.º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.

§ 4.º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.

§ 5.º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.

§ 6.º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.

§ 7.º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5.º deste artigo.

§ 8.º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.

§ 9.º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.

§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2.º deste artigo.

§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.

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Dentre as alterações realizadas no âmbito do Parlamento, a mais significativa foi a ampliação do número de crimes que podem ser objeto deste acordo, uma vez que a proposta original do Poder Executivo restringia a crimes com pena máxima inferior a 4 anos, enquanto o texto aprovado segue a Resolução do CNMP e exige pena mínima inferior a 4 anos [4].

Ressalte-se que, para aferir essa pena mínima, ainda devem ser consideradas as causas de aumento e de diminuição aplicáveis ao caso concreto.

Assim, por exemplo, o crime de estelionato, que tem pena de reclusão de 1 a 5 anos e multa, não estaria abrangido pelo ANPP na versão original proposta pelo Poder Executivo, mas agora pode ser objeto de ANPP devido ao texto final aprovado e sancionado do art. 28-A do CPP.

Em síntese, para que o ANPP seja oferecido pelo Ministério Público a lei exige que [5]:

a) não seja caso de arquivamento da investigação;

b) o agente confesse o crime;

c) a pena mínima em abstrato seja inferior a 4 anos;

d) não seja crime praticado com violência ou grave ameaça contra pessoa (doloso);

e) não seja crime de violência doméstica;

f) não seja o agente reincidente;

g) não seja cabível a transação;

h) o agente não possua antecedentes que denotem conduta criminosa habitual; e

l) não ter sido beneficiado nos últimos 5 anos com ANPP, transação ou sursis processual.

Tal acordo deve ser homologado pelo juízo competente. Uma vez cumprido integralmente o ANPP, o juízo decretará a extinção da punibilidade, nos termos do art. 28-A, § 13, do CPP.


3. Aspectos práticos da celebração de acordos

Segundo o levantamento da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (2CCR) do Ministério Público Federal (MPF), de 23/1/2020 (data em que a lei entrou em vigor) a 16/3/2020, somente o MPF firmou 1.043 ANPP, isto é, acordos fundamentados na previsão legal introduzida pelo pacote anticrime.

Se forem somados os acordos firmados sob a égide da Resolução do CNMP, desde maio de 2018 o MPF já firmou 2.230 acordos, distribuídos nos seguintes crimes [5]:

a) contrabando (498 acordos);

b) estelionato majorado (376 acordos);

c) uso de documento falso (238 acordos);

d) moeda falsa (142 acordos); e

e) crimes contra o meio ambiente (84 acordos).

No ranking por estados, foi firmada pelo MPF, desde maio de 2018, a seguinte quantidade de acordos [5]:

a) Paraná (616 acordos);

b) São Paulo (335 acordos);

c) Minas Gerais (327 acordos);

d) Espírito Santo (145 acordos);

e) Santa Catarina (115 acordos); e

f) Goiás (112 acordos).

Em que pesem esses resultados, a doutrina e a comunidade jurídica ainda apontam diversas dúvidas e preocupações acerca do funcionamento e da aplicação do ANPP.

O notório advogado Aury Lopes Jr. e a juíza Higyna Josita destacam cinco questões práticas para as quais a lei não trouxe resposta [6]:

a) Cabe ANPP para processos em curso na data da entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, com denúncias já recebidas, mas sem sentença prolatada? – Na visão dos autores cabe ANPP, porque essa nova norma seria de natureza mista, ou seja, tanto processual quanto penal (causa de extinção de punibilidade), bem como seria mais benéfica ao réu do que a própria condenação criminal;

b) Cabe ANPP aos processos de ação privada? – Na visão dos autores cabe ANPP, porque não há vedação legal, podendo ser aplicada essa norma do mesmo modo em que ocorre com as transações penais no JECRIM;

c) Quando a fração da causa de aumento ou de diminuição a incidir sobre o mínimo da pena em abstrato for variável, aplica-se a maior ou a menor fração para aferir se o agente faz jus ao ANPP? – Na visão dos autores deve-se levar em conta, na causa de aumento, a fração que menos aumentar a pena mínima e na causa de diminuição, a fração que mais diminuir;

d) Em caso de descumprimento do ANPP, a confissão feita pelo investigado poderá ser usada contra ele durante o curso do processo que a caso venha a surgir? – Na visão dos autores isso não pode acontecer;

e) O Ministério Público é obrigado a propor o ANPP, caso o agente preencha os requisitos? – Sobre esse ponto não foi possível chegar num consenso entre os dois autores, mas eles concordam que deve prevalecer a visão de que não é direito subjetivo do imputado, mas faculdade do MP.

Já o defensor público Emerson de Paula Betta sustenta que a exigência de confissão para firmar o ANPP seria inconstitucional por afronta as Garantais Constitucionais da não autoincriminação; do Devido Processo Legal, da Ampla Defesa e do Contraditório, bem como por não ser em nada relevante para o que a lei propõe, já que não é caso de imposição de pena decorrente de sentença penal condenatória. Registre-se que muitas das críticas feitas ao plea bargain nos EUA derivam das falsas confissões feitas para atender a esse requisito do acordo americano [7].

Por sua vez, o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda assinala a importância da aplicação do ANPP ser adaptada no caso de crimes ambientais, posto que a lei específica, Lei 9.605/1998, traz outros requisitos que não podem ser ignorados, como a exigência de reparação integral atestada por laudo, os tipos de serviços à comunidade que podem ser prestados, a destinação da multa e demais montantes pecuniários, entre outros [8].

Por fim, impende ressaltar alguns aspectos sobre outra seara na qual é possível antever que haverá muitas dúvidas e discussões: crimes que envolvem a Administração Pública, como corrupção, crimes tributários e previdenciários.

Nos crimes tributários e previdenciários, o art. 83, § 4º, da Lei 9.430/1996 e o art. 9º, § 2º, da Lei 10.684/2003 estabelecem a extinção da punibilidade quando a pessoa física ou jurídica relacionada efetuar o pagamento integral dos débitos.

Assim, tendo em vista que o ANPP exige a reparação da dano, surge a dúvida se o ANPP seria cabível em tais crimes, uma vez que o pagamento dos débitos não poderia ser uma reparação, mas sim uma causa de extinção da punibilidade, o que inviabilizaria o próprio ANPP.

Todavia, já existem advogados tributaristas defendendo não só o cabimento do ANPP, como a não exigência de reparação do dano nos ANPP firmados em crimes tributários e previdenciários [9].

No campo dos demais crimes que envolvem a Administração Pública, o ANPP pode significar a ampliação da lógica de extinção de punibilidade dos crimes tributários e previdenciários para todos esses demais crimes.

Além disso, advogados já visualizam que o ANPP ainda pode ter impacto na aplicação da Lei Anticorrupção Empresarial, Lei 12.846/2013 [10].

Isso ocorreria porque empregados e dirigentes podem se utilizar de ANPP para se livrarem de responder por crimes de corrupção, implicando diretamente na caracterização de condutas que podem atrair a responsabilidade objetiva das empresas com base na Lei Anticorrupção Empresarial [10].

Nesse contexto, haveria um aumento na abertura de processos administrativos de responsabilização (PAR) e no ajuizamento de ações de improbidade administrativa, fomentando a celebração de acordos de leniência com essas empresas e a celebração de acordos de não persecução cível com os agentes públicos envolvidos, nos termos do dispositivo incluído pelo pacote anticrime na Lei de Improbidade Administrativa, o art. 17, § 1º, da Lei 8.429/1992.


4. Conclusão

Constata-se que o acordo de não persecução penal (ANPP) foi inicialmente introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por intermédio de resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, o que foi objeto de inúmeras críticas quanto |à sua constitucionalidade. Posteriormente, foi positivado pelo pacote anticrime no art. 28-A do Código de Processo Penal.

De 23/1/2020, data em que a lei entrou em vigor, a 16/3/2020, somente o MPF firmou 1.043 ANPP, o que demonstra o potencial de utilização desse instrumento para reduzir o número de processos em andamento na justiça criminal.

Por outro lado, vários juristas apontam a existência de lacunas na lei, uma vez que pairam dúvidas sobre aspectos como quais crimes são compatíveis com a aplicação do ANPP e como se dará a tramitação desses acordos.

Deste modo, conclui-se que ainda há diversos pontos em aberto quanto à aplicação do ANPP. Não obstante, tal instituto já está sendo aplicado e tem trazido benefícios ao sistema criminal.


5. Referências

[1] http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/mpfacordosnaopersecucaopenal.pdf/view

[2] https://www.conjur.com.br/2018-nov-30/hermes-morais-acordo-nao-persecucao-penal-constitucional

[3] https://congressoemfoco.uol.com.br/judiciario/moro-apresenta-pacote-anticrime-principal-aposta-de-sua-gestao-veja-a-integra-da-proposta/

[4] https://www.conjur.com.br/2019-dez-12/opiniao-alteracoes-processuais-penais-pacote-anticrime

[5] http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-celebra-mais-de-2-mil-acordos-de-naopersecucao-penal

[6] https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao-persecucao-penal

[7] https://www.conjur.com.br/2020-mar-17/tribuna-defensoria-inconstitucionalidade-irrelevancia-confissao-anpp

[8] https://www.conjur.com.br/2020-fev-15/ambiente-juridico-primeira-reflexoes-acordo-nao-persecucao-penal-crimes-ambientais

[9] https://www.conjur.com.br/2020-mar-07/opiniao-crimes-tributarios-acordo-nao-persecucao-penal

[10] https://www.conjur.com.br/2020-jan-14/pacelli-warde-justica-penal-empresas

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Heloisa R. Considerações sobre os acordos de não persecução penal (ANPP) firmados após o pacote anticrime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6159, 12 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81719. Acesso em: 25 nov. 2024.

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